É nisto que confiamos? 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/10/2017)

Daniel

Daniel Oliveira

O juiz Joaquim Neto de Moura não está num tribunal de primeira instância. Está no Tribunal da Relação do Porto. Não está na base do sistema judicial português. Participou na escolha de futuros juízes e teve a seu cargo julgamentos mediáticos. Não teve um momento infeliz. É reincidente na desculpabilização de agressores de mulheres. Não preciso de repetir o que já todos disseram: a sentença que o país, atónito, ficou a conhecer este mês, em que marido e amante recebem pena suspensa depois de agredirem uma mulher de forma bárbara (usando uma moca com pregos) porque ela era adúltera, é um convite a mais agressões a mulheres, um dos crimes mais comuns e mortais em Portugal. Isto é apenas o óbvio.

A sentença de Neto Moura, que sendo juiz perdeu o direito ao tratamento de excelentíssimo, de meritíssimo ou até de “senhor”, merece uma leitura mais severa. Ela viola os direitos humanos, o Estado de Direito democrático e a Constituição da República. Falta a este cidadão autoridade moral e cívica para continuar a julgar seja quem for.

Mas Neto de Moura não está sozinho. O Sindicato dos Juízes, sempre tão lesto a falar de processos e julgamentos, calou-se desta vez. O Conselho Superior da Magistratura avançou com um processo, mas todos ficámos com a desagradável sensação que só o ruído mediático o levou a dar esse passo. E é do Supremo Tribunal de Justiça a sentença que considerou como atenuante para um violador o facto de duas turistas terem ido “para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado ‘macho ibérico’”. O exemplo vem de cima e as coisas não mudaram muito nos últimos 28 anos.

A democracia e a integração na Europa mudou radicalmente o país nos últimos 40 anos. Mudou profundamente as escolas, as universidades, o Estado e as empresas. Mas a justiça mudou muito menos. A carreira de juiz continua a ser, em muitos casos, ambicionada por quem sonha com o prestígio do pequeno poder provinciano. A cultura da arbitrariedade e do autoritarismo domina os nossos tribunais. Basta entrar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa para sentir o cheiro a mofo. A Justiça é o grande falhanço da nossa democracia.

Claro que há muitas exceções de excelência e inteligência. A média nem será diferente de qualquer outra atividade, onde o ótimo e o péssimo são sempre a minoria. O problema é o que o sistema promove e valoriza. É isso, e não a qualidade média dos profissionais, que determina a cultura de uma classe.

Por isso, não é tão cedo que me ouvirão dizer que confio na nossa justiça. Não, não confio. Confio mais nas nossas escolas e na nossa academia, no nosso sistema de saúde e nas nossas empresas, na nossa política e na nossa imprensa do que na nossa justiça. A Justiça não pode, e bem, ser limitada por qualquer outro poder. Os seus mecanismos de autorregulação não são mais do que mecanismos de autopreservação, bastante laxistas e corporativos, como se vê pelo percurso deste juiz. Por isso ela manteve-se protegida das enormes mudanças a que assistimos no país.

O que me assusta é ver tantos portugueses a acreditarem que a regeneração da nossa democracia pode vir do poder judicial. É o oposto: é preciso que este país que tanto mudou consiga mudar as salas dos tribunais. Até lá, a selvajaria paleolítica do juiz Neto de Moura será apenas uma caricatura grotesca do atraso cultural da nossa justiça. Ou, pelo menos, de tudo o que ela tolera.

7 pensamentos sobre “É nisto que confiamos? 

  1. Tal e qual como das prostitutas,já ninguém desconfia,toda a gente o sabe,é público….É um lugar comum…Os medos herdados do ainda tão presente regime de Salazar e,dos seus pidescos anjos,e o obscurantismo habitual,devido á falta de informação ou informação deturpada pela comunicação social,criam um embroglio em que ninguém se quer meter…Transparência,honestidade e equidistância,não vêm ao caso….

  2. E entretanto : – Na mesma deliberação, enviada à agência Lusa, a direção da ASJP, presidida por Manuela Paupério,
    salienta ainda que, “sem prejuízo da legitimidade de críticas às decisões e aos seus fundamentos, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses repudia o aproveitamento do caso para descredibilizar toda a justiça portuguesa”. ”

    Mas quem é que “descredibiliza” a Justiça portuguesa ?

    São os “entorses” à Justiça, como estes que a Comunicação Social denuncia como é seu dever, ou os “netos de sousa”, mesmo que sejam uma minoria ?

  3. A frase chave deste texto, a meu ver, é “a Justiça é o grande falhanço da nossa democracia”. É, desde logo, porque continua a ser inacessível ou quase para os pobres. É, também, porque o 25 de Abril passou-lhe ao lado, nomeadamente dos seus elementos mais preponderantes, mais poderosos, que mantiveram no dia 26 de Abril o mesmíssimo estatuto que tinham no dia 24. Vejas-se o sobrenome de muitos dos nossos juízes e não só (a procuradora-geral da República chama-se Marques Vidal!!!) para se perceber, em parte, o problema que temos.
    Porém, há muito quem tome as dores de uma justiça pouco competente e mal preparada para obter ganhos políticos ou pessoais, e nisso eu prefiro não me meter. Quero dizer, não é por um juiz ser desbocado que Sócrates é necessariamente inocente (não estou a dizer que é ou não é, eu não sei). Mas é evidente que o facto de o ser, apenas serve para criar dúvidas na opinião pública. Ora, este caso é exactamente igual.
    É de uma evidência atroz que o Conselho Superior da Magistratura apenas abriu a boca depois de a indignação pública ser inegável e indesmentível. Ouvi hoje nas notícias que a Procuradoria Geral nada vai fazer relativamente ao acórdão do Neto de Moura. O sistema judicial, altamente corporativista e auto-imune, apenas fará aquilo a que for obrigado e nada mais.
    Percebo muito bem a referencia ao ambiente bafiento da faculdade de direito de Lisboa que o autor refere. Posso falar da faculdade de direito da Universidade do Porto ou da Universidade Católica da mesma cidade para dizer precisamente o mesmo. Mas não é só isto: lembremo-nos do que aconteceu no CEJ há alguns anos, quando foi tornado público que havia uma data de alunos a copiar em exames e a direcção da dita escola entendeu que deveria passá-los a todos! Honra seja feita ao Dr. Marinho e Pinto, com o qual discordo quase sempre, mas que deu voz à indignação pública e ajudou a que aquela pouca-vergonha (mais do CEJ do que propriamente dos alunos…) tivesse algum tipo de consequência. Embora os responsáveis da instituição, nomeadamente a sua direcção, tivessem passado, ao que julgo saber, sem qualquer tipo de consequência.
    Este Neto de Moura é, mais do que tudo, um bom exemplo do que é a justiça em Portugal. Penso que este movimento de indignação não terá grandes repercussões, o que é pena. A Justiça é o maior problema da nossa sociedade.

  4. Em 28 de Outubro de 2015, eu escrevia no Facebook·

    A ERC sempre “preocupada patrióticamente” com a nossa Comunicação Social !

    Há pouco tempo, resolvi dar-lhes conhecimento de um descarado atropelo à liberdade de Imprensa, e enviei-lhes um mail (com cópia para o Sindicato dos Jornalistas) com o artigo e O VÍDEO que o blog AVENTAR tinha publicado, alegando eu, ser obrigação da ERC investigar e agir em conformidade !

    Pois a ERC, na resposta, enviou-me uma série de items que eu teria que cumprir, para ela encetar averiguações ! Não bastava o VÍDEO que provava e comprovava a infracção !

    Eu, na douta e subliminar opinião da ERC, é que “teria de a substituir”, na consecução de provas incriminatórias !
    Eu é que teria de se “o plícia” da ERC…e de “borla”…

    NEM RESPONDI…

    E é “isto” a ERC !

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