“Não me lembro de uma escuridão tão escura”

(Nicolau Santos, in Expresso Curto, 20/06/2017)

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Este é o seu Expresso Curto, mas este não é um bom dia. Foi há 48 horas mas ainda guardamos nas retinas as imagens dos carros carbonizados, esventrados, portas e capôs abertos, enfaixados uns nos outros ou contra os rails, virados nas bermas, como animais de ferro desesperados que tentaram fugir à morte pelo fogo – e mesmo sem termos estado lá imaginamos o pânico, o desespero, as dores, os gritos. Este não foi um fogo que ardeu sem se ver. Era o diabo e veio do inferno, conta quem lhe sobreviveu.

Como é morrer queimado? Como é sentir que caímos numa armadilha de fogo e de repente, por entre o pânico, o medo, o desespero, percebermos que não vamos conseguir escapar? Como é sentir o fogo a envolver-nos por baixo, por cima, pelos lados, nos cabelos, no corpo, o calor insuportável?

Como é possível morrer queimado dentro dos nossos espaços íntimos, aqueles onde nos sentimos mais seguros, as nossas casas, os nossos carros? Como é possível que uma tão grande tragédia tenha caído sobre todos nós?

Sim, acontece em todo o lado. Ainda há duas semanas aconteceu num prédio de 24 andares, com 120 apartamentos, em Londres. Fogo, de novo. 79 mortos. E agora Pedrógão Grande. 500 metros na Estrada Nacional 236. Sessenta e quatro mortos, 135 feridos, sete em estado grave. Acontece, mas não devia acontecer. Não podia acontecer. Estamos no século XXI. Temos robôs, drones, uma enorme parafernália eletrónica para melhorar a qualidade de vida das pessoas, a segurança, a vigilância. E depois morre-se pelo fogo como na Idade Média.

Podia ter sido evitado? A estrada da morte não devia ter sido cortada de imediato? O incêndio era pequeno e, de repente, foi uma coisa nunca vista, instalando o inferno em Pedrógão Grande e arredores? “Não me lembro de uma escuridão tão escura”, diz Zilda Simões, 87 anos. “Bastaram alguns segundos e tudo ficou reduzido a cinzas. Num momento as chamas estavam a quilómetros, noutro já estavam em cima de nós”, acrescenta Henrique Carmo, morador na Adega, pequena aldeia do concelho de Pedrógão Grande. “O lume era tanto, o vento era tão forte. Onde não havia lume, aparecia. Eram remoinhos, foi uma coisa fora do normal. Nunca na minha vida vi tal coisa”, explica António Dinis, de Vila Ficaia “Estas ruas, estas casas… era só lume. Foram oliveiras, videiras, casas. Não há explicação, foi uma coisa de repente que passou e que parecia o diabo”, descreve um amigo, Joaquim Costa. E depois há o olhar dos fotógrafos. “Aqui há sobretudo imagens e quase nenhuma palavra. E é duro e triste e comovente à mesma”. E há sobretudo as grandes reportagens do Ricardo Marques, Christiana Martins e Hugo Franco e as fotos do Rui Duarte Silva que temos estado a publicar no Expresso Diário.

E depois temos o Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa foi o segundo a chegar ao posto de comando, apesar de desaconselhado pela GNR por falta de condições de segurança, depois do secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes. Encontrou-o em desespero e puxou pelos ânimos: “não era possível fazer melhor”. Dois dias depois, o Presidente reconhece: um novo posto de comando trouxe “organização e meios muito diferentes dos que existiam” no sábado.

Confortou os que perderam familiares e bens, elogiou os bombeiros, “heróis nacionais”, falou com os presidentes das três camaras envolvidas na tragédia. Levou palavras de “ânimo, confiança e conforto”. Criticá-lo por isso, como fez o deputado do CDS, Helder Amaral, é lamentável. É nos momentos de crise que os comandantes devem mostrar que estão com o seu povo.

Claro que haverá ilações a tirar a todos os níveis. O Governo quer saber, por parte do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, o que é que houve de anormal nas condições atmosféricas e climáticas naquele dia; e “se houve falha de comunicações do sistema do Estado”, o SIRESP – Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal; e pediu esclarecimentos sobre “o encerramento ou não encerramento da Estrada Nacional onde se deu o fatídico caso”. O líder do PSD, Passos Coelho, também já o disse: “As pessoas quererão saber, têm o direito a saber, a explicação para que isto tivesse acontecido. Este ainda não é o momento de poder fornecer essa resposta cabal, eu penso que ela ainda não existe”, afirmou, salientando que a primeira resposta terá de ser dada ao nível técnico. Mas posteriormente terá de haver “uma avaliação de natureza política”. Vem aí grande agitação política e não vai ser bonito de se ver.

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