Mas qual é o mal do passado?

(José Pacheco Pereira, in Público, 09/12/2017)

JPP

Pacheco Pereira

O passado tem má imprensa, o presente é o melhor que há e o futuro então não se fala, é o período da felicidade perfeita, tanto mais perfeita quando todos já estaremos mortos.


No início de um livro de L. P. Hartley há uma frase que eu cito bastante e vou fazê-lo de novo: “O passado é um país estrangeiro, lá fazem-se as coisas de forma diferente”. Em inglês é ainda melhor: “The past is a foreign country; they do things differently there“. E cito-a pela obsessão absurda que existe nos dias de hoje na política e na comunicação social, de achar que “voltar ao passado” é um coisa tenebrosa e um insulto. Este tipo de frases são o pão nosso de cada dia na competição eleitoral no PSD, em que cada candidato atira ao outro ou aos seus apoiantes a acusação de que são o passado. Na verdade, o candidato mais do passado é que o faz com mais denodo e falta de vergonha, tanto mais que os “jovens” que apresenta são infinitamente mais velhos do que os “velhos” que eles atacam de senectude. Presumo que eles acham que tem um DeLorean ao seu dispor, visto que a probabilidade de entenderem alguma coisa do passado, presente e futuro dificilmente passa do Back to the Future.

Mas se fosse só nestes conflitos de menores, passávamos bem. Mas é no debate parlamentar, no comentário, na moda, e nessa ecologia em que vivemos no tempo presente e que se chama “comunicação social”. A obsessão pela “novidade” da comunicação social, é da mesma natureza destes jogos retóricos. Estão sempre a descobrir génios jovens e prometedores cuja fama não dura um ano, e que em muitos casos são os amigos deles, ou noutros são os que estão na “moda”, essa tenebrosa forma de identidade fugaz, cujas raízes no passado são aliás sempre mais importantes do que as folhas do presente. Resumindo e concluindo: o passado tem má imprensa, o presente é o melhor que há e o futuro então não se fala, é o período da felicidade perfeita, tanto mais perfeita quando todos já estaremos mortos.

Mas ainda me hão-de explicar o que é que tem de fascinante o presente, e como é que sabem que o futuro vai ser melhor. Nem o presente é brilhante, o que acontece é que estamos presos nele, temos que viver nele, e nem ninguém sabe o que vai ser o futuro porque a essência da história é a surpresa. Pelo contrário, no passado podemos escolher algum proveito e exemplo, mesmo que saibamos que ele nunca se repete, e se se repete, como dizia Marx, tem sempre tendência para ser como comédia. Corrijo aqui o velho Karl, nos nossos dias há uma alta probabilidade de começar como comédia e acabar como tragédia outra vez. Veja-se Donald Trump.

O passado tem imensas virtualidades, exactamente porque nós vivemos no presente e podemos escolher as “formas diferentes” como se faziam as coisas nesse “país estrangeiro”, usando a frase de Hartley. E é porque o passado transporta, no seu uso, a possibilidade de uma moral, de uma escolha, que é tão incómodo para aqueles que pensam que apenas podem beneficiar do presente, sem essa maçada de ter limites às suas acções. Os limites são aquelas coisas malditas como seja o saber, em vez da ignorância, a virtude em vez do vale tudo, a prudência em vez do meia bola e força, e o parar para pensar em vez do imediato e do “já” que cada vez mais pesa numa sociedade onde a adolescência se prolonga pelo Facebook e ersatzes de vida similares.

Não admira por isso que haja nos nossos dias algo que não tem precedente na nossa civilização ocidental, a que nos fez e ainda remotamente nos faz, que é o ataque aos mais velhos. Nos anos do “ajustamento”, os pseudo-jovens que tiveram a sua oportunidade nesses anos de lixo, dedicaram-se a querer empobrecer os seus avós e os seus pais, em nome de uns longínquos e putativos filhos e netos, pelos quais mostravam tanto mais amor quanto na realidade o que faziam era tirar a uns pais e avós para dar a outros pais e avós, só que da classe certa.

Tudo quanto é argumento neo-malthusiano foi usado para explicar a “injustiça geracional”, em que pais e avós hipotecam o futuro dos filhos e netos, para viverem bem no presente. Eles que eram “passado” viviam bem no presente e punham em causa o futuro. E o futuro destinado aos jovens era não ter casa, nem emprego, nem dinheiro, nem pensões, nem reformas, porque os malvados dos pais e avós não queriam perder os “direitos adquiridos”, nem as leis que protegiam o emprego, nem as suas reformas, nem o Estado Providência. Todo um argumentário conservador, que desaguava depois nos excessos da direita radical, se desenvolveu para dar um lugar ao sol não a todos os jovens, porque continuavam a ser precisos soldadores, mecânicos de automóveis, electricistas, padeiros e empregados de mesa, mas aqueles que nas elites se sentiam deserdados de um estatuto ou de um poder que lhes parecia devido, por família ou riqueza natural, ou aqueles que invejavam este estatuto de poder. Já repararam como este argumentário tem sucesso ou em jovens políticos profissionais das “jotas”, ou em pessoas que participam em “think tanks” de fundações e universidades bem providas, ou em pessoas com empregos como “consultores”, “assessores”, jovens advogados de negócios, e jornalistas da imprensa económica ou colaboradores dessa mesma imprensa ou afim. Há excepções, mas não invalidam a regra.

Um dos aspectos desta nova forma de luta de classes, na verdade a mesma de sempre, foi a minimização do saber e da experiência, tudo coisas que vem com a vida e o trabalho árduo, combate que assumiu e assume todo o seu esplendor naqueles que vivem nas chamadas “redes sociais” onde há uma ideia igualitária sobre o conhecimento, ou seja, uma apologia da ignorância. Se todos se podem pronunciar sobre tudo e por isso mesmo tudo o que dizem tem o mesmo valor, não vale a pena estudar, nem trabalhar para conhecer uma determinada matéria, basta só escrevinhar umas frases que pretendem ser engraçadas. Esta nova forma de ignorância agressiva, tem sido um instrumento para minimizar não só as hierarquias profissionais e académicas, como para dar o mesmo papel na sociedade a exercícios vulgares e superficiais mais ou menos intuitivos que se tornam virais e pela comunidade cultural entre as “jotas” políticas e as “jotas” jornalísticas que usam as “redes sociais” deles, os seus Facebooks e Twitters para “interpretar” movimentos colectivos que são dos mesmos de sempre, sendo esses mesmos muito poucos.

Há igualmente um ataque à memória, com o encolhimento sistemático do que se lembra no presente a um passado de escassos meses e anos. No limite, apenas ao que se encontra nas pesquisas do Google, ou está na Internet. O que acontece é que esse “passado” para além de ser considerado arqueológico, e portanto inútil de lembrar, afunda-se nas trevas do esquecimento. Por sobre esta memória de passarinho, crescem mitos, falsidades e memórias selectivas quase sempre instrumentais para as necessidades dos conflitos do presente. Os mais velhos são também um incómodo porque se lembram de coisas demais e de como, nesse “país estrangeiro” do passado, alguns dos próceres do presente, já mostraram o que valiam ou o que não valiam, os defeitos de carácter ou de incompetência, ou por semelhança de atitudes, podem conduzir aos mesmos sucessos ou, mais comummente aos mesmos desastres.

Eu sei bem que isto já foi tantas vezes dito, quantas gerações passaram sobre a terra. O passado está cheio de previsões sobre de como as coisas se degradam entre os mais velhos e os mais jovens. É verdade, é quase um lugar-comum. Mas isso não significa que às vezes, às vezes, possa ser verdade. Suspeito que hoje é.

Não sou, por isso, um fã do presente, onde vivo, principalmente quando se quer esconjurar o saber, a experiência e a memória, que são coisas que precisam do tempo do passado. Não é para as pessoas voltarem à lanterna mágica, ou às televisões de caixa, ou ao Pacman, nem tenho qualquer nostalgia do stencil ou do verniz corrector, nem da máquina de escrever. Mas já tenho de homens como o esquecido e frágil Mem Verdial, com a sua gravata à Lavaliére, já então tão fora do tempo, e que levou um paralelepípedo escondido para um comício da oposição a Salazar, patrulhado por um capitão qualquer que numa mesa podia interromper qualquer orador. E quando foi interrompido por dizer coisas subversivas sobra a democracia, perguntou ao homúnculo do canto: “O senhor representante da autoridade quer que eu ponha uma pedra sobre o assunto?”. E pegou na pedra e colocou-a em cima dos seus papéis. É este passado que me faz falta

Assinado: Matusalém.

5 pensamentos sobre “Mas qual é o mal do passado?

  1. «Nem o presente é brilhante, o que acontece é que estamos presos nele, temos que viver nele, e nem ninguém sabe o que vai ser o futuro porque a essência da história é a surpresa.»

    Todo o palavreado acima do Pacheco é zero, vale zero, não passa de debitar palavras ajuntadas umas às outras para formar frases literárias com zero de ideias dentro. Tudo não passa de opiniões atiradas ao papel au passant sem o mínimo de profundidade de pensamento ao lembrar-se de uma frase de não sei quem cuja dita frase ela mesmo em si é uma pepineira que diz nada, vale zero como pensamento.
    Mas vejamos, como exemplo, a frase acima reproduzida.
    Nós temos um único e irrepetível presente em cada hora, cada dia, cada ano, cada segundo pois, ao contrário do que diz Pacheco nós não estamos presos nele é ele, o presente, que está preso em nós, somos nós que estamos construindo a cada hora, cada dia, cada ano o nosso presente: o presente somos nós.
    E se assim é indubitalvelmete como posso dizer que o presente, o meu presente não é brilhante e maravilhoso! Se enquanto existo o meu presente não é brilhante e maravilhoso é quando! Não esqueçamos Sófocles na Antígona: muitas são as maravilhas sobre a terra mas maior maravilha é o Homem. O Homem que vive criando e construindo o presente que será história e, é já, o futuro imediato.
    Outra tontice completa, embora pareça um pensamento sábio ou queira fazer-se passar por tal, é dizer que ninguém sabe o que vai ser o futuro porque a essência da história é a surpresa. “A essência da história é a surpresa”? Mas a história não é o passado. Aquilo que foi e ficou registado, o que está nos arquivos e nos museus, aquilo que aconteceu, que conhecemos, estudamos e dissecamos como numa autópsia? Que surpresa existe no já visto, lido, estudado. Na história o que é vivo e pode ser futuro são as várias interpretações possíveis e isso só reforça a ideia que o presente é feito pelo homem, é o próprio homem.
    Não sabemos qual vai ser o futuro mas isso jamais é devido a qualquer surpresa como essência da história, Esta é uma frase pomposamente retórica sem qualquer sentido, mesmo figurado, ou racionalidade. A história é um conjunto de factos e acontecimentos passados, é aquilo que está morto e é uma impossibilidade ter qualquer essência o que está morto.
    Mais uma vez temos de voltar ao homem e ao presente que ele cria enquanto existe, que não só é o presente como o único que possui uma essência que é poder idealizar, memorizar e racionalizar e ligar ideias e pensamentos que o projectam para a criação do presente, do futuro e, consequentemente, da história.
    E se podemos saber o passaso, a história, não podemos conhecer o futuro porque a nossa essência como memória embora possa memorizar o passado não poder para memorizar o futuro.
    Só o homem possui a essência do inteligível e todas as essências atribuídas à la carte as coisas, como faz Pacheco, não são mais que projecções da essência humana a essa coisas.

    • Caro José Neves,
      Graças ao PP, tenho oportunidade, de ver bem desmontada, a vaidade vã do PP.
      Quando PP, eloquentemente, arremessa aos plebeus, a citação favorita, de L. P. Hartley, e diz que a mesma em inglês é ainda melhor, apenas autoretrata-se, ao nível do pimba Tony C .
      A tradução em inglês é absolutamente literal e nada de novo acrescenta.
      Onde está, o ainda melhor? No snobismo para inglês ver?
      ++++++++++++
      Favor de corrigir a gralha no seu texto, no final,
      “E se podemos saber o passaso, a história,”
      Cumps

  2. POIS É, Ó ILUSTRE HISTORIADOR PORTUGA,
    (cuja trajectória política do passado bem me lembro ainda, do presente nada entendo — nem tinha, sequer, que entender pelo desprezo que dispenso às sinistras elites burguesas capitalistas, mesmo aos que se arvoram em intelectuais escrevinhadores —, e do futuro logo se verá, mas na certeza de que fome e ou frio nunca experimentarás, pelos feitos gloriosos por ti praticados, à sombra do chapéu dos “arco” enquanto eleito “democraticamente” nesse «país estrangeiro» do outro teu autor citado, em que adquiriste “direitos” suficientemente suficientes para te garantir amaciados assentos nas cómodas poltronas onde vais continuar a descansar o bem nutrido fofo).
    Mas foi a “luta de classes” que citaste (parece que de vez em quando convém lembrar tal “coisa”), que, qual massagem no ego, me trouxe à lide, e para te avivar a memória (e aos incautos) que, não obstante o blá blá blá dos escrevinhadores da côrte capitalista como (mais) este com a assinatura de tão reputado intelectual portuga, recorrendo a alguma racionalidade (sem a qual o Homem já não tem saída) do que se trata, e desde SEMPRE, é mesmo e ainda da LUTA de CLASSES !!!…. E independentemente dos partidos e dos políticos profissionais, embora essa luta também passe por eles, a questão crucial e natural situa-se bem dentro da famosa «Dialéctica da Natureza» (visite-se ou revisite-se um dos livros de Friedricht Engels com esse mesmo título), que é independente da vontade de qualquer mortal, por mais esperto que ele seja.
    As leis da Natureza nunca ninguém as venceu. Qualquer discussão meramente ideológica e cega, vale o que vale, ó Ilustre JPP!…
    A questão da consciência, independente dos povos, por um mundo mais justo e mais fraterno, a par da sua heróica luta por ela, muitas vezes por caminhos aparentemente mais ou menos tortuosos, é que costuma fazer HISTÓRIA !!!….
    Trata-se de uma cada vez mais urgente Revolução de mentalidades, de estados de alma, e de se estar atento aos sinais dos tempos.
    Trata-se de um sério trabalho de cidadania sempre INACABADO, e de um trabalho EMINENTEMENTE DO FORO CÓSMICO INDIVIDUAL DE CADA UM DE NÓS!!…
    Todo o resto é blá blá blá, a tal nuvem de fumo com que a burguesia capitalista criminosamente, através dos mídia e seus lacaios alguns detentores de carteira profissional de Jornalista, tentam tapar o sol com a peneira para a ALIENAÇÃO do Zépovinho pagante e votante! …atente-se, eu escrevi “alienação” (e até com MAIÚSCULAS, coisa estranha)!?!?!…será que ainda existe no luso léxico tal vocábulo????!!!!!….
    aci

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