A bóia de salvação (mas é mesmo a última

(Francisco Louçã, in Público, 09/05/2017)

LOUCA1

De “sufoco em sufoco” sempre que há eleições. É mesmo a “última oportunidade” para a Europa, repete-se em Madrid e em Lisboa. Há pouco, era que a União teria poucos dias para evitar o “colapso moral” do “acordo sórdido” com a Turquia, “abjurando todo o património de que tem sido portadora no campo dos direitos humanos” (e abjurou mesmo, “todo o património”). “O tempo para salvar a Europa acaba este ano, porventura o mais tardar no Outono”. Ou “ninguém parece acreditar que Bruxelas (ou Berlim) tenha qualquer iniciativa nos próximos meses para responder à crise da eurozona”. Não é preciso mais ninguém, bastam os euro-entusiastas para um discurso catastrofista sobre o futuro imediato da UE. São eles quem garante que vem aí o “colapso”. Ninguém poderia ser mais carregado e mais temeroso, ou arriscar um prognóstico mais sombrio. Quem faz a festa, deita os foguetes e apanha as canas sobre a “última oportunidade”, o “sufoco” e o “tempo que está a acabar” são os euro-institucionalistas. São eles que nos dizem todos os dias que isto se resolve em dias e que a coisa está feia.

A eleição de Macron é então um alívio? Se é, passou depressa. Porque os números são esclarecedores: quase metade dos seus eleitores, 43%, só votaram nele para barrar Le Pen, eos que acreditam em Macron ou no seu programa são menos de um quarto dos seus próprios eleitores. Nunca houve tanta abstenção e tantos votos brancos e nulos. E Le Pen conseguiu 34%, ou a “desdemonização” ambicionada. Numa palavra, a França está pior depois desta eleição, em que se desagregaram os partidos tradicionais e não sabemos o que vem depois. Além disso, o destino deste populista – sim, populismo é o projecto de um novo Bonaparte que afirma ter vencido a diferença entre esquerda e direita e exige maioria absoluta – está pendurado das próximas eleições em que já mais de metade dos eleitores afirma receá-lo.

Não pode nem vai correr bem. E é tempo de nos perguntarmos então por que é que cresceu tal risco. A explicação está toda na teoria da bóia de salvação, apresentada in extremispelos mesmos ideólogos que nos anunciavam a catástrofe em poucos dias ou o mais tardar no Outono. Eles maravilham-se com a vitória de Macron, o homem que manteve o garbo da sua posição, ele que vai liberalizar despedimentos e cortar 50 mil milhões nas despesas do Estado, por ser o cavaleiro da Europa e da globalização contra o nacionalismo.

A teoria é esta e Macron repete-a insistentemente, é uma máquina de guerra: já não há esquerda nem direita, só há globalização e localismo. Isto serve vários propósitos: em Portugal, serve para recuperar a ideia de que o PS não se pode aliar com a esquerda (os localistas) e tem de salvar o PSD (e vice-versa) reconstituindo a aliança histórica (dos globalistas); na Europa, serve para afirmar uma forma de dominação que se impõe sobre os regimes nacionais determinando as “medidas estruturais”, nome adequado para essa mudança do modo de vida que dispensa as políticas sociais em prol das rendas financeiras.

Assim sendo, a bóia de salvação, que é a “última”, asseguram pesarosamente os euro-entusiastas, é o nome do risco: é Macron quem se arrisca a derrotar Macron.

Note-se que esta teoria declara uma vítima: se a globalização, ou seja, o domínio da finança, se impõe nesta dicotomia fácil contra o nacionalismo (e como Le Pen é cómoda para este propósito), então a democracia não tem lugar. Não existe democracia na globalização, por que não há nela nem soberania nem capacidade de decisão pelas comunidades que conhecemos, que são nacionais. Por isso, a Europa de Macron abdica de si mesma e é por isso que os analistas mais argutos nos dizem que o seu sucesso depende de Merkel. Mas Merkel não muda nem mudará e Schultz também garante que não quer mudar nada. O euro continuará a tramar a Europa, como lembra Stiglitz. A “bóia de salvação” não salva nada.

Estava tudo encaminhado para isto. Como revelou o PÚBLICO, houve mesmo quem antecipasse a violência da austeridade e prevenisse a UE, num relatório de há já 42 anos, mas o que é mais significativo é como essa prevenção foi sepultada. A única globalização que era aceite era a destruição da Europa que apreciamos, aquela onde teve lugar a defesa dos direitos humanos ou a luta pelos direitos sociais. Pergunte-se agora, caro leitor ou leitora, o que quer dizer a aceitação da Europa “a várias velocidades”? É mesmo esta a “última oportunidade”? Estamos reduzidos a esta teoria: a globalização é a lei e Macron o seu profeta? O novo normal é esta choldra e então estamos por dias, dizem-nos os que acreditam na virtude iluminante do dilema globalização-passadismo.

 

5 pensamentos sobre “A bóia de salvação (mas é mesmo a última

  1. Tem razão o Sr. Francisco Louçã… Marine Lepen serviu e bem os interesses do centrão reunificado em Macron, e ela vai ser útil em 2022 e cada vez que for preciso… a menos que la France Insoumise consegue imiscuir nesta lenga-lenga da globalização imprescindível e do “there is no alternative” que começa a nos cançar por demais!!

  2. Sr. Francisco Louça…
    Mais laconicamente: O que nao mata ENGORDA & enquanto o pau vai e vem folgam as costas?!… Interessante que o oposto desse tal Corporativismo, Senhor da Penhora dos Estados, seja o Anarquismo… (polos opostos do mesmo Egoismo, e anti Res Pública)

  3. No meio disto tudo ainda estou para ver uma análise «proto-sociológica» da reconfiguração de classes (e de seus partidos representativos)… trazida para dentro de cada país pela globalização. É que a «desdemonização» conseguida pela sra. Le Pen (apesar da sistemática e clamorosa diabolização de que foi alvo…), é algo de estranho. Uma espécie de «fenómeno emergente» que requer alguma explicação mais cuidada do que o «localismo» e o «globalismo»… Entretanto, chama-se a atenção para um pequeno detalhe que parece ter passado despercebido e que tem a ver com o significado das palavras (manias de sociólogo encartado…).
    De acordo com Georgi Dimitrov, “o fascismo é uma declarada ditadura terrorista dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro… O fascismo não é, nem o governo supra classista, nem o governo da pequeno burguesia ou do lumpen-proletariado, sobre o capital financeiro. O fascismo é o governo do próprio capital financeiro, é um massacre organizado da classe trabalhadora e da fracção revolucionária do campesinato e da intelectualidade. O fascismo na sua política externa é o tipo mais brutal de chauvinismo que cultiva o ódio contra outros povos». A este respeito, alguém me poderá esclarecer sobre quem financiou quem nas campanhas eleitorais em França?….
    É que, a ser verdade o percurso do sr. Macron (Rothchild…), a quem deveriam (talvez!…) ter acusado de fascista era o novo presidente eleito da França. Nesta fase da evolução do Sistema-mundo, a sra. Le Pen faz-me lembrar mais a sra. Peron do que propriamente Mussolini, Hitler, Franco ou Salazar… Mesmo considerando que (nas suas dependências em relação ao centro do Sistema-mundo) a França não é a Argentina.

  4. A Suiça ,não está alinhada no projecto europeu,vive respira e é autónoma.O reino unido rasgou o manto do globalismo e segue o seu próprio caminho.Em Portugal e contra a maioria da expectativas encontrou-se a luz no fundo do túnel,e dá a impressão que a música ainda está a tocar….Alguém falou de copiar, aqui e ali, o engenho, desempenho e arte da geringonça…Porque não fazem mais cartazes do Frexit ?….Se a globalização é uma droga que nos foi imposta e da qual dependemos,então vamos fabricar a nossa própria droga devagar mas firmemente,porque há mais vida para além do déficit…

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