Voar baixinho

(Daniel Oliveira, in Expresso, 02/09/2017)

 

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Na negociação do próximo Orçamento, BE e PCP vão manter-se fiéis ao compromisso de devolver rendimentos e direitos aos trabalhadores. Não desmereço a empreitada, sobretudo dirigida a funcionários públicos e reformados. Assim como não desmereço o aumento do salário mínimo, a integração de milhares de precários no Estado ou as alterações dos escalões do IRS para garantir maior progressividade. Tudo isto, associado a uma assinalável recuperação económica e à solução política que a sustenta, faz de Portugal um exemplo para a Europa. Mas ao concentrar tudo na reposição de rendimentos e direitos, BE e PCP estão a guiar-se pelos seus interesses imediatos e a facilitar a vida ao PS.

Tudo o que se fez e está a fazer é importante mas não muda o nosso futuro. Não se combatem os problemas sociais de um país sem mudar a sua estrutura económica. Não estou a falar dos bons indicadores, sempre circunstanciais. Estou a falar da sua sustentabilidade. Estou a falar da reindustrialização (não sendo certo que o ‘re’ não esteja a mais) de um país crescentemente dependente do turismo e de bolhas imobiliárias e com um capitalismo cronicamente rentista. À estratégia de redução dos custos do trabalho defendida pela direita a esquerda tem de contrapor uma estratégia económica que seja mais do que o deslumbramento totinho com as startups. À diminuição e privatização das funções económicas e sociais do Estado, a esquerda tem de avançar com reformas para o tornar mais forte e eficaz. Quer numa quer noutra área a “geringonça” tem escorregado. A ausência de um acordo tripartido em torno da reforma da floresta, a falta de investimento público e o estrangulamento dos serviços do Estado, sobretudo na saúde, revelam a falta de ambição deste projeto, que fica aquém do que se exige a um governo progressista.

A “geringonça”, pela sua natureza descomprometida, em que aqueles que garantem a maioria só são responsabilizados pelo que conquistam ao PS, pode estar condenada a ter vistas curtas. BE e PCP acreditam menos nesta solução do que os seus eleitores e tentam, antes de tudo, conter danos. O PS agradece, governando com a sua agenda, fazendo brilharetes excessivos em Bruxelas e cedendo apenas em áreas que aceita como fundamentais para os seus aliados à esquerda. A postura cautelosa com esta solução de bloquistas e comunistas está a permitir que os socialistas cedam menos do que podiam e fiquem com os louros de tudo o que se vai conseguindo, criando as condições para o fim da “geringonça”: uma maioria absoluta do PS que levaria António Costa a ter que negociar com as sensibilidades e clientelas do seu partido e, por mais que jure querer manter esta fórmula, a ignorar aliados sem peso para impor a sua vontade. Distantes do poder desde sempre, comunistas e bloquistas resumem as suas exigências a uma agenda “sindical”. É um vício pragmático de autopreservação de quem não se imagina no poder. E o PS, depois de décadas de consenso ao centro, não construiu um programa económico alternativo e sustentado ao da desvalorização interna que o PSD nos propôs.

A esquerda pode estar a desperdiçar uma oportunidade histórica para mudar a nossa economia e o nosso Estado. Apesar do milagre desta solução e da governação em contraciclo com o resto da Europa, tem-se contentado com voos baixos.

2 pensamentos sobre “Voar baixinho

  1. Com exceção do assunto “floresta”, que agora está na moda, há aqui alguma ideia ? Ou damos uma de rei leão que está cá só para dar ideias e os outros que se mexam ? Deve ser do fim do Verão. O sol já está baixo!

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