Aconteceu.

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 29/07/2017)

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Gente como nós. Homens, mulheres e crianças morreram na tragédia de Pedrógão. Ouvimos o número de mortos e morremos também. Fossem mais, fossem menos, morreríamos sempre. Cada pessoa que morreu era o centro da vida de outra e de outras pessoas. Cada homem, cada mulher, cada criança perdeu o direito ao futuro. Morreram. E nós deveríamos morrer também.

A empatia, o sermos o outro, dispensa a loucura mediática, o concurso de audiências à conta de gente como nós, a gente que morreu. A empatia não dispensa a necessidade de factos, mas a decência tem de ter por pornográfica muita da cobertura mediática que foi feita, cheia de abutres em cima das vítimas indiretas a recolher testemunhos aflitos, drones a mostrarem a mediatizada “estada da morte” ou diretos ao lado de cadáveres, como se os factos e as notícias que deles resultam fossem equivalentes a imagens, ao furto da privacidade da dor, ao desrespeito pela memória de quem morre. A fome pelo fogo sobre o fogo foi maior do que o jornalismo de algumas e de alguns.

Tudo isto seria imperdoável ainda que fosse uma “experiência mediática” do momento, mas um mês depois da tragédia uma capa do “Expresso”, uma capa do “Jornal i” e a credibilidade não testada da empresária Isabel Neto lançaram a suspeita, inadmissível em democracia, de que o Governo estaria a ocultar o número de mortos de Pedrógão para “salvaguardar a sua imagem”. A acusação foi sendo lançada como se vivêssemos no Chile de Pinochet. Pessoas como Henrique Raposo veicularam tranquilamente esta tese macabra.

Dias a ouvirmos esta sequência de palavras: “número de mortos”. Como era sabido, os nomes das tais pessoas como nós, que morreram, a tal “lista”, estava sob segredo de justiça. Mais de quarenta anos depois do 25 de abril, jornalistas e cronistas faziam por fazer esquecer o que é a separação de poderes. A PGR emitiu um comunicado no dia 25 confirmando o número de mortos e desmentido os abutres e nenhum dos abutres pediu desculpas, preferindo refazer a história.

Esperaria serenidade política perante este horror. Esperaria que quem é eleito se lembrasse do que escrevi no início. Da gente como nós. Homens, mulheres e crianças que morreram na tragédia de Pedrógão. Do seu futuro aniquilado. De quem ficou para trás a chorar a perda.

Esqueci-me que PSD, hoje, não quer dizer o queria dizer há uns anos. Esqueci-me que há uma deriva populista e oportunista com o rosto certo, de nome Hugo Soares, o novo líder parlamentar que entendeu “dar” 24 horas ao Governo para este divulgar a “lista de vítimas” de Pedrógão. Eis o primeiro rasgo político de H.S. nas suas novas vestes. Cavalgar sobre uma dor incomensurável e exigir a António Costa a prática de um crime, porque os socialistas estariam a “esconder mortos” para se safarem.

Aconteceu. PSD, pela voz de H.S., passou todos os limites da ética política (e humana, diga-se).

Esperaria que CDS se distanciasse em absoluto deste PSD subitamente em trajes de frente nacional. Mas Assunção Cristas não resistiu. “Ameaçou” o Governo com uma moção de censura.

Eis que a PGR divulga a lista oficial dos nomes das 64 (foram sempre 64) vítimas, iniciativa que, evidentemente, só a mesma poderia tomar.

Hugo Soares desiste de convocar uma conferência de líderes e “congratula-se” pela divulgação da lista. Leram bem? “Congratula-se”.

Assunção Cristas, doutorada em Direito, desiste da moção de censura, mas insiste em dizer que foi o Governo que “arrastou a situação”. Ficamos a saber que a democrática líder popular queria mesmo que António Costa tivesse dado ordens ao Ministério Público.

Tudo isto aconteceu.

Jornais, jornalistas, PSD, CDS, todas e todos que alimentaram esta facada na nossa vida democrática continuaram a caminhar como se nada fosse.

Talvez tenha acontecido que gente como Hugo Soares não entenda que não foi o Governo o alvo da sua miséria moral.

Talvez, não.

Aconteceu.

12 pensamentos sobre “Aconteceu.

  1. Aconteceu e acontecerá enquanto houver muitos «Raposos» que atraiçoem os seus sem escrúpulos e se fiquem rindo impunes ,sejam quais forem as barbaridades que vomitem .Há uma sede descontrolada de regresso ao passado negro da ditadura . É preciso que as vozes da liberdade se fortaleçam e cerrem fileiras para que a Democracia seja a nossa bandeira e das gerações vindouras.

  2. Com a vitória da Esquerda ou a previsão da mesma, coincidência ou não, todo o grupo editorial gerido pelo Balsemão sofreu alterações.
    Da Visão ao Expresso, passando pela SIC, nada ficou na mesma. Por exemplo, é interessante como o Expresso decidiu acabar com as caixas de comentários, cujo nível seria, ainda assim, bem superior a outros jornais (hoje em dia diria “a outros pasquins”).
    Dir-se-ia que a Democracia abraçada e elogiada pelo Balsemão, terminou no dia em que foi estendida a todos os portugueses. Até lá um jornal de referência, depois um pasquim (daqueles de mau gosto, chiques, mas de muito mau gosto).

  3. Trata-se de um jornalismo indecente (pseudojornalismo), que tão recorrentemente se esforça por nos endoidecer a todos…principalmente àqueles que ainda vão utilizando a sua razão, em relação ao qual já começa a não haver paciência para lhe dar ouvidos e muito menos olhos para o enxergar!

  4. Sra Deputada Isabel Moreira.
    Partilho da sua opinião e lamento que “gente” pequenina como o Hugo Soares (e muitos dos que gravitam em redor do PPC) sejam os políticos que querem voltar a governar o país.
    A sua ambição cega-os.
    São destituídos do que diferenciam as pessoas dos restantes seres, os sentimentos e os valores como a dignidade e o respeito a que outros têm direito.
    Só os seus interesses contam, vergam-se perante os chefes, servindo-os para poderem, um dia, esperamos que muito longe, possam voltar a pisar os cidadãos deste país.
    Portugal merece mais!

  5. Gente como nós?
    Mas, vós sois uma classe “aparte”. não vejo grande diferença entre as “Isabéis” , as cristas e os Galos de Barcelos ou as prendas que descansam nos cantos escuros das lojas das Caldas- a diferença estará na oportunidade. Uma canta de galo a outra tem crista, mas não tem por enquanto espaço na capoeira para acordar quem ainda dorme.
    Povo e gente é uma coisa, personagens a quererem tirar partido das desgraças dos primeiros é outra questão e muito grave.
    O poder com os seus milhões, vem falhando desde o dia em que este País se fragmentou em projectos individuais, esquecendo que a bandeira e o ser Português não se pode limitar aos campos de futebol e as paradas militares.
    Parece-me que as multidões estão a acordar aos poucos e a recusarem lobos vestidos com pele de cordeiros.
    Já vos conhecemos há tanto tempo, repete-se, repetem-se numa doentia troca de poderes e retóricas gastas.
    Desgraçados dos que foram enganados e morreram.
    O respeito perante estes, seria maior se… fizessem silêncio.

      • Deve ser dos “óculos” mas eu vejo diferenças…A diferença dos que trabalham para uma élite de menos !0%,sendo essa percentagem constituída pelos senhores feudais que tudo controlam e mandam trabalhar a maioria dando-lhes o mínimo que a lei autoriza…É o sistema….Vejo no entanto do outro lado alguém que se preocupa com a educação,a ciência,a eficácia e a honestidade,reflectindo tendenciosamente na sua governação uma economia de mercado abrangente que premeia iniciativas válidas,procura que a maioria tenha melhores condições de vida,isto é melhor distribuir a riqueza gerada e dar embora menos,dar a mais contribuintes,isto é á maioria,contra a versão citada no início dos menos de 10%…Divisão tanto equitativa quanto possível….Oportunidades…e justiça social…

  6. Boa Isabel Moreira.
    Esses partidos, PAFiosos, PSD e CDS. Estao mesmo partidos com os seus liders mortos, (mas como não constam da lista) ainda não se aperceberam do ridículo em caem e insistem todos os dias.
    Só peço que as pessoas, o povo português tenha memória na hora de fazer qualquer cruz eleitoral. Porque é preciso, é urgente.
    Enterrar de vez esta gente.
    Cheiram mal.

  7. Vou cancelar em protesto contra o baixo nível a que os jornalistas chegaram posso aceitar a preção dos patroēs mas no passado ouve jornalistas que foram capazes de dar a volta a sencura ,mas agora são coniventes tenham vergonha VERGONHA

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