Bonança (económica) perfeita

(Sandro Mendonça, in Expresso Diário, 27/07/20117)

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       Sandro Mendonça

É assim: Portugal recupera numa Europa que expande num mundo que cresce. É uma espécie de anti-tempestade perfeita”, esse infeliz cliché que entrou na moda também por cá (por causa de Hollywood).

Esta “bonança perfeita” (ou super-ciclo) é como se tratasse de um momento peculiarmente feliz de confluência de tendências, todas a puxar e a empurrar para o mesmo lado: para cima, para a frente, pela positiva. É uma fase maníaca, que se sucede a uma fase depressiva de uma economia cada vez menos normal em nível (isto é, em média) e mais ampliada em termos de variação (isto é, mais volátil).

Vejamos em Portugal: a simultânea persistência do desemprego a cair, o défice a cair, os juros da dívida a cair, o clima económico a melhorar, o investimento a despertar, as exportações a perseverarem, o PIB a subir.

Mas a vejamos a Europa, onde a dispersão entre as taxas de crescimento é a menor deste a assinatura do euro. Onde até a Grécia volta ao mercado de capitais.

E o mundo como um todo, onde a taxa de crescimento sobe de 3,2% em 2016 para antecipados 3,5% em 2017 e 3,6 em 2017.

Mas é preciso tirar os óculos da realidade virtual. Há térmites a corroer o cenário. Em Portugal o preço das casas sobe pelo menos o dobro da média europeia, por isso há um sobre-aquecimento em curso que prejudica quem não faz vida na especulação no mercado imobiliário. Na europa, os que eram menos produtivos em 1999 continuam a ser o que menos crescem quase 20 anos depois. E no mundo vemos África paralisada, a América Latina a andar em círculos, e os EUA a irem para dentro.

E a histérica torrente de boas novas (económicas) acabará. A década começará a acabar. E o regime custo-do-capital-baixo-para-quem-o-queira-pôr-a-circular terá de esfriar. E por onde as coisas irão começar a dar de si? Resposta: por uma das pontas do complexo financeiro-imobiliário que fez estalar a crise há dez anos (sim, nada de estrutural mudou e as fontes de risco são as mesmas). A austeridade voltará a cativar e o “populismo” terá mais um fôlego. Nada foi reformado. Tudo foi maquilhado, como nos filmes. Já não é só a pós-verdade. É pior. É a pós-ficção (palavra que só valia enquanto ainda existia não-ficção).

Por isso lutas reais valem a pena. Contra a economia da transferência: isto é contra, as ultra-alavancadas Altices que aparecem para esmagar a força de trabalho das empresas que compraram para estarem a financiar os prestamistas externos perante os quais se empenharam. Contra a híper-engenharia dos conteúdos: onde os algoritmos anónimos se transformaram nos alocadores robóticos impunes de recursos que não lhes pertencem. Contra o sacerdócio da neo-burocracia: ou seja, rejeição dos clubes de tecnocratas que manipulam regulações e normalizações do alto da sua impenetrável impunidade pseudo-pró-mercado-livre.

***

Um aparte literário … Tudo isto é como diria Patrícia Portela: não há plano de contingência para um satélite que perdeu o seu planeta-âncora. O seu livro recém-publicado “Dias Úteis” diz mesmo muito sobre os anos inúteis que distam entre a actualidade e última-mega crise do sistema. Esta escritora não é fuga, é voz. E ainda reciclando uma passagem sua: a economia faria sentido porque poderia voar, não porque cai.

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