Uma traição. Uma nódoa. Um sinal 

.(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/11/2017)

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Em março de 2012, Henrique Gomes demitia-se do governo de Passos Coelho. O secretário de Estado da Energia tinha defendido a introdução de uma contribuição especial sobre as rendas excessivas na produção de energia. A sua proposta foi inviabilizada e ele percebeu até que ponto a austeridade tinha só alguns destinatários e a EDP era capaz de travar qualquer vontade de mudança. António Mexia não teve, aliás, qualquer problema em deixar passar a ideia de que tinha sido a EDP a travar os ímpetos reformistas do temerário secretário de Estado.

A Contribuição Extraordinária para o Sector Energético (CESE) acabou por ser criada em 2013, por imposição da troika. Face à crise financeira, até os sisudos visitantes se aperceberam que as rendas das empresas de energia oneravam os consumidores de uma forma despropositada e injusta. Com efeitos na economia. Aliás, quando se fala dos custos de trabalho para as empresas, dos mais baixos da Europa, lembro-me sempre de custos de contexto como os da energia, dos mais altos da Europa. Depois da partida da troika, a GALP e a REN foram para tribunal para tentar extinguir esta contribuição e, em 2017, perante a irredutibilidade do governo, a EDP decidiu fazer o mesmo. A CESE mantém-se porque ela nada tem a ver com a crise financeira. Ela pretende recuperar parte das rendas que as antigas empresas públicas arrecadam. No entanto, as energias renováveis, as mais subsidiadas de todas, ficaram de fora.

Neste Orçamento de Estado o Bloco de Esquerda quis alargar a CESE às renováveis. Esta era pelo menos a sua proposta inicial. Acabou por propor um corte no subsídio, o que até teria um efeito mais automático na fatura paga pelos consumidores, já que ele é incorporado na tarifa quando o regulador define o preço final.

Ao dar o dito por não dito sobre uma proposta já acordada o governo traiu um aliado, pondo em causa acordos futuros. Esta cedência a uma empresa de energia milionária e subsídio-dependente é especialmente lamentável no momento em que se aprovou um orçamento globalmente positivo

Numa fase inicial, este tipo de energia precisou de fortíssima subsidiação pública. Preferia que esse tipo de apoio se tivesse feito com uma EDP totalmente pública. A necessidade dele existir em larguíssima escala prova, aliás, que Portugal devia ter empresas de energia do Estado. Assim não sendo, esta foi a única forma de garantir um investimento indispensável para o nosso futuro. Mas essa necessidade esgotou-se. A energia renovável é hoje bastante rentável. Tão rentável que gera um lucro de quase 60 euros por MWh, que contrasta com os 14 em Espanha ou os 19 nos EUA. Tomando os preços da EDP-R como referência para todo o sector, se pagássemos os valores médios cobrados pela EDP-R nos mercados em que atua, sairiam das faturas 400 milhões de euros em cada ano.

Os novos investimentos nesta área já não têm direito a subsídio público. E isso não impede que haja interessados e que este negócio seja florescente. Pior: o governo anterior permitiu em 2013 que, mediante uma modesta “contribuição” antecipada por parte das empresas, a subsidiação dos preços se estendesse por mais 7 anos, com perdas futuras globais de 800 milhões de euros para os consumidores. Além disso, há várias licenças concedidas há vários anos, ainda por implementar e sem prazo para extinção, que contarão com este apoio. De cada vez que um projeto destes avança a nossa fatura fica mais alta. A mais alta de toda a Europa. Em resumo: nem as renováveis precisam deste apoio nem o país se pode dar ao luxo de pagar a uma das mais lucrativas empresas portuguesas uma renda milionária. A EDP está a estrangular, com esta mesada, a economia nacional e o bem estar dos portugueses. A proposta do BE permitiria canalizar 250 milhões de euros que são gastos a apoiar o que não precisa de apoio para a redução das tarifas e do défice tarifário.

A proposta do Bloco de Esquerda não surgiu do nada. Não foi uma surpresa. Foi consensualizada com o Governo. E, resultado dessa negociação, aprovada na especialidade por PS, BE, PCP e PEV, com a abstenção do PSD. Até que, já fora do prazo, o PS a fez voltar ao Parlamento para a retirar do Orçamento.

Nem precisaria de debater a bondade da proposta apresentada pelo BE para considerar miserável o comportamento do Governo. Devo dizer que considero que o BE até foi manso. Não é possível ter um compromisso com quem é incapaz de manter a sua palavra. A justificação dada – que tinha havido um engano na votação – é pura e simplesmente falsa. Houve negociação, acordo e recuo. Depois disso não houve um engano, houve outra coisa qualquer. No PS fala-se de terem subitamente descoberto que tal medida levaria a perdas em tribunal, como levou em Espanha. Se assim foi, o amadorismo começa a assustar-me. Mas isso levaria, quanto muito, à busca de uma outra solução, e não a esta monumental e desleal cambalhota.

Como qualquer governo, este já cometeu muitos erros. Andamos há semanas a matraquear em assuntos menores, casos irrelevantes, episódios que ninguém recordará na memória. Mas este erro tem outra dimensão.

Ao dar o dito por não dito numa matéria já acordada o Governo traiu um aliado, pondo em causa acordos futuros. E deixou transparecer o pior do bloco central: a sua subserviência a um capitalismo rentista que impede o país de se desenvolver. Depois dos primeiros dois anos, em que este governo não teve medo de enfrentar os interesses de uma empresa de energia milionária e subsídiodependente, esta cedência é um preocupante sinal, especialmente lamentável no momento em que se aprovou um orçamento globalmente positivo.

E para isso, até eu o digo, não pode contar com o BE e o PCP. É neste tipo de assuntos que os dois partidos devem ser muito claros: se os ministros querem ser funcionários de empresas privadas mudem de ramo e não lhes peçam o voto.

8 pensamentos sobre “Uma traição. Uma nódoa. Um sinal 

  1. Estou amiúde de acordo com este comentador ,embora agora ,nem tanto…Sou apenas mais um das dezenas de milhares de micro produtores que ousaram apoiar uma iniciativa vanguardista que limitou a importação de energia e a consequente exportação de capitais que ,a ter mais aceitação ,mais depressa nos tornaria mais independentes dos grandes produtores de energia ,e,com essa energia produzida localmente ,mais fácilmente seria possível produzir riqueza e bens exportáveis …As renováveis têm tido uma trajectória ascendente e firme e,com uma possível continuação ,darão no curto prazo ,os resultados previstos …Com o desvanecer do motor de explosão no curto prazo e em função das alterações climáticas ,a solução está nas renováveis… Quase tudo foi vendido ao desbarato ,mas não o nosso sol ,nem a possibilidade de produzir cada vez mais e melhor ,com um impacto ambiental diminuto e,sempre ficará algum produto dessa produção no nosso país ..O preço do kw de origem renovável ,está querer descolar do tradicional de origem fóssil…. Será necessário fazer contas a curto ,médio e longo prazo mas ,com ou sem (M)mexia ,o caminho é por aí …

  2. Este sr.Daniel, como não podia deixar de ser, deixa transparecer a miúdo a sua veia maoista, o que me leva a pensar que está num acto de contrição relativamente ao “seu”. Bloco de Esquerda. È notório o mal estar e desconforto de certa gente que se exacerba na razão directa dos êxitos que o governo paulatinamente vem granjeando. Que fosse a defunta direita a ter essa reacção não me admiraria, mas vinda de sectores da esquerda cheiraria a escândalo se não se percebesse a razão por que o fazem. Quando se pensa que esta aliança, a Geringonça, é apenas repudiada pelos partidos de direita, pelas pessoas de direita, estão muito enganados. À esquerda há muito boa gente que não compreende nem aprova esta solução. Daí que cientes destes estados de alma tanto o BE como PCP tenham imperiosa necessidade de se justificar ante a sua clientela política, sob pena de serem rotulados de seguidistas do PS. Este exacerbamento do sr. Daniel é muito mau, mesmo que por ventura possa haver aqui e ali algo a corrigir, mas pelos vistos o sr. Daniel não é de meias medidas, é retumbante: TRAIÇÂO. Mas não é traição os dirigentes do BE e do PCP alinharem em manifestações de rua gritando slogans contra o próprio governo que apoiam. O sr Daniel não disfarça o frenesim de ver o sucesso desta aliança que apesar de espúria lá vai levando a água ao seu moinho. Para ele e outros como ele esta aliança contranatura há muito que deveria ter acabado. Tenham cuidado com aquilo que pedem e com os actos que praticam, pois já foram protagonistas de grandes desgraças
    Sabe o que é traição foi o que o BE e PCP fizeram ao governo do PS quando votaram contra o PEC IV, aliando-se à DIREITA, entregando-lhe o destino do país, cujos resultados todos sofremos na pele.

    • Verónica Cristina
      A “razão directa dos êxitos do governo” também tem por base os acordos por vezes difíceis com os três partidos que o apoiam, (BE-PCP e Verdes) sem os quais, o PS não tinha conseguido a maioria parlamentar para expurgar a páfia, e formar governo !
      No caso em apreço, o acordo com o BE foi “desmantelado súbitamente” de sexta para segunda feira, e até a senhora reconhece poder haver “aqui e ali algo a corrigir” ! Pois era essa correcção que seria feita, se o PS não faltasse ao compromisso já assumido, com a “desculpa” tardia de que tinha havido “um erro de interpretração” em que é difícil pessoas de bom-senso acreditarem !
      E não é TRAIÇÃO, o BE, PCP e PEV participarem em manifestações contra o governo ! É um direito constitucional, que até a UGT pratica, quanto mais não seja, para fazer figura de corpo presente ! E se assim não fosse, era como deixar que o governo se comportasse em roda livre, como se tivesse maioria absoluta, e fizesse tábua rasa dos compromissos assumidos com os partidos que o apoiam…
      É claro que TODOS os partidos tentam satisfazer “clientelas” ! Mas há clientelas e “clientelas” ! Hà os trabalhadores, os pensionistas, os desempregados, espoliados, roubados, aos quais é necessário baterem-se, via sindical, pela reposição dos seus direitos ! E há os “tubarões” como a EDP e outras que se batem pelos privilégios e o lucros obscenos dos seus accionistas ! Entre as duas “clientelas”, a Verónica Cristina…escolha !

  3. Ó menina Verónica você tá talhada como o leite de há 6 dias. O que você afinal queria dizer ao Daniel Oliveira que não consegui expremer o que quer que fosse da sua “metralhada”?
    Acho que a “contra natura” é você própria, que malha em toda a esquerda, com que intenção? Respirar fundo?
    Naba

  4. Se A. Costa travou a medida em última instância acredito que o tenha feito sob qualquer dúvida importante e perigosa para o interesse público. Acredito mais em A. Costa que no Bloco, muito mais que na Mariana pois foram estes os tais que levantaram a mãozinha no ar na AR para chumbar, ao lado dos corruptos pàfiosos, o PEC IV o que correspondeu à mais desgraçada política, precisamente, sobre aqueles que se propunham defender com tal votação. E também nesse caso argumentaram afanosamente, atrás do Louca, que defendiam Portugal de todos os males enormes que vinham a caminho com Sócrates.
    Do Oliveira é + ou – conforme os ventos sopram e agora deu-lhe para o velho radicalismo onde se formou e não fez por menos que atribuir “traição” a A. Costa. São assim os radicalistas da pureza política, os platonistas dos valores absolutos, os purista do valores em si que por tal saltitam de partido em partido e o mais que conseguem é terem um partido só para si onde são o SG e o único militante: no fundo um anarquismo em si.
    E ainda fico com a dúvida: não terá havido da parte do Bloco a malcriada política de criar o facto consumado ao vir para a praça pública (os media) anunciar uma medida de sua lavra, para agradar às bases e ganhar futuros votos, um caso ainda em discussão para criar o “facto consumado”?
    Se se calam ambos, provavelmente, haverá comportamento incorrecto de parte a parte.

  5. A realidade aparente, a que salta à vista, é exactamente essa: enquanto o PCP actua segundo o invariável cânon (m-l) o Bloco parece actuar segundo o anti-cânon de almanaque (de como sopra o vento).

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