O Estado falhou, Cristas chumbou

(Por Estátua de Sal, 24/10/2017)

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Estive a ver o debate da moção de censura apresentado na Assembleia da República pelo CDS.

Cristas abriu o baile, mesmo sem lhe se vislumbrar consorte apaixonado. Veio o fogo? A culpa foi do Primeiro-Ministro. Morreu gente? Também dele foi a culpa. Que venham tufões, maremotos, incêndios e terramotos, que a culpa será sempre do Governo. E quando não se conseguem evitar as catástrofes naturais, ou mesmo as catástrofes provocadas pelo desleixo humano ou pela sanha criminosa de alguns, é sempre o Estado que falha. É por isso que Cristas censura – diz ela -, é por isso que Cristas aponta o dedo ao coração de António Costa, qual arco pronto a disparar flecha mortífera e letal.

Mas Costa não se deu por achado. Respondeu em tom humilde mas construtivo. Não se deu sequer ao trabalho de rebater as acusações de Cristas, e discutir se o Estado terá falhado muito, pouco, ou assim assim. E fez bem. Limitou-se a enumerar as medidas que o Governo já tomou, vai tomar, e a forma de as implementar no futuro próximo. De certa forma, deixou Cristas a falar sozinha.

O Partido Socialista centrou a sua intervenção sobre a legitimidade do CDS apresentar uma moção de censura, tendo em conta os cortes nas políticas florestais empreendidos pelo governo anterior, com Cristas ao leme do Ministério da Agricultura a comandar as operações de devastação do mundo rural. Sim, legitimidade não tem, e memória também não tem porque fala como se esse passado não lhe pesasse e não tivesse existido.

E veio o rapazola do PSD, o Hugo Soares. Secundou Cristas e mais uma vez trouxe à baila a moção de confiança que o PS não teria coragem para apresentar por, segundo ele, não ter a garantia de ser aprovada pelo PCP e pelo BE. E por isso o Governo já não teria legitimidade para governar, afirmação em jeito de pergunta enfática que deixou a Cristas para ela poder brilhar e corroborar.  E ela assim fez. Tornou a desfilar a ladainha das falhas sob a forma de uma lista de perguntas sobre o que o Governo fez, deixou de fazer ou vai fazer, e concluiu que António Costa é apenas um político hábil quando o país precisaria de um estadista. É grande o desplante da madame eucaplipto, digo eu: como se a direita tivesse nas suas hostes políticos de grande vulto e de grande dimensão ética e política.

Mas, mais uma vez, Costa deixou-a a falar sozinha. Passou ao lado daquilo que designou por slogans e ataques pessoais. Limitou-se a falar do futuro, medidas, soluções, indemnizações, investimentos, reconstrução e mais reconstrução.

Mas o grande ataque a Cristas veio de Catarina Martins, que adjectivou de obscena a moção de censura por não pretender resolver problemas nem sequer honrar a memória das vítimas, mas sim aproveitar-se dessa memória. E isto sem deixar de pedir explicações ao Governo sobre as razões de tanta falha do Estado, e sobre o desenho de algumas das medidas que estão já apresentadas, como por exemplo o Siresp, os meios aéreos, e as Forças Armadas no terreno a defender a floresta.

O PCP trouxe ao de cima o seu pragmatismo. Pediu agilidade na implementação das medidas já aprovadas. E pediu que Costa esclarecesse se o financiamento de tais medidas não irá ser um pretexto para cortar na política em curso de reposição de rendimentos, em nome da sacrossanta austeridade que as regras do cumprimento do déficit, emanadas da Comissão Europeia, impõem. E António Costa respondeu. Não, não irá haver qualquer corte nas opções do Orçamento de Estado para 2017 já apresentado, de forma a compensar o financiamento necessário na implementação das medidas de política florestal e de protecção civil.

E depois de várias outras intervenções veio o trauliteiro deputado Montenegro, a voz do dono do defunto Passos. Sim, disse ele, o governo merece censura política, e Costa é apenas um tecnocrata de mediana categoria. Que desplante de novo. Como se tu, ó Montenegro, fosses um personagem de alta craveira.

E surgiu Carlos César e de novo o PS. Arrasou a direita, a moção de censura e os pedidos insistentes de uma moção de confiança pelo PSD. A confiança no Governo, disse, será comprovada brevemente com a aprovação do Orçamento de Estado de 2017.

E depois de várias outras intervenções, o denominador comum foi sempre o mesmo: para a oposição o Estado falhou, o Governo falhou e para este último a resposta foi sempre repetir o elenco das medidas que já aprovou e vai implementar para evitar novas tragédias. Em suma, a oposição a chafurdar nos acontecimentos trágicos, mas já passados, o Governo a querer esquecê-los e a olhar o futuro. Nada de novo, e também nada de novo na hora da votação: 122 contra a moção, 105 a favor.

No final, o que mais me surpreendeu? Que nem o Governo nem a oposição, no elenco das medidas que pretendem ver prosseguidas, tenham referido a necessidade de investigar a origem dos fogos. Todos assumiram que os fogos são originados por causas naturais – o que está muito longe de ser verdade -, e de nenhum dos lados surgiu uma palavra a exigir alterações no quadro judicial que pune actos de incendiários criminosos, e na estrutura das polícias e dos serviços de informação destinada a preveni-los.

De facto, o Estado falhou. Mas o Estado falha todos os dias e, a fazer doutrina a estratégia do CDS, pretendendo encontrar aí um motivo para derrubar o Governo, teríamos eleições todos os meses para reconstruir maiorias e eleger novos governos.

 

7 pensamentos sobre “O Estado falhou, Cristas chumbou

  1. Ok, e qual a utilidade disto? Nenhuma, é o que é. Mais uma vez não se passa nada no parlamento…
    A oposição podia ter feito um papel construtivo e em vez de perder tempo com essa palhaçada, porque não pedir pormenores sobre as medidas discutidas no concelho de Ministros passado? Discutir orçamentos, calendários e prazos? Não, nada disso é importante para a “nossa direita”, pelo menos não tão importante quanto uma efémera possibilidade de voltar a meter a mão no pote antes de 2019. Que se lixe o facto de ainda haver muito que possa arder em Portugal até ao Inverno, o que é importante é meter o nosso clube na cabeça o mais depressa possível.
    Ao obsceno acrescento repugnante e patético. A “nossa direita” é composta por pessoas horríveis e mesquinhas, algo que transcendem qualquer espectro ideológico imaginável.
    Mas o mais grave para mim é o referido no penúltimo parágrafo. Que admitam que não têm condições para investigar criminalmente os incêndios. Que admitam que tal é impraticável considerando as condições actuais das nossas forças de investigação criminais. É fraco, é deprimente mas ao menos é honesto.
    Mas varrer o assunto para debaixo do tapete desta forma, não, nem pensar. Admitir que 523(!) focos de incêndio individuais ao longo de um único dia (valor publicado pelo DN para o Domingo dia 15) fora resultados de… acidentes??? Não, isso é um gigantesco atestado de estupidez ao povo português.

  2. Por uma vez, concordo com tudo o que disse. Só que uma discussão racional desta matéria requeria que separássemos as águas. É que há dois tipos de questões que podem ser levantadas, para além da questão da origem dos fogos. Um é o problema do estado calamitoso da floresta, fruto de políticas públicas com muitos anos, e da responsabilidade de vários governos, a começar pelo anterior. Sobre isso, Ascenso Simões já disse o que era preciso. O segundo tipo de questões é o das responsabilidades de curto prazo que recaem sobre este Governo. Que medidas tomou para informar as populações sobre a necessidade de precaução no fim-de-semana fatídico? Porque é que o modelo de combate é baseado em épocas delimitadas no tempo e não nas previsões meteorológicas? Porque foi o alerta do IMPA desvalorizado e não foi decretado alerta em todo o território como em Agosto? É evidente que o Governo prefere olhar para o futuro e não se concentrar sobre as (suas) responsabilidades próximas, e Cristas não quer saber do facto de que terá contribuído para alimentar um barril de pólvora com as suas políticas. A austeridade mata, mesmo em diferido…

  3. Também acho que faltou uma palavra, uma dúvida, uma certeza. Se foi para não parecer insinuação dirigida à direita, que armar-se-ia em. vítima ou para evitar debates politicamente incorrectos, compreendo, pelo menos em parte.
    Fica então para nós, sociedade civil, a árdua missão de acusar, duvidar, confrontar e esclarecer, porque a justiça, como a vamos conhecendo, não mexerá uma palha para mostrar o absurdo, transformado em normalidade. Obrigado pelo texto certeiro, no momento certo.

  4. Imagine que semeia um pinhão no seu quintal. Os deuses condescendem e o pinheiro nasce e cresce. O seu trabalho não lhe permite cuidar da árvore e chama um profissional, para limpar o chão à volta, e podá-lo, se necessário. Teria de pagar o serviço,está visto. Um pinheiro médio demora trinta anos a crescer. Pelo menos trinta limpezas a fazer,para o terreno circundante não apresentar perigo de incêndio e para que a árvore medre,sem estorvo. Ao fim de trinta anos decide vender ao madeireiro a árvore,que já o incomoda. Atreve-se a pensar que um pinheiro médio vale o suficiente para pagar as limpezas e ainda lhe vai sobrar dinheiro para beber uma cerveja? Errou, e a resposta está no estado de conservação das matas: o dinheiro que geram não cobre as despesas! O resto do palavreado que por aí se ouve são tretas para enganar os tolos!!!

  5. Efectivamente não consigo entender por que razão nunca é imputada responsabilidade ao sistema judicial do nosso país nesta questão dos fogos.
    Penso que se pode afirmar que os fogos são maioritariamente de origem criminosa, pois é noticiado que há detidos pela gnr que são levados a tribunal. De facto, quinhentos fogos num só dia, mesmo considerando a situação meteorológica, é incompreensível de outro modo, ou seja, sem crime. Então porque se passa o tempo a falar só das responsabilidades do estado, sem nunca incluir na equação o fogo posto e a indústria dos fogos?

  6. O articulista desta novela é curioso.
    Tudo o que o CDS Assunção Cristas, o “rapazola” e o “trailiteiro” Montenegro do PSD disseram foi uma “palhaçada”. Tudo o que o PS Antonio Costa e Carlos César disseram foi “humildade”, “construtivo” e “arrasador”. O BE “atacou a obscena menção de censura” e o PCP foi “pragmático”.
    O que aqui importa referir é que após Pedrogão com os seus mortos, o governo deveria ter feito aquilo que diz que irá fazer no futuro (veremos) e a sua falta de inércia gerou o novo desastre de Outubro de 2017.
    É esta situação que fez crescer a ideia da moção de censura ao governo.
    É esta situação que fez crescer a ideia da moção de confiança ao governo, que iria colocar o BE e PCP numa situação difícil perante a opinião pública.
    Fugir às responsabilidades é o que está a ser discutido na atual legislatura.
    Estamos a falar de Pedrogão a Outubro de 2017.
    Haja paciência…………..

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