Procuram-se horizontes, urgente

(Por Boaventura Sousa Santos, in Blog OutrasPalavras, 15/05/2017)

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A barbárie pós-moderna alastra-se. Como alternativa, proporemos apenas a diversidade? Talvez as epistemologias do Sul — outras maneiras de pensar, sentir e conhecer — nos sugiram uma saída.


As oito pessoas mais ricas do mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população mundial (3,5 bilhões de pessoas). Destroem-se países (do Iraque ao Afeganistão, da Líbia à Síria, e as próximas vítimas tanto podem ser o Irã como a Coreia do Norte) em nome dos valores que deviam preservá-los e fazê-los prosperar, sejam eles os direitos humanos, a democracia ou o primado do direito internacional. Nunca se falou tanto da possibilidade de uma guerra nuclear. Os contribuintes norte-americanos pagaram milhões de dólares pela bomba não nuclear mais potente desde sempre, lançada contra túneis no Afeganistão construídos nos anos de 1980 com o próprio dinheiro deles, gerido pela CIA, para promover os radicais islâmicos em sua luta contra os ocupantes soviéticos do país, os mesmos radicais que agora são combatidos como terroristas. Enquanto isso, os norte-americanos perdem o acesso a cuidados de saúde e são levados a pensar que os seus males são causados por imigrantes latinos mais pobres que eles. Tal como os europeus são levados a pensar que o seu bem-estar está ameaçado por refugiados e não pelos interesses imperialistas que estão a forçar ao exílio tanta gente. Tal como os sul-africanos negros, empobrecidos por um mal negociado fim do apartheid, assumem atitudes xenófobas e racistas contra imigrantes negros do Zimbábue, Nigéria ou Moçambique, tão pobres quanto eles, por considerá-los causadores dos seus males. Entretanto, correm mundo as imagens ternurentas de Silvio Berlusconi a dar mamadeira a cordeirinhos para defendê-los do sacrifício da Páscoa, sem que a ninguém ocorra que naqueles minutos televisivos milhares de crianças morreram por falta de leite. Tal como não são notícia as fossas clandestinas de corpos esquartejados que não cessam de ser descobertas no México enquanto as fronteiras entre o Estado e o narcotráfico se desvanecem. Tal como temos medo de pensar que a democracia brasileira morrerá no dia em que um Congresso de políticos desvairados, na maioria corruptos, conseguir destruir os direitos dos trabalhadores conquistados ao longo de cinquenta anos, um propósito que, por agora, parecem lograr com inaudita facilidade. Há de haver um momento em que as sociedades (e não apenas alguns “iluminados”) concluam que isto não pode continuar assim.

Para isso, a negatividade do presente nunca será suficiente. A negatividade só existe na medida em que for visível ou imaginável aquilo que nega. Um beco sem saída converte-se facilmente numa saída se a parede em que termina tiver a transparência falsa do infinito ou do inelutável. Essa transparência, por ser falsa, é tão compacta quanto a opacidade da selva escura com que antes a natureza e os deuses vedavam os caminhos da humanidade. Donde vem essa opacidade se a natureza é hoje um livro aberto e os deuses, um livro de aeroporto? Donde vem a transparência se a natureza quanto mais se revela mais se expõe à destruição, se os deuses tanto servem para banalizar a crença inconsequente como para banalizar o horror do ódio e da guerra?

Há algo de terminal na condição do nosso tempo que se revela como uma terminalidade sem fim. É como se a anormalidade tivesse uma energia inusitada para se transformar em nova normalidade e nos sentíssemos terminalmente sãos em vez de terminalmente doentes. Esta condição deriva do paroxismo a que chegou o instrumentalismo radical da modernidade ocidental, tanto em termos sociais como culturais e políticos. A instrumentalidade moderna consiste no predomínio total dos fins sobre os meios e na ocultação dos interesses que subjazem à seleção dos fins sob a forma de imperativos falsamente universais ou de inevitabilidades falsamente naturais. No plano ético, esta instrumentalidade permite a quem tem poder econômico, político ou cultural apresentar-se socialmente como defensor de causas quando, de fato, é defensor de coisas.

Esta instrumentalidade assumiu duas formas distintas, ainda que gêmeas, de extremismo: o extremismo racionalista e o extremismo dogmatista. São duas formas de pensar que não permitem contra-argumentação, duas formas de agir que não admitem resistência. São ambas extremamente seletivas e compartimentadas, de tal modo que as contradições nem sequer aparecem como ambiguidades. As caricaturas revelam bem o que está para além delas. Heinrich Himmler, um dos máximos chefes nazistas , que transformou a tortura e o extermínio de judeus, ciganos e homossexuais numa ciência, quando regressava à noite a casa entrava pela porta traseira para não despertar o seu canário favorito. É possível culpar o canário pelo fato de o carinho que Himmler tinha por ele não ser partilhado pelos judeus? Por sua vez, é conhecida a anedota daquele comunista argentino tão ortodoxo que mesmo nos dias de sol em Buenos Aires usava chapéu de chuva só porque estava a chover em Moscou. É possível negar que por detrás de tão acéfalo comportamento não estaria um sentimento nobre de lealdade e de solidariedade?

As perversidades do extremismo racionalista e dogmatista vêm sendo combatidas por modos de pensar e agir que se apresentam como alternativas mas que, no fundo, são becos sem saída porque os caminhos que apontam são ilusórios, quer por excesso de pessimismo, quer por excesso de otimismo. A versão pessimista é o projeto reacionário que tem hoje uma vitalidade renovada. Trata-se de detestar em bloco o presente como expressão de uma traição ou degradação de um tempo passado, dourado, um tempo em que a humanidade era menos ampla e mais consistente. O projeto reacionário partilha com o extremismo racionalista e dogmatista a ideia de que a modernidade ocidental criou demasiados seres humanos e que é necessário distinguir entre humanos e sub-humanos, mas não pensa que tal deva decorrer de engenharias de intervenção técnica, sejam elas de morte ou de melhoria de raça. Basta que os inferiores sejam tratados como inferiores, sejam eles mulheres, negros, indígenas, muçulmanos.

O projeto reacionário nunca põe em causa quem tem o privilégio e o dever de decidir quem é superior e quem é inferior. Os humanos têm direito a ter direitos; os sub-humanos devem ser objeto de filantropia que os impeça de serem perigosos e os defenda de si mesmos. Se tiverem alguns direitos, têm sempre de ter mais deveres que direitos.

A versão otimista da luta contra o extremismo racionalista e dogmatista consiste em pensar que as lutas do passado lograram vencer de modo irreversível os excessos e perversidades do extremismo e que somos hoje demasiado humanos para admitir a existência de sub-humanos. Trata-se de um pensamento anacrônico inverso que consiste em imaginar o presente como tendo superado definitivamente o passado. Enquanto o pensamento reacionário pretende fazer o presente regressar ao passado, o pensamento anacrônico inverso opera como se o passado não fosse ainda presente. Devido ao pensamento anacrônico inverso, vivemos em tempo colonial com imaginários pós-coloniais; vivemos em tempo de ditadura informal com imaginários de democracia formal; vivemos em tempo de corpos racializados, sexualizados, assassinados, esquartejados com imaginários de direitos humanos; vivemos em tempo de muros, fronteiras como trincheiras, exílios forçados, deslocamentos internos com imaginários de globalização; vivemos em tempo de silenciamentos e de sociologias das ausências com imaginários de orgia comunicacional digital; vivemos em tempo de grandes maiorias só terem liberdade para serem miseráveis com imaginários de autonomia e empreendedorismo; vivemos em tempo de vítimas a virarem-se contra vítimas e de oprimidos a elegerem os seus opressores com imaginários de libertação e de justiça social.

O totalitarismo do nosso tempo apresenta-se como o fim do totalitarismo e é, por isso, mais insidioso que os totalitarismos anteriores. Somos demasiados e demasiado humanos para cabermos num caminho só; mas, por outro lado, se os caminhos forem muitos e em todas as direções facilmente se transformam num labirinto ou num novelo, em todo o caso, num campo dinâmico de paralisia. É esta a condição do nosso tempo. Para sair dela é preciso combinar a pluralidade de caminhos com a coerência de um horizonte que ordene as circunstâncias e lhes dê sentido. Para pensar tal combinação e, aliás, até para pensar que ela é necessária, são necessárias outras maneiras de pensar, sentir e conhecer. Ou seja, é necessária uma ruptura epistemológica a que venho chamando as epistemologias do sul.

5 pensamentos sobre “Procuram-se horizontes, urgente

  1. Prezado e ilustre Boaventura Sousa Santos,

    É evidente que tem razão. Assim como é evidente que muita “boa gentalha” dessa que por aí vegeta à pala do sistema económico-social que lhe serve de AVATAR, enviará a carapuça no que às responsabilidade de assim ser ou estar a acontecer respeita.
    Só que, lendo estas magistrais dissertações e teses implícitas, essa gentalha (vulgo, neste jardim à beira mar plantado, “os pafistas pafiosos” que, durante 40 anos, formaram o “arco da governabilidade”, que foi, em nome de ideais nobres como a social-democracia ou até sublimes como o SOCIALISMO, assegurando e garantindo a governança deste fustigado país), essa gentalha, escrevia eu, ao lerem mais este maravilhoso texto que V. Exa. escreveu, por certo continuarão a viver despreocupados no que ao surgimento de novos e urgentes horizontes respeita, confortados naquele adágio que defende que 《Vozes de burro não chegam ao céu》, pois será deste jeito que enfrentarão o texto, sendo que uma grande parte até nem vai ler com base naquele outro adágio que diz que 《Pelo andar da carruagem, vê-se logo quem vai lá dentro》ou o outro que proclama assim 《Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és 》.
    Já ensinou Marx que, “em última análise, o económico é determinante” para concluir que, “quem tem o capital é que vence”, se bem que também ensinou como fazer para por termo ao capitalismo.
    E quanto ao caos a que a situação está a chegar, também a saudosa Rosa ensinou que “SOCIALISMO OU BARBÁRIE”.
    A crise continua. Sempre o capitalismo, pelas suas contradições intrínsecas, enfrentou crises e delas foi saindo ciclicamente. Na de 1929, porventura a mais profunda quanto devastadora de vidas humanas que se verificou antes da de 2007/2008, bastaram apenas 3 anos para uma nova teoria económica, então elaborada pelo Keynes, ser aplicada e salvar o quase moribundo sistema capitalista. E salvou.
    Mas desta vez, já quase 10 anos vão passados, e a agonia parece acentuar-se, qual moribundo em fase terminal, ali e aqui com pequenos espasmos (de que podemos salientar o “milagre” invocado pela “Ti Teodora” – agora provavelmente a limpar o pó da sua bola de cristal e dos seus búzios –
    capaz, porventura, de vir a santificar o Prof. Mario Centeno que já até obrigou um pró-nazi alemão, castigado a ter que andar o resto da vida numa cadeira de rodas – e ainda há quem diga que não há Deus, ou que, se há, não é justo… – a descer da dita cuja e, como que de joelhos, a penitenciar-se pelas baboseiras descabeladas, quanto mal intencionadas, que ainda não há 3 meses evacuou, alertando o actual governo de Portugal para a necessidade de um novo resgate, tendo o desplanye e a pouca vergonha de comparar o Professor Mário Centeno, enquanto ministro das finanças da, agora tão pouco badalada pela lusa direita pafista e pafiosa, geringonça, ao nosso CR 7, classificando o Professor como o Cristiano Ronaldo do ECOFIN!?!?!…ao que chega o desplante.).
    Também, o capitalismo nesta sua agonia, faz lembrar o enorme, luxuoso e inafundável TITANIC na sua derradeira viagem, tenfo agora o pedante e irresponsável trump a assemelhar-se ao iceberg fatal.
    Veremos. Se a tanto nos for permitido….
    Mas, prezado Boaventura Sousa Santos, continue, por favor, a brindar-nos com estas suas pérolas, na certeza de que nem todos os portugas são porcos. E obrigado por mais esta. Um cordial agradecimento também ao amigo e companheiro de luta Estatuadesal e um abraço, do
    aci

  2. O caro Boaventura conhece o caso do argentino comunista ortodoxo mas não conhece ainda o caso do marxista anticapitalista tão ortodoxo que até é capaz de crer em Deus quando pensa que foi este o autor da transformação de um ortodoxo capitalista num aleijado coxo.

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