Imprensa e Venezuela: uma história exemplar de manipulação

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/08/2017)

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Sobre o estado comatoso do governo de Nicolás Maduro e a farsa eleitoral que organizou, já aqui escrevi na segunda-feira. Infelizmente, neste tipo de confrontos as pessoas esperam a escolha clara por um dos lados. Mesmo quando não há lado nenhum para escolher. Parece-me que também ficou evidente o que penso da oposição que, protestando em nome da democracia, organizou e apoiou um golpe militar contra um presidente eleito e largamente querido pelos venezuelanos, em 2002. E desde então nunca conseguiram respeitar qualquer ato eleitoral, confundido oposição com sabotagem.

Em resumo: a oposição a Maduro não é nem democrática nem melhor do que ele. A minha posição é simples: Maduro é o Presidente legítimo, a Assembleia Nacional dominada pela oposição é o parlamento legítimo. Foi esta a vontade do povo venezuelano que nenhuma das partes parece conseguir respeitar.

Dirão que dou uma no cravo e outra na ferradura. Penso que algumas experiências do passado deveriam fazer com que tivéssemos algum cuidado com clubismo, percebendo que por vezes nem o cravo nem a ferradura nos servem. Os que acreditaram na propaganda e viram, nos anos 80, os talibã afegãos como “freedom fighters” contra o comunismo e pela democracia só nunca se arrependeram porque a capacidade humana para esquecer os seus próprios erros é infinita. Assim como as críticas ao MPLA nunca me levaram a simpatizar com a UNITA e ainda menos com o passado colonial ou a constatação de que o nacionalismo ucraniano, disfarçado de europeísmo mas marcado pela mais violenta xenofobia, não me faz ter qualquer ilusão quanto às pretensões russas no território. Há casos de enorme clareza. Mas, na maioria, não há apenas dois lados. E por vezes nenhum se recomenda. É o caso da Venezuela neste momento.

Na noite de domingo tentei acompanhar os resultados eleitorais através de várias fontes. As oficiais venezuelanas, mesmo as que supostamente teriam um papel de arbitragem, exibiam um registo que deixava evidente a total falta de neutralidade. As da oposição, o mesmo. O pior é que, tirando alguns jornais especialmente exigentes (o “The Guardian” é para mim a melhor referência), a imprensa internacional alinhou pela mais descarada propaganda. Através do JORNAL “PÚBLICO” (não o português, mas o espanhol, claramente alinhado à esquerda), cheguei a várias capas da imprensa do país vizinho, especialmente interessado pelo que se passa na Venezuela.

As manifestações da oposição não têm sido menos violentas do que a repressão. Entre os mortos deste confronto estão não só polícias como candidatos chavistas assassinados. Mais uma vez, é bom ter cuidado com o maniqueísmo. Entre os vários incidentes e ataques, há uma explosão que deixou sete polícias da Guarda Nacional Bolivariana feridos. A cena, em vídeo e com a foto, PODE SER VISTA AQUI. É o segundo atentado desta natureza. O último foi a 11 de julho, causando também 7 feridos entre a polícia. Sabemos que em momentos destes há confrontos entre polícias e manifestantes e feridos de ambos os lados. Não é esse o tema do meu artigo. É como a imprensa retrata a realidade, transformando o dever de informar em propaganda.

A foto desta explosão correu mundo. Foi usada em quase toda a imprensa espanhola. Mas, e esta é a parte interessante da coisa, para ilustrar a repressão do regime de Maduro, usando a foto do atentado contra a polícia, o “ABC” titula: “Maduro encobre com violência e repressão o fracasso da sua Constituinte”.

 

abc

Todos com variações da mesma foto, o “El Mundo” titula que “Maduro executa o seu golpe”

 

elmundo

o “La Razón” diz que houve um “Banho de sangue em ‘Madurazo’”

 

razon

o “La Voz da la Galicia” afirma que “A votação golpista de Maduro abre a violência na Venezuela”

galicia

e o “Herlaldo de Aragon” conta que “Maduro reprime o boicote eleitoral da oposição”.

heraldo

Os exemplos são do “Publico”, ele próprio um jornal alinhado.

O caso é pequeno mas, pela sua clareza, interessante. A utilização de uma foto que retrata um atentado de manifestantes da oposição para ilustrar a repressão do regime não mente numa ou noutra coisa. O atentado existiu e as fotos são reais e daquele dia. A utilização de uma foto para ilustrar o oposto do que ela conta é a mentira. Uma mentira consciente que nos explica que a ideia de que a imprensa é um corpo que paira sobre a realidade, virgem e acima dos outros poderes, é uma ilusão infantil. Hoje e sempre ela envolveu-se nos conflitos e não raras vezes manipulou em nome da propaganda. Neste caso, para simplificar um conflito, transformando o agressor da foto em vítima do texto e vice-versa.

Com as redes sociais, o papel da comunicação social no confronto político é mais evidente. Há mais escrutínio e crítica, umas vezes justa outras injusta, umas vezes motivado pela verdade outros pela intoxicação. Sim, há uma campanha para desacreditar a imprensa. Mas quem tantas vezes troca o jornalismo pela propaganda e a informação pela manipulação consciente não se pode queixar da desconfiança. Só a imprensa pode desarmar o descrédito. Credibilizando o seu próprio trabalho. Não deixará de ser atacada. Mas sem razão.


 

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3 pensamentos sobre “Imprensa e Venezuela: uma história exemplar de manipulação

  1. É o capitalismo a funcionar no seu pleno, como sempre, mas esta pessonha nunca é referida.
    Porque será?
    Diz o Povo, lá do alto da sua sabedoria, que:
    《Quem fala no barco, quer embarcar, ou então já embarcou!》
    Cá por mim, e no que toca a pôr FIM a este hediondo capitalismo enquanto sistema económico-social dominante, eu ando SEMPRE a galar nele porque já embarquei, continuo e continuarei embarcado até wue tal desiderato se verifique, pois não gostava de morrer sem antes voltar a viver como vivi nos tempos da nossa CR de 1976, enquanto LEI FUNDAMENTAL do PORTUGAL que foi capaz de fazer ABRIL!…
    E Você?????

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