Não consigo ficar calado

(Manuel Alegre, in Diário de Notícias, 18/10/2017)

alegre

Sete séculos depois ardeu o pinhal de D. Dinis, o das “naus a haver”, morreu o verde pinho do rei poeta. Dá vontade de chorar e não consigo ficar calado. É um símbolo triste da falência do Estado, fruto de décadas de desleixo, de incompetência, de amiguismos múltiplos, da submissão do interesse geral a interesses instalados e da capitulação perante lógicas que não são a dos fins superiores do Estado e do país.

Olho o rosto do camponês publicado na primeira página do Público e não consigo ficar calado. É o rosto de séculos de pobreza, o rosto do Portugal esquecido e abandonado pelo próprio Estado democrático, o rosto daquela parte do país que foi deixada para trás quando a agricultura foi vendida a Bruxelas a troco de fundos para auto-estradas que hoje levam a lado nenhum. Um Portugal que já só existe nas páginas de Aquilino e de Torga. Vi as imagens televisivas, aldeias destruídas, casas a arder, homens e mulheres a defender com as próprias mãos os seus bens ou o pouco e quase nada que lhes resta. Vi outra vez automóveis calcinados, ouvi as notícias dos mortos e não consigo ficar calado. Porque passou a haver cada vez mais incêndios desde que foram extintas as quatro regiões militares e os governadores civis a quem cabia a respectiva prevenção e coordenação? Não sei. Só sei que se fizeram grandes reformas e que os meios de combate aos fogos foram saindo das mãos do Estado, entregues ou partilhados com empresas privadas. Não sou um especialista, mas é preciso corrigir o que não deu bons resultados. Vi o meu país a arder, sei que morreram cem pessoas em quatro meses e não consigo ficar calado. Talvez a culpa seja minha, porque fui deputado e participei na construção de uma democracia que a páginas tantas se distraiu e não soube resolver problemas estruturais, como o reordenamento do território e das florestas, assim como o combate ao abandono e à desertificação do país. Não se ouviu como se devia ter ouvido o arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles. É certo que por vezes protestei, mesmo contra o meu próprio partido. Mas não foi suficiente. Não consigo calar-me e sinto-me culpado. Já disse que não sou um especialista. Mas acho que os meios de combate aos incêndios devem passar para o Estado. Os meios aéreos para a Força Aérea Portuguesa. E é óbvio que se torna urgente a criação de um corpo nacional de bombeiros profissionais organizado segundo normas e regras de tipo militar, como de certo modo já acontece em Espanha. Vai ser preciso enfrentar preconceitos e interesses instalados, mas este é um tempo em que é preciso coragem para tomar decisões para que o Estado não se demita de exercer as suas funções de soberania e seja capaz de proteger o território e garantir a segurança dos portugueses.

10 pensamentos sobre “Não consigo ficar calado

  1. Um ‘mal’ de Alegre. A sua formação ou deformação, oriunda do antigo regime.
    Evocar agora que a Defesa/Força Aérea, seja aplicada na segurança do território.
    Não terá sido para isso, que a reforma do MAI-2007, criou uma Guarda Costeira na GNR,esvaziando um pouco a Marinha? Falhou então, uma Guarda Aérea na GNR.
    Em contrapartida, na Defesa, autorizaram uma FA dos pequeninos – um dezena de helicópteros no Exército; 125 milhões torrados, para zero helicópteros.
    O que não falhou, foi ter feito da GNR um novo ‘Exército’, para satisfação dos seus quadros superiores: generais e coronéis. Quando um general meu conhecido, alertou o MAI para tal disparate, o mesmo mostrou-se surpreendido! Pois.
    A bem do Regime.

  2. Como poeta é excelente, como analista deste trágico momento da nossa história , peca por defeito. Onde está o seu espírito de camaradagem para com o Governo que é da sua zona política? Lamentável !

    • Os verdadeiros amigos e camaradas são aqueles que nos dizem na cara aquilo que muitas vezes não gostamos de ouvir . Não é lamentável, mas sim de louvar a frontalidade de Manuel Alegre, diz as coisas quer gostem ou não , mas é a sua opinião.Era bom que soubéssemos respeitar as ideias de cada um.

  3. Já me pronunciei no Face Book sobre este assunto. Estou de acordo com o comentario do Manuel Alegre quando se refere aos interesses instalados no combate aos inceêndios florestais.Ouvi um comentario de rua que o Estado pagava cinco mil Euros por hora e por helicópetero a empresas privadas! Um desaforo a ser verdade.! Mas mais do que o dinheiro gasto, dói-me a alma e a consciência como cidadão deste triste país pela perda de tantas vidas! Vidas que nunca mais serão esquecidas pelos portugueses.Vítimas inocentes que o Estado de direito não soube evitar .
    Portugueses! Temos que exigir do Estado reparo por tudo que de mal aconteceu devido à incuria de todos os Governos que passaram por este país|.

  4. Obrigado MANUEL ALEGRE. Começo a ter vergonha de ser cidadão deste País. Desde o dia 25 de Abril de 1974 sempre fui votante do PS mas, por este ou aquele posicionamento do Partido, nunca nele me filiei, mas, repito, sempre fui final à minha ideologia. Agora, estou profundamente chocado com a catástrofe que atingiu quase metade deste pobre Portugal. Não, evidentemente, que considere o PS responsável pelo estado e organização plena dos Serviços de Prevenção e Ataque aos Fogos Florestais e Proteção Civil, mas sim à maneira aparentemente falhada e desinteressada como o governo se posicionou e atuou. Um governo – ou um responsável pela segurança do País e da sua população – deve ter inteligência, dignidade e vergonha; neste caso, com grande mágoa e incompreensão, nada disto observei.
    As minhas melhores e verdadeiras saudações.
    Carlos Nunes

  5. TAMBÉM NÃO CONSIGO FICAR CALADO:
    LÁGRIMAS DE CROCODILO!…
    MAS SÓ AGORA?!??!?!?!…
    ENTÃO AGORA DIR-TE-EI EU, depois de ter lido este desabafo em prosa crocodílida:

    Olho o rosto deste poeta citadino (e aburguezado) publicado aqui na Estátuadesal e não consigo ficar calado. É o rosto de quem se diz socialista há já algumas dezenas de anos e que tem consciência dos séculos de pobreza do Portugal esquecido e abandonado pelo próprio Estado que, como também este burguezote de fachada socialista o designa, se diz “democrático” (as aspas são minhas), como se a DEMOCRACIA fosse o que foi imposto ao luso e pobre Povo português (quão nobre POVO que foi capaz, em Abril de 1974, de fazer de um golpe militar corporativo, uma verdadeira e genuína Revolução Socialista (aqui tomado o socialismo enquanto a etapa que, historicamente, se seguirá ao fim do capitalismo), consubstanciada e plasmada/vertida (de forma brilhante quanto laboriosamente alcançada durante um ano de trabalhos dos deputados constituintes – de que este “judas” fez parte, tal como o Vital Moreira e outros tantos “judas” –, eleitos por esse mesmo luso Povo numa genuína e livremente assumida eleição em que votaram quase 93% dos inscritos com direito a voto) numa Constituição da República, por ventura a mais progressista do planeta Terra, que, no dizer do Direito Positivo (burguês e capitalista) de inspiração Kelseniana, passou a ser a “LEI DAS LEIS”.
    Mas esta CONSTITUIÇÃO de 1976, ao contrário da inventada pelo (não menos burguezote) Kelsen, não padeceu do argumento “Criador” do «Direito Positivo» kelseniano,
    [designado pomposamente pelo seu autor, por «Norma Fundamental Hipotética» (conceito este que, à semelhança do “Deus”, criador omnisciente e omnipotente da ICAR – que é o único que conheço por me ter sido ensinado desde criança –, nem eu nem ninguém sabe o que é, defendendo eu que, “O” mesmo ser divino/criador, foi inventado pelos teólogos, porque era necessário, mais que não fosse para “justificarem” o que a Ciência ainda – também porque impedida, em grande medida, pela teologia em ferrenha luta travada ao longo de milénios –, não havia conseguido demonstrar), para assim justificar a existência do “Primeiro Legislador”, ou seja, a “coisa”, o “Criador”, a tal «Norma Fundamental Hipotética», que faltava para ponto de partida e que, depois de aceite “este deus criador”, ou “Primeiro Legislador”, com base na mais elementar lógica aristotélica, descendo nos degraus da «Pirâmide de Kelsen», construírem o tão ambicionado «CORPUS NORMATIVO», de preferência na forma escrita, como veio a verificar-se.]
    mas esta CONSTITUIÇÃO DE 1976, dizia/escrevia eu, não padeceu do (divino) argumento “criador”, antes teve a força inspiradora dos referidos deputados constituintes, consubstanciada e/ou impulsionada pelas fortes manifestações de rua das lusas massas trabalhadoras e exploradas durante séculos pelo capitalismo, designadamente nos 48 anos do fascismo salazarento enquanto estádio supremo de um capitalismo caduco porque baseado, paticamente e apenas, numa economia pequena e aberta em que: (1) no “Sector Primário” predominava o minifúndio a norte do Tejo com uma agricultura familiar e de subsistência, e a sul a exploração latifundiária de uns quantos que “investiam” os seus ganhos nos bares, salões e casino da “Grande Lisboa” e da capital; (2) no “Sector Secundário” os equipamentos estavam obsoletos; (3) no “Sector Terciário” despontavam os serviços da banca e seguros, surgiram duas “grandes superfícies comerciais” para concorrerem com milhares de pequenos comerciantes que vieram a aniquilar completamente, ou quase, mas o Estado era o maior empregador; e, obviamente, (4) na exploração colonial fascista.
    [Para quem desconhecer, Kelsen, Hans, (1881-1973), foi um burguezote de nacionalidade austro-húngara mais tarde naturalizado americano (yankee) que, tentando: (1) fazer esquecer o milenar “Direito baseado/inspirado nos Costumes”; (2) impor a, por ele pomposamente designada, “Teoria Pura do Direito”, e, desse modo; (3) desenvolver uma “teoria científica do direito”, tendo definido uma tal “ciência jurídica” como o “campo de estudo cujo objecto são as normas jurídicas positivas”. Ou, dito de outro modo, Hans Kelsen defendeu, enquanto, repito, burguezote e ainda manipulador das palavras, que os Estados «…deveriam, ou tinham necessidade de, renunciar ao milenar costume de defender ideais políticos, de carácter subjectivo, …», em nome da sua «ciência pura do direito», por ele supostamente objectiva!?!?!?!…
    Foi ainda – este “admirável” jurista e filósofo (agora fez-me lembrar o Zézito eng. e filósofo) que dedicou quase toda a sua vida ao estudo do Direito e da Justiça – capaz de admitir como natural que, a Ciência «…não tem de decidir o que é justo, isto é, não tem que prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de facto é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um destes juízos de valor…»]

    E é por estas, e por outras, eu acho, ó poeta Alegre, que ainda hoje os Povos, a esta “ciência jurídica” sujeitos pelas elites burguesas e capitalistas de que, tu, poeta Alegre, também fazes parte, continuam, por todos estes “encantadores” Estados de Direito Democrático, a sofrer, na carne, as consequências da chamada “lentidão da justiça”, desta “justiça” burguesa e capitalista assente no tal “direito positivo” kelseniano, problemática esta bem actual neste “jardim à beira-ma plantado” pelo facto de, finalmente, a “tal justiça” lusa (de onde já saíram Pintos Monteiros e outros que da “lei da morte” se terão libertado com o ridículo “caso das escutas de que sentenciaram a sua destruição”, como se ainda estivéssemos no tempo em que não existia a informática nem a internet), ter parido um enorme amontoado de folhas A4 escritas e mais uns milhões de ficheiros informático, e mais uns não sei quantos documentos e certidões, numa designada acusação a um grupo de (autênticos) gangsters lusos e outros, acusados (finalmente) de dezenas de crimes, e onde surgem figuras públicas que desempenharam funções governativas, banqueiros corruptos como o Ricardo Salgado, lusos ilustres CEOs todos condecorados pelo PR pelos seus “feitos gloriosos “a bem da Nação”, enfim, “coisas” que, digo eu agora, também teriam contribuído para te ajudar, a ti, poeta Alegre, a “não poderes ficar calado”, agora que os fogos te teriam feito “saltar a tampa”, mas que, aqui e agora não releva eu escrever mais, por enquanto!…
    Não obstante, depois de te ler, e de contemplar o ter abatido ar, evidenciado na fotografia aqui na Estátuadesal apresentada, não é que também me “saltou a tampa”!?!?!?!…
    Ora lê, para depois me dizeres algo, se, obviamente, assim o vieres a entender por bem:
    TROVA DO FOGO QUE PASSOU
    Para Manuel de Melo Duarte Alegre

    Pergunta agora ao fogo que passou,
    por mais sítios, além de Pedrógão,
    e que mais de 100 vidas ceifou,
    que te diga qual o nome do patrão.

    Eu sei, e sei que, todos nós, sabemos,
    o que te vai responder esse fogo,
    porque de novo, todos nós, bebemos
    o fel que, nestes regimes, só é dado ao Povo;

    todos nós, os cá “de baixo”,
    como dizia o leal e saudoso Miguel,
    porque aos amos que vão ao tacho,
    o fogo que mandam pôr, sabe-lhes a mel.

    E se, quanto aos amos, o fogo nada te disser,
    até porque, por ventura, já foi extinto,
    ouve então, ó poeta burguês, o que tenho p’ra te dizer,
    na certeza, podes crer, de que eu te não minto:

    Aquela desgraça calada,
    que em tempos tão bem cantaste,
    como sabes, em Abril, ficou estancada,
    pelo luso Povo que, de igual, melodiaste.

    E pelas portas que esse Abril então abriu:
    entrou o vento que não te dizia nada,
    e em brisa sociável, como bem se viu,
    dos braços em cruz, tua pátria foi resgatada;

    esse hediondo e nojento capitalismo, antes feroz,
    que há mais de 400 anos
    vinha ceifando a alma de todos nós,
    sempre a mando dos mesmos amos,

    e que até, sem pudor, se serviu do fascismo
    durante mais longos 50, ou quase,
    tremeu; e, por fim, restituiu ao povo os ideais do socialismo
    para que a roda da História não parasse!

    E foi então, que, depois, no mais puro Parlamento,
    da história do meu (e teu) país,
    essa brisa se transformou em vento,
    esse vento (novo) que tudo diz!…

    E na principal Lei ficou plasmada,
    para aos eleitos servir de guião
    e cumprirem o que o Povo, na ditosa Abrilada,
    quis que fosse o fim dos tempos de servidão.

    Mas, o que depois eu vivi – e tu viste –,
    ao lado do meu Povo entusiasmado,
    foi o calar a voz dum Povo que resiste,
    inda que os seus amos o queiram amordaçado.

    Vi, nos tempos da liberdade consolidada,
    vendilhões de templos e de pátrias como tu,
    que no poder a que subiram, para o Povo fizeram nada,
    nem tu, imitando o Zeca, sequer, a esse poder quiseste virar o cu.

    Vi-te banhar nas águas do poder, ó socialista da treta,
    e vi-te entrar na sinistra embarcação,
    que conduziu o nobre socialismo à gaveta,
    pela mão d’um anafado e velhaco charlatão.

    E vi, claramente visto, que, nem no verso ou em prosa,
    te quiseste ejectar da tenebrosa embarcação,
    antes seguiste de forma servil, quão garbosa,
    e até integraste a sinistra tripulação.

    Vi, ainda há pouco, e durante mais 4 penosos anos,
    as águas que, durante mais os 40 dos “do arco”,
    foram de rosa, d’azul e de laranja, coloridas por iguais amos,
    os mesmos que contigo navegaram no mesmo barco,

    enquanto à beira deste rio de novo triste,
    o luso Povo espezinhado pela manada,
    já sem ânimo, voltou à penúria e desiste,
    e a pátria se ajoelhou, pra de novo ficar parada.

    Vi, também, florir outros novos verdes ramos,
    que, por esse fogo posto agora, foram devorados,
    e ainda que eu sempre deteste de ter amos,
    pelo peso da minha mágoa, sinto os meus ombros curvados.

    Vejo-te agora, e leio-te, com esse ar acabrunhado,
    como qualquer crente e pecador cristão,
    que sabe poder ter o contador zerado,
    pelo recurso à salvadora confissão.

    Mas o tempo que vivemos, ó poeta!… põe-te em escuta,
    não é, de todo, um tempo negro, nem, sequer é de refugo,
    antes será de acção e das PALAVRAs
    (e também vai voltar a ser de luta),
    QUE TÊM A LEVEZA DO VENTO
    (que passa)
    E A FORÇA DA TEMPESTADE
    (que aí vem),
    como ensinou Vitor Hugo!…

    Outubro de 2017, do,
    aci

      • Meu caro, pelo carinho solidariedade que me mereces, enquanto companheiro nesta senda de esganar a burguesia, só espero que te não melindre muito eu sovar estes “socialistas de boca” que, por venderem gato por lebre e beneficiarem dos chorudos réditos, para mim são bem mais “alvos a vencer”, do que os autoproclamados liberais e neoliberais que, pelo menos, não mentem politicamente nos princípios programáticos e demais literatura que impingem ao Zépovinho Luso, e vão omitindo o termo capitalismo, mas nem por isso me ocupam as horas que gastei com este Poeta, e a maiúscula é minha e coloquei-a agora com idêntico sentimento ao que utilizei para escrever o meu comentário ao artigo dele!… que pena reclamar-se deste embuste de socialismo!….
        um abraço, do
        aci

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