Não é o nacionalismo, é a democracia 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/10/2017)

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Tenho lido lençóis de prosa sobre a legitimidade da Catalunha ser independente e outro tanto sobre se Espanha é ou não uma Nação. Este debate, que pretende naturalizar o conceito de Nação, é ele, na sua crítica aos nacionalismos, o mais nacionalista de todos. Não me parece que isso seja relevante. E é por isso que defendo a única posição que me parece respeitadora da vontade alheia e que sempre foi a da esquerda, incluindo a internacionalista: a defesa do direito à autodeterminação dos povos. Quer isto dizer que não sou eu, do alto da minha enorme sabedoria ou à procura de certificados de pureza nacional, a decidir quem merece e quem não merece ser independente. Deixo essa decisão para os próprios.

Sempre que digo isto aparecem uns espertalhões a perguntar qual seria a minha posição se a Madeira ou o Algarve quisessem ser independentes. Não querem, é a minha resposta. E quando atalho assim não estou a tentar despachar a conversa. Estou a dizer que na política os problemas existem quando existem ou quando é previsível que existam. Portugal não tem problemas com nacionalidades e Espanha tem. Essa constatação de facto chega para não termos de fazer um debate que os espanhóis têm de fazer. Se tivéssemos problemas de nacionalidade estaríamos obrigados a mudar a nossa forma de organização. Não estamos.

Os Estados independentes, nacionais ou plurinacionais, são construções políticas que resultam de acidentes ou de vontades coletivas. Como todas as vontades, sempre circunstanciais. Não são nem nunca foram coisas naturais. Ao contrário do que agora é costume dizer-se, a soberania dos Estados não carrega em si a semente do ódio e da divisão.

Carrega ou não, dependendo da natureza do poder político que lidera, da forma como se afirma ou da sua natureza mais ou menos étnica, mais ou menos democrática. Se é verdade que a rivalidade entre nações nos trouxe duas guerras mundiais e centenas de guerras locais e que o nacionalismo de direita é responsável pelo maior crime da história, também é verdade que a democracia, o parlamentarismo, o Estado de Direito e o Estado Social só foram e são possíveis com a soberania dos Estados. E que, perante o processo de globalização, a perda do poder dos Estados representa a perda de poder dos cidadãos na determinação do seu próprio destino. Quem diz que a ditadura é nacional esquece-se de dizer que também o é a democracia.

Devo recordar que alguns dos maiores crimes contra a autodeterminação e a liberdade dos povos aconteceram numa união de repúblicas (a URSS) e usando uma retórica supranacional. Dirão, com razão, que a URSS, ao contrário de outras uniões voluntárias de Estados, era uma ditadura. E eu respondo: também a Alemanha nazi, ao contrário dos Estados nacionais que os democratas defendem, o era. Não há nada de criminoso na defesa do Estado soberano cosmopolita e aberto ao mundo como a melhor forma de organização política quando isso se faz no plano da defesa da democracia. Assim como a União voluntária de Estados nada tem de colonial quando resulta e depende da vontade livre dos povos. A minha critica à UE não é, por isso, de principio. É uma critica à transferência de soberania de instituições democráticas sólidas e aceites por quase todos para instituições burocráticas opacas e que a quase ninguém dizem alguma coisa. E à evidente natureza ideológica de uma construção nada democrática, usada como instrumento contra as vontades populares e de imposição da vontade de uns Estados contra outros.

Nada tenho contra a organização política de Espanha. Mas parece que há, por razões absolutamente compreensíveis, povos de Espanha que têm. Com exceção do tempo de Zapatero, qualquer tentativa de negociação com vista a uma caminhada para a federalização de Espanha esbarrou com a irredutibilidade de Madrid. É por isso que os apelos ao diálogo são na maioria dos casos sonsos.

Os catalães não têm o dever de ser espanhóis. É tão simples como isto. Se Espanha quer que sejam, encontra uma plataforma de entendimento para que isso seja possível. Se está indisponível para o fazer, permite que estes se pronunciem sobre o seu futuro, num referendo que não obrigue o eleitor a pôr em perigo a sua integridade física. E não vou, se não se importam, contar manifestantes para saber quem tem mais apoio. Para saber a vontade do povo continuo a achar que o melhor método é o voto. Não vejo como pode, quem se opõe a isto, chamar-se a si mesmo de democrata.


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Um pensamento sobre “Não é o nacionalismo, é a democracia 

  1. Ouvi hoje uma senhora deputada do Parlament catalão acusar um governante da Generalitat de ter dito que «os Catalães são geneticamente mais próximos dos Franceses e os Espanhóis mais próximos dos Portugueses»… A ser verdade, cheirou-me a racismo primário…

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