A sopa envenenada

(José Pacheco Pereira, in Público, 16/12/2017)

JPP

Pacheco Pereira

Este artigo não é sobre as “raríssimas”; ou seja, sobre o caso da associação com esse nome. Este artigo é sobre as vulgaríssimas; ou seja, sobre aquilo que este caso revela sobre a nossa sociedade, sobre os nossos comportamentos, sobre o modo como os media e os seus consumidores estão impregnados da sopa envenenada que é hoje a chamada “opinião pública”. O caso em si é fácil de descrever: numa instituição de solidariedade social, com obra reconhecida como meritória (podia não ser), a sua responsável (e certamente vários dos seus colaboradores, incluindo os “whistleblowers”, como é costume) abusou da sua situação para obter vantagens materiais, viver à custa dos dinheiros “solidários”, ter luxos, e empregar a família e amigos. À sua volta, uma rede de cumplicidades, envolvendo o poder político, e membros do Governo ou ajudaram a causa, sem cuidados, ou participaram no festim. Nalguns casos pode ter havido crimes, noutros comportamentos eticamente reprováveis. A instituição vivia encostada ao Estado (como quase tudo em Portugal) e recebia apoios da sociedade civil, parece que com alguma eficácia.

Uma reportagem da TVI denunciou o caso, os abusos e as cumplicidades. Fê-lo com equilíbrio e com matéria probatória sólida, incluindo depoimentos, emails e alguns filmes, uns feitos às escondidas, outros às claras. Do ponto de vista da deontologia jornalística, a única coisa que podia suscitar dúvidas eram os filmes que foram fornecidos juntamente com as outras denúncias por gente de “dentro”. Não é incomum no jornalismo de investigação este tipo de técnicas e há doutrina estabelecida sobre as regras a seguir. Neste caso, no documentário original, tudo o que lá está é mais do que justificado pelo interesse público da denúncia de um caso de claro abuso desta natureza. Na sequência deste documentário original seguiram-se as linhas de investigação e escrutínio, jornalístico e público, obrigatórias: a senhora foi afastada das suas funções, o membro do Governo envolvido demitiu-se (e se não se tivesse demitido devia ter sido demitido de imediato) e prossegue o trabalho de esclarecer se existem outras responsabilidades no Governo, quer por acção quer por omissão. A realidade tem mostrado que os membros do Governo e os outros políticos envolvidos não estão a sair-se muito bem das explicações que têm de dar. Esta parte está ainda em curso e deve ser inteiramente esclarecida, assim como os inquéritos judiciais e investigações por quem de direito.

Nada disto é incomum, é até muito vulgar, e consideravelmente consentido quando dentro de portas, e quando ou se esconde bem a mão, ou quando se distribui alguma coisa do bodo colectivo e “comem todos”. Até um dia. Nesse dia vai lá tudo deitar pedras, como se não se soubesse de nada, ou, um pouco por todo o lado, como se comportamentos deste género não fossem o retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética colectiva, em parte porque somos ainda uma sociedade muito pobre, ou em que parte das pessoas saiu ainda há pouco tempo da pobreza, onde nunca na burocracia imperaram critérios de mérito, mas a cunha ou o patrocinato, onde esquemas de todo o tipo são tão comuns, no Estado, na política, nas empresas, nos bombeiros, nas casas paroquiais, nas escolas, nos quartéis, nos centros de saúde, um pouco por todo o lado. Talvez com menos gravidade, nem sendo muitas vezes crimes mas apenas abusos, mas com tanta trivialidade que não os vemos como culposos.

Significa isso que os portugueses não são honrados? Não, significa que são pobres, ou ainda que têm uma memória viva da pobreza, não sentem a coisa pública como sendo de todos, e sabem que, para empregar um filho, obter um papel na câmara, evitar pagar o IVA, passar à frente de uma fila, há um sistema de favores implantado que vive da complacência de quem se aproveita e da inveja de quem ficou de fora. E isto é de uma ponta à outra da sociedade. Desde os offshores “legais” ao planeamento fiscal, às compras para as cantinas, das empresas que fazem brindes para as campanhas eleitorais, até aos amigos e as empresas que arranjam sempre ser contratados sem concurso público, até ao autarca que “rouba mas faz” e a quem os mesmos que exorcizam a corrupção em cada palavra que dizem, afinal, votam.

Isto é corrupção, mas não só. É o retrato de uma sociedade disfuncional, muito desigual, onde quem tem acesso ao poder de gerir, ou de comprar, ou de vender, o faz quase sempre numa rede de amizades e cumplicidades, com proveito mútuo, e tão habitual que não merece condenação social. Até um dia, em que a complacência se substitui pela inveja. Nesse dia entra em cena aquilo a que chamei “a sopa envenenada”. Antes era a mesa de café onde quem estava à mesa era de uma honestidade férrea (até ao momento em que saia da mesa) e à volta, a começar pela mesa vizinha, era tudo ladrões, corruptos e desonestos. Agora a mesa de café é planetária e é nas sarjetas das redes sociais, onde o mesmo insuportável espírito domina os comentários e as entradas no Facebook. E é para esse público que hoje está o caso das “raríssimas”, agora investigado já não pelas regras jornalísticas, mas pelas da exploração demagógica e populista, pela exibição do pior que há nos seres humanos, da inveja social, da calúnia, do ressentimento, do bater nos que estão em baixo, e mesmo outro tipo de comportamentos pouco recomendáveis.

E o assunto está hoje assim nos media formais e informais: desequilibrado, com um overkill desproporcionado à gravidade dos factos e com violações sérias da privacidade das pessoas. Se é relevante que a pessoa A tivesse uma relação íntima com a pessoa B, isso pode ser dito com a obrigação da proporcionalidade e do respeito pela privacidade. Para se dar uma informação relevante não é preciso ter um exibicionismo voyeurista, que é uma coisa de outra natureza. Já para não falar de alguma elegância — tão bizarra palavra nos nossos dias —, mas também a noção de que humilhar e amesquinhar as pessoas coloca quem o faz no mesmo plano da senhora culpada destes abusos.

Acresce que o facto de a principal culpada dos desmandos ser uma mulher não é irrelevante. Pior ainda é uma mulher “insuportável”, arrogante, atractiva e muito senhora de si para parecer um perigo para os homens e para as mulheres que no fundo temem as mulheres deste tipo, ou pura e simplesmente temem as mulheres como se fossem amazonas. O sexismo facilitou e muito o incêndio dos comentários e há uma espécie de exorcismo contra a sedução implícita. Se não querem ouvir as sereias, coloquem cera nos ouvidos e não fiquem babados a ver a televisão e a vociferar de inveja, de todas as invejas.

É por isto que quase tudo para além do caso das “raríssimas” é muito mais triste do que as gambas e o BMW, quer pelo que está antes e a gente faz de conta que não vê, quer pelo que está depois em que a gente faz de conta que vê demais.

 

5 pensamentos sobre “A sopa envenenada

  1. «Uma reportagem da TVI denunciou o caso, os abusos e as cumplicidades. Fê-lo com equilíbrio e com matéria probatória sólida, incluindo depoimentos, emails e alguns filmes, uns feitos às escondidas, outros às claras. Do ponto de vista da deontologia jornalística, a única coisa que podia suscitar dúvidas eram os filmes que foram fornecidos juntamente com as outras denúncias por gente de “dentro”. … etc,..

    e

    «E o assunto está hoje assim nos media formais e informais: desequilibrado, com um overkill desproporcionado à gravidade dos factos e com violações sérias da privacidade das pessoas. Se é relevante que a pessoa A tivesse uma relação íntima com a pessoa B, isso pode ser dito com a obrigação da proporcionalidade e do respeito pela privacidade. Para se dar uma informação relevante não é preciso ter um exibicionismo voyeurista, que é uma coisa de outra natureza. Já para não falar de alguma elegância — tão bizarra palavra nos nossos dias —, mas também a noção de que humilhar e amesquinhar as pessoas coloca quem o faz no mesmo plano da senhora culpada destes abusos.»

    Mais uma pachecada ditada ao seu estilo literário fluente, escorrido, insinuoso, sem a mínima dúvida cartesiana, absoluto, definitivo. Talvez, formatado e diluído de forma muito subtil, de muita dúvida cínica.
    Senão como pode o leitor conciliar que a mesma pessoa pense e diga o que escreveu na primeira citação acima e logo depois pense, diga e escreva o conteúdo da segunda citação, sendo que ambas são da mesma pessoa e sobre o mesmo assunto.
    O Pacheco começa a dizer que o jornal ou a jornalista “fê-lo com equilíbrio e com matéria probatória sólida” e logo de seguida, paradoxalmente,diz “E o assunto está hoje assim nos media formais e informais: desequilibrado, com um overkill desproporcionado à gravidade dos factos e com violações sérias da privacidade das pessoas.”
    O paradoxo e a dualidade de critérios advém de que de início Pacheco está a pensar na “equilibrada jornalista Ana Leal”, aquela a tal que “investigava” Sócrates de modo a criar a narrativa doentia e tresloucada de Manuela Moura na tvi. E no decorrer da sua exposição, incautamente, dá em pensar em si próprio e no que dizem dele nas redes sociais, sobretudo, naqueles locais muito frequentados onde desmontam o seu saber académico histórico-filosófico anti-dialético e anti-dúvida.
    O seu carácter definitivo, absolutista revela-se bem quando opina e começa quase invariavelmente assim; “bem,vamos lá a ver, o problema é… ”
    O seu carácter cínico é bem visível quando opina sobre alguém a quem inveja as capacidades políticas e que o leva, quando opina sobre qualquer assunto como agora neste caso e remata, quase invariavelmente, assim; “nós não sabemos tudo sobre o assunto, não, são precisas mais explicações, ‘ele’ tem de dar mais explicações, há muito mais explicações a dar, nós precisamos saber tudo…”
    No caso presente veja-se a frase sibilina dirigida ao governo e Vieira da Silva: “Esta parte está ainda em curso e deve ser inteiramente esclarecida, assim como os inquéritos judiciais e investigações por quem de direito.”
    Ao melhor estilo do empata falhado político.

  2. Republicou isto em No fim da picada and commented:
    Notas ao artigo de JPP.

    1) A menção ao facto – penso que do conhecimento geral – de a associação das doenças raríssimas ter “obra reconhecida como meritória (podia não ser)”.

    Tanto quanto julgo saber, quer a nível nacional, quer internacional.

    2) “Nalguns casos pode ter havido crimes, noutros comportamentos eticamente reprováveis.”

    E não se pode, nem deve, como é hábito, meter tudo no mesmo saco.

    3) “Uma reportagem da TVI denunciou o caso, os abusos e as cumplicidades. Fê-lo com equilíbrio e com matéria probatória sólida, incluindo depoimentos, emails e alguns filmes, uns feitos às escondidas, outros às claras.”

    Nem sempre com equilíbrio, antes pelo contrário.
    Se é verdade que em matérias não relevantes para o assunto principal em análise – mas que ficam na memória dos espectadores – como quem pertenceu ou viria a pertencer a cargos semi-simbólicos (assembleia geral, etc.), ou quem aparece em fotografias com a presidente da associação (Marcelo, Maria Cavaco Silva, etc.) – nas sucessivas repetições e entrevistas a que a reportagem deu aso apenas aparecem referências a personalidades ligadas ao PS.

    Concordo na generalidade com as restantes considerações, em particular com a que leva à conclusão, e que ainda não tinha visto realçada:

    “Acresce que o facto de a principal culpada dos desmandos ser uma mulher não é irrelevante. Pior ainda é uma mulher “insuportável”, arrogante, atractiva e muito senhora de si para parecer um perigo para os homens e para as mulheres que no fundo temem as mulheres deste tipo, ou pura e simplesmente temem as mulheres como se fossem amazonas. O sexismo facilitou e muito o incêndio dos comentários e há uma espécie de exorcismo contra a sedução implícita. Se não querem ouvir as sereias, coloquem cera nos ouvidos e não fiquem babados a ver a televisão e a vociferar de inveja, de todas as invejas.”

  3. Muito bem notado Sr. Neves, ao ler o seu comentário nem me deu muita vontade de desenvolver muito porque, francamente diz tudo : desde o estilo , tom ” neo renascentista ” de um homem que está acima de toda e qualquer ” coisa enveneneada ” que eventualmente amesquinha o colectivo nacional ; à insinuação que básicamente o que ” nós ” queriamos era estar no Rio de Janeiro com aquele adorável produto do feminismo atabalhoado que para aqui imigrou (como tanta outra coisa ) mais ou menos de rompante sem bem se definir na nossa sociedade ,anteriormente predominantemente patriarcal, ” ; ao quase que elogio ao exemplo do elitismo parolo de muitos que ascendem a posições daquelas através de … errrr … olhe, talvez até a trabalhar ” no duro ” : nada que não tivesse bem implicito naquelas fotos que ” invadem a vida privada ”
    Um aparte … ” invasão da vida privada ” , Sr. Pereira , era mas sim esconder ao ” Público ” , isto é : a todos nós ! Ocultar a vida de ostentação e luxo ali denunciada e provada … a qual sim, depende do nosso bolso , isso sim – ” Privado ” ; mas sem problemas, aqui a populaça “invejosa” e … respeite – se os “eufemismos ” … ” todos cá em baaaixo, na fila para os Boyismos / tachadelas como que de um parlamento de rua se tratasse, tá a ver ? “.
    Ora bem , disse que não me alargaria e lá estou eu aqui, estilo o orçamento feito disponível à(s) ” raríssimas ” deste país : Enfim, e voltando ao artigo do Sr. Pacheco : mais uma ” composição académica ” de um indivíduo que , normalmente, pretende projectar aquela ” modernidade ” da qual às tantas as ” sarjetas da internet ” lhe forneceriam um apoio incontornável .
    Será que ele já reparou que a verbosidade bacoca de crónicas / artigos já não impressiona ninguém na era da internet ? Que os lugares comuns já há muito que lá ficaram … no seu lugar … comum ? Que usar ” postos e opostos ” para eleminar ambos é uma técnica obsoleta e já há muito detetada também … no seu lugar, ó meu Carissímo Sr. Pereira , eu fazia mas é um download do Tor e começava mas é a desfolhar a “cebolinha” … no final era capaz de ficar algo do género :

    ” Esquema de corrupção exposto , sem margem para dúvidas, de desvios de dinheiros públicos envolvendo membros do Governo : necessário o apurar de culpas onde ainda exista dúvidas para tal , substituição adequada dos cargos anteriormente atribuidos aos réus e atribuir a estes as coacções previstas na lei ”

    (Devia ser mais ou menos assim , não ? Óbvio que o texto é uma total utopia dado o estado das nossas instituições ( e a minha falta de jeito para cartas formais , entre muuuitos outros factores condicionantes).
    Entretanto o supracitado não deixa de ser um esqueleto, deformado mas exacto do que está aqui em questão , nada mais, nada menos . ” Culpa exposta sem margem para dúvida = acusação/condenação prevista .”

    Simples, não lhe parece, Sr. Pereira ? Mas, convém tanto manter esta ordem de coisas e ter por aí uns ideólogos que com retórica da pior espécie mostram – se extremamente chocados com tais casos , para logo de seguida virem anulá -los , subtilmente justificá – los ,disfarçar – lhes o cheiro , que tresanda , sempre com as mesmas ferramentas : ” a invasão da vida privada ” ; ” os direitos humanos “; ” a exposição ou falta dela nos media conforme conveniência/influência ” ; ” total tolerância em passar de 10 para 1000000 sem ter que explicar nada “; ” recursos para tribunais “offshore ” – epá , tou todo confuso , desculpem lá ) etc … etc …………….
    Ora bem , “porra !!!!!” , neste cenário , fazer o quê ? Assim sem muito stress e “witch hunts ” ? ……………

    ” Seguir mas é de perto ” os progressos ” e as ” ideologias que estão na ordem do dia, tipo , olha … deixa cá ver as últimas da “Open Society” , que o tempo escasseia e para quê contestar , expôr algo que me deixe cair na promíscua teia : ” justiça – media – poder político – poder privado (interno e extreno ) ” … olha eu ! AH ! Chegado de Paris e inesperadamente recebido com honras de Rei que faz anos . Tá bem , tá ! Deixa mas é cá dizer o que eles encomendam com uma no cravo outra na ferradura . Ouve lá puto : essas coisas de Che(s) & Castros já tá tudo na Goldman Sachs , pá ! Vê lá se cresces ! ” .

    Epá , desculpem lá a composição , porra … é que não sou nehum Pacheco Pereira , se bem que até simpatizo com o Sr. ou Dr. … não sei como é que ele gostaria que eu me referisse a ele … deu – me para isto …

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