Fátima, Futebol e Festival

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 15/05/2017)

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Não há conversa mais previsível que o enjoo moralista com quase tudo o que sejam manifestações populares que não correspondam às recolhas etnográficas ou aos cânones neorrealistas.

Mas dos três F que o Estado Novo usou para reduzir os portugueses a uma simplicidade mais maleável e menos subversiva, dois já foram absolvidos e absorvidos pela intelectualidade nacional. Antes de tudo, o futebol. Hoje, até fica mal a um intelectual não saber de bola. E o fado, a que chegaram novas vozes. Hoje, até fica mal a um poeta não ter escrevinhado nada para ser fadistado. Só mesmo Fátima continua, por razões evidentes, fora da lista do consensual.

Quando era novo o fado era música de fascistas e o futebol alienação para mentes embrutecidas. Porque era suposto o povo passar o dia a fazer a revolução. Isto quando não estava a trabalhar, obviamente. Este espírito desapareceu ao ritmo que desapareceram as esperanças na dita revolução. Mas sobreviveu um discurso que me faz trepar pelas paredes: sempre que o povo se diverte quer dizer que está alienado e desinteressado daquilo que é relevante. O paternalismo, que retira aos outros o direito que nos damos a nós próprios – o do divertimento ou da fruição de cultura e da religião – é comparável a uma proposta que um dia ouvi num partido onde militei e que felizmente não passou pelo crivo do bom senso: o de não haver televisão à quinta-feira, como acontecia na Islândia. A mesma esquerda que se bateu durante décadas pelo direito dos trabalhadores a serem donos do seu tempo fora do trabalho tem a tentação de decidir o que os trabalhadores podem e não podem fazer com esse tempo que é só seu.

É verdade que a conjugação dos três F tem uma conotação política evidente. É verdade que ela corresponde à simplificação de uma identidade nacional que a propaganda das ditaduras de direita sempre precisou. Isso ou a nossa suposta tolerância e brandura de costumes, uma aldrabice excelente para pintar de cores suaves o colonialismo e manter bovino o bom povo. Também é verdade que o pão e circo sempre foram uma receita ganhadora para eternizar a tirania, que as aparições de Fátima foram, desde o início, um instrumento de propaganda antirrepublicana e anticomunista e que o fado foi extirpado do seu lado marginal para passar a ser apenas resignado. E que depois do fado veio aquilo a que, nos anos 70 e 80, se chamava de nacional-cançonetismo e que tinha, em ditadura e em democracia, o ponto alto nos serões em que o País parava para ver o Festival da Canção. Mas pode dar-se o caso do salazarismo não ter apenas plantado as sementes dos três F, ter colhido também os frutos do que já era popular para a partir daí forjar a simplificação de uma identidade que lhe era conveniente. Uma única, que as ditaduras gostam pouco da variedade.

Quem julga que Fátima, Futebol e Fado são sinal de atraso acreditou na propaganda salazarista, que os queria como instrumentos seus. Temos acesso a muito mais e já ninguém tenta resumir este povo aos três F . Mas continuamos a precisar de momentos coletivos em que nos sentimos, na nossa diversidade, uma comunidade.

Quis a suprema das ironias que um século depois das supostas aparições de Fátima, num tempo em que os ventos revolucionários varriam a Rússia e que os sentimentos anticlericais tomavam a elite política do país, tudo se encontrasse de novo, no mesmo dia. Parece que o passado se concentrou todo a dia 13 de maio de 2017: centenas de milhares de portugueses encontraram-se em Fátima, outros tantos festejaram o campeonato do Benfica e os restantes ficaram colados à televisão a verem a Eurovisão e celebrarem o seu patriotismo pop (mas com qualidade, apesar de tudo) . Como é possível que depois de 43 anos de liberdade, democratização do ensino e da cultura, de Europa e de acesso ao mundo, tudo pareça não ter mudado? Enganam-se: mudou tudo. Os três F – tendo o Festival tomado o lugar do Fado, que é hoje até é bem visto pela generalidade dos intelectuais – não eram sinal de coisa nenhuma. Faziam apenas parte da cultura popular e foram usados pela ditadura para uma simplificação identitária que lhe convinha. Já éramos muito mais do que isso então e, em democracia, ainda mais o seremos. E quem julga que Fátima, Fado e Futebol são sinal de atraso acreditou na propaganda salazarista, que os queria como instrumentos seus. O que mudou? Temos acesso a muito mais e já ninguém tenta resumir este povo aos três F (a começar por Fátima). O que não mudou? Continuamos a precisar de momentos coletivos em que nos sentimos, na nossa diversidade, uma comunidade. E isso pode ser bem mais saudável do que parece.


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2 pensamentos sobre “Fátima, Futebol e Festival

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