Salvar o capitalismo para quê?

(Maria de Lurdes Rodrigues, in Diário de Notícias, 10/05/2017)

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Robert Reich profere amanhã, quinta-feira 11, no ISCTE, uma conferência intitulada “Como a desigualdade nos Estados Unidos criou Trump: um aviso à Europa”. Vale a pena assistir, como vale a pena conhecer as ideias e propostas deste economista norte-americano, professor de políticas públicas na Universidade de Berkeley, com uma intervenção cívica intensa na vida do seu país.

A originalidade de Robert Reich está em defender, simultaneamente, o capitalismo e mais justiça social. Afasta-se dos que, à esquerda, defendem um estado de grande dimensão e com forte presença na economia e é mais radical do que os defensores do Estado social europeu por defender mais distribuição da riqueza criada e não apenas mais redistribuição.

Reich combina nos seus trabalhos a análise rigorosa de dados históricos e séries longas de indicadores estatísticos sobre a evolução da economia norte-americana, com a formulação de propostas concretas de intervenção política, visando uma mudança das regras de constituição, funcionamento, regulação e controlo dos mercados, em quatro planos principais: propriedade, monopólios, contratos e falências.

No plano da propriedade, discute a necessidade de se imporem limites à apropriação e privatização de bens públicos, bem como à vigência e abrangência da propriedade intelectual e das patentes. Entre outros exemplos de práticas discutíveis, aponta o facto de a Google e a Apple terem, nos últimos anos, investido mais dinheiro a adquirir e a litigar sobre patentes do que a financiar investigação e desenvolvimento.

No plano dos monopólios, lembra que as leis antimonopolistas, quando foram inventadas, não se destinavam apenas, nem sobretudo, a defender os princípios da livre concorrência e a proteger os consumidores. Desde o início que, nos EUA, os “pais fundadores” tiveram a intenção de impedir a concentração do poder económico e a consequente emergência de agentes económicos com excessivo poder de influência sobre o poder político. E não se está a falar aqui de corrupção, mas apenas no poder de influência sobre a adoção de regras e escolhas que põem em causa o interesse coletivo e o bem comum. São numerosos os casos conhecidos, não apenas nos EUA, da incapacidade de os governos regularem e controlarem o funcionamento de certos mercados em consequência do excessivo poder de agentes económicos e da sua influência sobre as escolhas políticas e as suas condições de exercício.

No plano dos contratos, analisa a evolução das regras de regulação das relações de trabalho, observando a perda de capacidade negocial dos sindicatos e o impacto desta perda na degradação das condições de trabalho, sobretudo salariais, e no aumento das desigualdades. Conclui ser necessário reforçar todas as formas de negociação e de poder da parte mais fraca nas relações contratuais, sejam os trabalhadores ou os consumidores.

No plano das falências, analisa a evolução das regras da sua regulação, concluindo que, atualmente, a distribuição dos riscos resultantes das falências pesam muito mais sobre os trabalhadores e os contribuintes do que sobre os acionistas e os investidores. No caso da recente crise do sistema financeiro e das dívidas soberanas, pudemos observar como parte dos prejuízos privados foram transformados em prejuízos públicos, pesando sobretudo sobre os contribuintes.

Robert Reich defende a necessidade, antes de tudo, de políticas distributivas, como o salário mínimo, a negociação e a contratação coletiva e políticas fiscais fortemente progressivas. Defende-o muitas vezes de modo bem mais radical do que os sociais-democratas europeus. Mas é bastante distante da esquerda anticapitalista, porque defende a economia de mercado como essencial à democracia. De facto, se o capitalismo tem sobrevivido em todo o tipo de regimes políticos, a democracia tem florescido sobretudo em economias de mercado. Por isso o capitalismo deve ser salvo, mas, simultaneamente, profundamente reformado para que o seu desenvolvimento beneficie a maioria e não apenas uns poucos mais poderosos.

Ideias feitas

Os partidos são dispensáveis?

Não, os partidos políticos são indispensáveis à democracia.

Existe hoje quem manifeste, de muitas formas, uma fobia aos partidos políticos e uma adesão entusiasta às lideranças personificadas, apoiadas ou não em movimentos de apoio conjunturais e de fraca organização. Macron com o seu “En Marche”, Rui Moreira com o seu “O Meu Partido é o Porto” são os exemplos desta semana.

Os partidos, enquanto instituições democráticas, existem por duas razões muito importantes: enquadrar e viabilizar a participação política dos cidadãos em torno de ideias políticas claras e coerentes e evitar o excesso de poder dos líderes políticos. Para atingir estes objetivos, ainda não inventámos melhores soluções.

Pode acontecer que os partidos políticos não estejam hoje a dar voz a todos, que não se esgotem neles os motivos de mobilização, ou que precisem de ser profundamente renovados. Mas não se retire daí que podem ser substituídos por nada ou por movimentos mais ou menos inorgânicos sem riscos maiores do que aqueles que se queria corrigir.

6 pensamentos sobre “Salvar o capitalismo para quê?

  1. Ora, pois claro:
    《 Por isso o capitalismo deve ser salvo, mas, simultaneamente, profundamente reformado para que o seu desenvolvimento beneficie a maioria e não apenas uns poucos mais poderosos.》
    Assim mesmo, sem papas na língua – ou, dito de outro modo: com todas as letras – O capitalismo DEVE SER SALVO!…(as maiúsculas são minhas).
    E quando se fala/escreve assim, pela boca/pena de uma ilustre ex-ministra “socialista”, está tudo dito, fazendo lembrar um velho anúncio publicitário: “Palavras, para quê, é um artista português e usa pasta medicinal COUTO!”
    Ao que isto chegou, santo deus, como diria um qualquer devoto fiel!?!?…
    Faz-me lembrar um conterrâneo meu que, parecendo padecer de alguma debilidade mental, acumulando com o seu analfabetismo, de quando em vez e perante situações algo estranhas ou incongrentes, gritava em tom de voz bem alto:
    《ABRE OS OLHOS PORTUGUÊS! QUANTO MAIS OLHAS, MENOS VEZ!…》.
    É a vida, para citar Guterres.

  2. Tenho duvidas gigantescas sobre as teorias de Robert Reich embora possa até reconhecer que os seus propósitos possam ser nobres. Eu diria que são mais ideias para “salvar o capitalismo” mas ele está ferido de morte e agoniza lentamente apesar de dominar e, aburdamente, cada vez mais
    Os governos, hoje, estão completamente enfeudados no hiperneoliberalismo económico e toda a sua governação se faz “respeitando” as regras que ditam. São os homens do dinheiro quie ditam as regras e, caso se “enganem”, como é dito no artigo, são os trabalhadores que pagam pelo desemprego e até ressarcidos por todos os contribuintes através dos governos. É isso o Salvar o Capitalismo porque se não o salvarem ele definha em cadeia e morre e, como diz Paul Krugman, a situação chegou a tal ponto de desregulamentação global que qualquer tentativa para alterar a sua “governance” terá efeitos catastróficos e as consequências muito piores que a situação podre existente. Absurdo não é?…..Claro que é, mas admito que Krugman tenha razão apesar de ser um paradoxo da evolução social e do bem estar da humanidade
    Numa sociedade em que, gradualmente, as forças representativas dos trabalhadores (paritidos de esquerda e sindicatos) estão a desaparecer como é possível defender quem trabalha para que tenham uma vida digna?
    Como vai Robert Reich resolver este problema sendo certo que praticamente, como se vê, as negociações colectivas acabaram?.
    Desemprego aumenta sempre, o fosso entre os mais ricos e pobres é cada vez maior e o Estado Social agoniza com a complacência dos governos, muitos são socialistas até..
    O Capitalismo não tem salvação….é uma questão de tempo a sua morte. Como? ningém sabe.

  3. Diz o povo na sua antiga sabedoria que «a esperança é a última a morrer»… Pois a minha esperança (ainda) é a de que estas mentes iluminadas que nos «governam» (vá lá, deixo de fora aqueles que começam por se governar…) ainda venham a perceber a lógica intrínseca do sistema capitalista que tanto querem salvar… Talvez venham a perceber que quando (ou se…) esse dia chegar, a salvação do Capitalismo é (será, virá a ser…) «dar lugar ao Socialismo»… Parafraseando o «Manifesto», «no sistema capitalista quem manda é o Capital, no Socialismo é ao contrário, quem manda é o Trabalho»… Entretanto é possível que o «parto» já não tenha que ser «violento» (doloroso) e com muito sangue… «Keep dreaming», como diria um dos meus netos…

  4. Da forma como estão organizados e geridos os partidos políticos perderam a sua essência na condução e orientação de ideias politicas, económicas e humanas que constituam a base da democracia futura. Actualmente, como os sindicados, não tem razão de existir, sobretudo a serem sustentados pelos Estados quando o deviam ser, unicamente, pelos simpatizantes.

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