O que é que se passa na Europa e em Portugal face à Catalunha?

(José Pacheco Pereira, in Público, 23/09/2017)

 

JPP

Pacheco Pereira

Os catalães mereciam mais dos portugueses. Por interesse nacional, pela democracia e pela liberdade.


Não se percebe o que é que se passa na Europa e em Portugal perante os acontecimentos na Catalunha. Ou melhor, percebe-se bem de mais. O governo e a Assembleia catalã pretendem realizar um referendo para perguntar aos seus cidadãos se querem ou não uma Catalunha independente. Do ponto de vista do Estado espanhol, e da Constituição espanhola, o referendo é ilegal, o que implicaria que deste ponto de vista os seus resultados seriam juridicamente nulos. Impedir a realização do referendo é uma coisa de natureza muito diferente e destina-se a impedir não os seus efeitos jurídicos, mas os seus efeitos políticos. Por isso, o problema é eminentemente político e o modo como tem sido tratado é igualmente significativo no plano político.

É por isso mesmo que não compreendo, ou melhor, compreendo bem de mais, por que razão se silencia o debate político e se aceita o modo como o Governo espanhol está a reagir, com prisões, congelamento dos fundos, fecho de sites na Internet, ameaças de todo o tipo e, na prática, ocupação policial de instalações sob jurisdição do governo da Catalunha. Como não se quis invocar o artigo da Constituição espanhola que permitia, na prática, a ocupação policial da Catalunha e a cessação da sua autonomia, para evitar seguir os procedimentos legais da sua aplicação, a actuação governamental espanhola é igualmente de duvidosa legalidade. De novo, voltamos ao problema político que se pode resumir facilmente: os catalanistas esperam uma maioria de votos a favor da independência e os “espanholistas” temem o mesmo resultado. Não adianta dizer na mesma frase que se pensa que, se fossem votar, os catalães recusariam a independência, e impedir o referendo que, nessa presunção, daria uma forte legitimação ao Estado espanhol e um brutal golpe nas aspirações independentistas. De novo, insisto, uma coisa é fazer o referendo e assumir como nulos os seus resultados, fossem num sentido ou noutro; outra é impedi-lo. O impedimento mostra medo do voto, e isso fragiliza muito a posição governamental e dos partidos hostis à possibilidade de independência catalã.

Neste contexto, é perigoso o modo como as instituições europeias estão a actuar, acompanhadas, como é habitual nos momentos mais decisivos, por uma espécie de consenso comunicacional, que faz suceder artigos sobre artigos, noticiários tendenciosos sobre noticiários tendenciosos, contra o referendo catalão. Basta ler a imprensa e ver a televisão espanhola para perceber que não há verdadeiro debate sobre o que se está a passar, mas uma barragem de posições que tem em comum serem todas contra o referendo e a possibilidade da independência catalã. Estamos a falar da comunicação social de um país e uma democracia europeia, e ninguém parece espantado e revoltado com tanta unanimidade agressiva, com os jornalistas a incorporarem na sua linguagem todo o vocabulário e argumentário anti-catalão. Ora, isto não é normal, como não é normal o esforço das instituições europeias para isolarem a Catalunha, as mesmas que aceitaram o referendo sobre a independência da Escócia (que se irá repetir a curto prazo) e agora se calam perante um processo de controlo e manipulação comunicacional e perante a repressão política que se abate sobre a Catalunha. Sim, repressão política, que parece deixar indiferentes todos aqueles que vêm para a rua protestar contra qualquer violação dos direitos e liberdades e muitos dos quais certamente apoiam o referendo curdo pela independência do Curdistão iraquiano e acham abusiva a posição de o impedir por pressão da Turquia.

E depois o argumento da legalidade é o mais hipócrita de todos. A mesma Europa que recusa o referendo catalão participou num processo ilegal de derrube do legítimo Governo ucraniano, apoiando as forças protofascistas que ocuparam a Praça Maidan em Kiev, com a consequência na guerra civil nos Donets, na intervenção russa e na ocupação da Crimeia. Sim, o Presidente corrupto que foi derrubado com o apoio da União Europeia era o Presidente legítimo e eleito da Ucrânia.

Por isso, não me venham com argumentos elásticos sobre a legalidade, que ocultam a política. Na Europa já houve, aliás, processos de divisão entre parte de um país unido, como aconteceu na Checoslováquia, e a Europa fecha os olhos a realidades como a da Moldova, onde há dois governos e dois “países”.

O que se passa é que há hoje na União Europeia um traço de autoritarismo sempre que se atinja ou possa atingir o statu quo europeu e nas questões de soberania. Verificou-se no “Brexit”, com ameaças feitas por altos responsáveis da União aos ingleses, cujo efeito foi reforçar o voto de saída, e verifica-se com todo o esplendor na Catalunha. Aliás, nota-se uma coincidência entre o europeísmo mais duro e a hostilidade contra o referendo catalão.

Ora, o independentismo catalão nada tem que ver com o nacionalismo basco mais extremado da ETA, nem sequer com as tentativas da Padânia em Itália. Se, na Catalunha, uma parte importante da direita catalã podia servir de contrabalanço ao independentismo, tal não aconteceu porque o PP foi praticamente varrido da Catalunha e foi afogado nos escândalos de corrupção que acabaram com o catalanismo mais moderado. O resultado foi o crescimento de partidos independentistas, que têm, aliás, uma longa tradição, mas que estão mais no centro-esquerda, e que têm travado uma luta política com os instrumentos da democracia e não com atentados e bombas. Agora que estão sujeitos a repressão, a Europa faz de conta que não vê, porque incorpora plenamente a posição do Governo espanhol.

No caso português, a minha perplexidade é ainda maior. Parece que os nossos espanholistas se esquecem da história portuguesa, tão recente como o pós-25 de Abril — já não é preciso ir à defenestração de Miguel Vasconcelos e ao papel da Catalunha na Restauração. Como eu o posso dizer com clareza, e admito que os nossos governantes não possam nem devam fazer, é do interesse nacional que não se dê uma concentração do poder centralista em Madrid, e por isso os portugueses sempre viram com simpatia os processos políticos do catalanismo e do galeguismo — o caso basco, por causa do terrorismo, é diferente — e nunca alinharam com a tradição de uma Espanha unitária imposta contra as autonomias ou as nacionalidades. Foi assim durante a guerra civil espanhola, em que o franquismo, de que em muitos aspectos o PP espanhol é herdeiro, esmagou as experiências federalistas e nacionais, e em que mesmo Salazar olhava com muita preocupação para as pretensões de integrar em Espanha a “anomalia” portuguesa. O mesmo tipo de preocupações se reproduziram depois do 25 de Abril, quando uma parte da reacção portuguesa foi organizar-se em Espanha. Depois, embora sempre com muita discrição, nunca se abandonou a ideia de que uma preocupação do “conceito estratégico de defesa nacional” passava por Espanha. E não era Olivença que preocupava os militares e políticos portugueses, era mais a delimitação das fronteiras nas ilhas madeirenses. Por que é que pensam que os presidentes da República mostram uma vontade de visitarem as ilhas Selvagens (e não é por causa das aves)?

Por todas as razões, os portugueses são historicamente próximos da Catalunha, embora quem leia a comunicação social veja o mesmo alinhamento com o Estado espanhol e a mesma linguagem autoritária que hoje é infelizmente tão comum na União Europeia (lembram-se da Grécia?). O debate tende a ocultar o aspecto político da questão e, por isso, mostra-se uma grande indiferença à repressão, ao unanimismo e manipulação comunicacional, à agressividade da linguagem centralista e, no fundo, a um atentado à legitimidade do governo catalão e da vontade dos catalães.

É porque o referendo é “ilegal”? Nunca vi tanto apelo à legalidade numa questão política conflitual e em que está em jogo uma vontade política que se quer (ou não) expressar pelo voto. E, se não custa perceber que o referendo pode ser impedido à força, já é difícil perceber como é que se vai governar depois a Catalunha. Não será com ofertas de dinheiro… E se novas eleições reforçarem os partidos independentistas funcionando como um referendo também sobre a independência? E no dia 1 não custa perceber que milhares de pessoas vão proteger os locais de voto e as urnas. Como é que se vai fazer? Prender toda a gente? Prender o governo da Generalitat? À luz do que se passou é já uma hipocrisia não o ter prendido. Como é que se vai lidar com a polícia autónoma, com os Mossos d’Esquadra, etc., etc.?

Os catalães mereciam mais dos portugueses. Por interesse nacional, pela democracia e pela liberdade.

7 pensamentos sobre “O que é que se passa na Europa e em Portugal face à Catalunha?

  1. Eu entendo quase tudo da narrativa de Pacheco Pereira… Só não entendo a questão de «os catalães mereciam mais dos Portugueses»… Só se for porque em 1640 separámo-nos definitivamente do centralismo de Madrid porque o governo espanhol estava demasiado ocupado com a rebelião da Catalunha. Será?… Se aquilo que está em causa é, em última análise um cruzamento de «luta de classes» e de «nacionalidades», creio que as posições a assumir por entidades políticas portuguesas (os partidos e movimentos) que não o Estado, é uma declaração de simpatia. Ou pelos trabalhadores catalães («latu sensu») ou pela identidade nacional catalã. Cada partido escolherá a sua.
    Entretanto, uma amiga francesa comentou-me um dia que se Amadeu Sousa-Cardozo (que ela quase desconhecia…) fosse catalão (como Picasso) seria certament MUITO mais conhecido em todo o mundo… Mas isto foi só um aparte.

    • É demonstrar que não percebeu tudo o JPP quis dizer. Sim, os Catalães mereciam mais dos Portugueses, e não é só por causa de 1640. Só um aparte, Picasso não era catalão, definitivamente. Amadeo morreu com 30 anos; Picasso morreu com 80. Foi só um aparte.

      • Tem toda a razão (no que diz respeito a Picasso)… A minha amiga francesa tinha essa impressão por causa da vivência de Picasso em Barcelona. Imagino que a existência de um museu Picasso em Barcelona também terá dado à minha amiga essa ideia. Mas o que ela queria mesmo dizer, emocionada com a exposição de Sousa Cardoso (que via pela primeira vez em Paris) era a de que se o Sousa Cardoso fosse espanhol, «outro galo cantaria»…
        De resto a curta vida de Sousa Cardozo, de facto, não ajuda…
        Entretanto, confesso a minha (continuada) incompreensão relatvamente aquilo que podemos fazer nós outros Portugueses relativamente a um problema interno do Estado espanhol. Para além da simpatia pelos Catalães (e pelos Galegos também…). E ninguêm me explica.

  2. Eu tinha alguma consideração por este sr, mas agora não percebo o que quer dizer ou não está no acontecimento, porque depois do referendo se ganhasse o sim eles tinha planeado a indenpencia o qual é ilegal. O ideal e normal era fazer um referendo em toda a Espanha, preguntado quais as comunidades que queriam ser independentes, e se todos estáva-mos de acordo em dar a indenpendencia, Isso sim é democracia e vontade popular.

  3. Também aqui Pacheco armado defensor das liberdades e condoído dos pobres catalãos vem defender o direito deste à auto-determinaçao.
    Eu tenho dúvidas se os catalãos têm mais razão que o povo espanhol, no seu conjunto, acerca da independência e separação, pois é disso que se trata e está em causa. Contudo Pacheco, em nome da democracia e de um acto que acha puramente democrático, é peremptório.
    Mas, mais uma vez, o Pacheco inclina-se e joga com os valores democráticos e da democracia pura conforme as suas simpatias do momento. Pois no caso do Iraque que era já um país independente reconhecido, e não uma região de país em luta pela cessessão, o Pacheco não se lembrou da democracia e do direito do povo iraquiano à sua independência e liberdade, antes pelo contrário, bateu-se intelectualmente e manifestou-se publicamente pela invasão e ocupação do Iraque e, ainda por cima nesse caso precisamente, o pretexto de invasão fosse uma mentira montada, essa sim, pela alta máfia republicana americana e europeia (incluindo o seu novo ídolo político Durão) .
    Que faz, afinal, Pacheco correr atrás dos casos corruptos que envolvem os seus amigos e armar-se de democrata puro e moralistão quando não estão em jogo os seus amigos políticos?

    • O que o faz correr é o “bon sens” e a honestidade. De facto Madrid teria ganho muito se tivesse organizado um referendo em toda a Catalunha, e até com voto obrigatório, para responder sim ou não a sua vontade de se tornarem independentes. E não tenho a certeza que o não teria ganho…

  4. Não percebo como num Estado de Direito, algo é políticamente exequível, se é juridicamente ilegal. Não existe o primado da lei? Ou a Lei não se aplica à política nem aos políticos? Como se pode aceitar o anúncio de uma ilegalidade, por parte de autoridades políticas, sem fazer tudo para impedir a ilegalidade? Onde ficaria o Estado De Direito?

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