PASSOS PASSOU

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 07/10/2017)

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Clara Ferreira Alves

(Dona Clara. Apesar de a zurzir de vez em quando, não posso deixar de sublinhar o quão bem conhece a “alma” do PSD que magistralmente aqui descreve. É por isso que ainda a vou lendo, qual garimpeiro que de vez em quando pode encontrar uma pepita de ouro… 🙂 

Estátua de Sal, 07/10/2017)


O PSD sacode o torpor dos últimos anos e prepara-se para a sessão de psicanálise. Ora a psicanálise do PSD é a da pátria, a do bom povo português.


Confesso. Já tinha saudades. Dos barões, das facas longas, e das curtas já agora, das noitadas, das jantaradas, da conspiração, das mensagens segredadas, dos recados disfarçados, das facadas e navalhadas, das piadas, das frases bombásticas como ‘Estou disponível para avançar, mas a minha hora ainda não chegou’, ou ‘A minha hora chegou, mas não estou disponível para avançar’. Ou da clássica frase ‘Miguel Relvas já está a trabalhar’, como se alguma vez tivesse deixado de o fazer, esperto como é em apanhar o zeitgeist no bolso. Tinha saudades das autoflagelações, das traições, das opiniões, das questões programáticas onde a gramática não é o elemento forte. Tinha saudades das paixões e devaneios, dos silêncios fundos como abismos, das lamentações, das aglomerações das classes subalternas, do fogo de vista e dos pensamentos rotundos sobre a pátria. Tinha saudades da ingratidão e do oportunismo. Até da caturrice de Cavaco se tem saudades nestas ocasiões de derrota. Espera-se dele um pronunciamento devidamente caturra e enfastiado.

Na verdade, Pedro Passos Coelho tinha reduzido o partido a um grupo de neocons cheios de decoro e desaforo, destituídos de um pingo de dramatismo. Sentia-se a falta daquela intensidade passional que vinha do passado e que transformava os congressos do PSD em óperas bufas ou em imitações de Scorsese em Little Italy. O Coliseu apinhado, Santana com a sua dama, homens de bigode em correria pela galeria, grupos de calças — que calças, que talento! dizia o Eça — arrumados a um canto em amena perversidade, senhoras agitadas, e grandes declamações de júbilo.

Enquanto o PS de Costa se transformará numa soneca albanesa, uns cem por cento de apoiantes, o PSD sacode o torpor dos últimos anos e prepara-se para a sessão de psicanálise. Ora a psicanálise do PSD é a da pátria, a do bom povo português. Tinha saudades do PSD. Achei que depois da frígida sensibilidade de Maria Luís e Vítor Gaspar, incapazes de um ricto facial, e da passividade urbana de Passos Coelho, o PSD nunca mais iria ao teatro. Era como se o partido estivesse em casa entretido a ver séries de televisão e telenovelas, com as pantufas calçadas e um chá com bolinhos feitos pela mãe.

Bastou uma noite e uma derrota histórica para os heróis do mar nobre povo se levantarem da poltrona. Até Rio, o homem das reticências e parêntesis e com horror a pontos finais, se mexeu da cadeira para ir jantar fora. Os trumpistas envergonhados estão prestes a abandonar a melhor sociedade e regressar às parcas carreiras, mantendo a pistola carregada e remirando a hipótese de um lugarzinho de comentador. Nunca se sabe. Ora este nunca se sabe é a melhor característica do PSD. É o equivalente partidário da velha frase portuguesa ‘Depois logo se vê’. Ou, ‘Alguma coisa se há de arranjar’.

O sangue voltou a fluir nas artérias sociais-democratas que de sociais-democratas nada tinham. Claro que ainda não se vislumbra o sopro de uma ideia no deserto, mas do drama e da discussão, da noitada e da conversa amesendada nascerá a luz. Pode ser um partido doente mas ainda é um partido preciso. Há que dar-lhe a transfusão de sangue (mas não do Lalanda), o suplemento vitamínico, o tónico cerebral, as ervas curativas, a sessão de Pilates, o treino com pesos, e umas aulas de krav maga. O Costa é mais capoeira, uma dança acrobática. O PSD precisa de ganhar músculo e reabilitar o neurónio, adormecido por anos de sonolência cavaquista e oportunismo negocista. Não assistiremos à morte do César no Senado, não teremos um bruto para isso. O passismo, corrente anémica, não terá discípulos que transcendam a presença de Passos. Lá pelas províncias, as costureiras estão a receber as casacas para revirar antes do inverno.

Tudo isto existe, tudo isto não é triste. Em breve, o país ficará farto da placidez da geringonça, e já há quem deseje ardentemente, sobretudo os jornalistas e analistas políticos que preferem viver na Sicília do que na Suíça, que o velho PCP dê um pontapé na coisa e declare o direito à autodeterminação. A oligarquia sacode as teias de aranha e prepara-se para dizer a célebre frase ‘Eu bem vos dizia’. Os dinossauros estão extintos em toda a parte menos em Portugal, tal como os Templários.

A juntar-se à festa vem aí a famosa acusação de Sócrates, que contribuirá para a animação geral. Sócrates, como os do PSD, partido a que pertenceu antes de se declarar inefavelmente de esquerda, só veste fatos italianos e prefere a tragédia à paz dos cemitérios. Toda esta gente desatará aos berros e poderemos finalmente deixar de falar no défice e na dívida, tema de bocejo. Costa manda discretamente reforçar as tropas e a artilharia e espera que os azougados vizinhos do lado limpem os estábulos e lhe permitam dizer ao Jerónimo, ‘Estás na idade de te reformares antecipadamente e sem penalizações’. Ora no PSD não há reformados. Os barões continuam na vida ativa e têm mocidade eterna.

Passos passou.

4 pensamentos sobre “PASSOS PASSOU

  1. Vamos pôr as coisas no seu lugar: o PSD nasceu PPD (Partido Popular Democratico) Um artista de quem não me recordo resolveu dar “uma golpada” e mudou o nome para PSD (Partido Social Democrático). O PPD/PSD continua no Partido Popular Europeu que tem de tudo menos Sociais Democráticos Não se continue a enganar as pessoas dizendo~se social democrático o que não é .

  2. Caro “estatuadesal” o que aqui está não é qualquer alma do PSD que tem várias e muito diferentes mas, sim, a “alma” da Clara Alves, a clarinha, cada vez mais pró-anárquica, mais perdida e baralhada nos corredores e labirintos da política que nem a compensaram da sua astúcia e grandeza políticas nem a deixam ter agora uma vida sossegada de persona reconhecida.
    Coitada, depois de tanto dar ao dedo e à língua nos media ao serviço da causa a existência continua a custar viver e carregar e sobretudo cada vez mais incompreensivelmente para ela.

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