Tolerância intolerante

(Por Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 01/05/2017)

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Protestar contra a tolerância de ponto decretada para se ir ver o papa não é ser contra manifestações religiosas; é estar contra a arregimentação, pelo Estado, de tais manifestações. Estranho um governo de esquerda não ter a sensibilidade de distinguir uma coisa da outra.


“Hoje devia ser feriado, caralho.” O grito de Éder, na Alameda, em julho de 2016, no fim do cortejo triunfante da seleção pelas ruas de Lisboa, ainda faz sorrir. Mas não, nesse dia não houve feriado; só os funcionários da Câmara tiveram tolerância de ponto. O resto dos trabalhadores públicos não tiveram licença para ir dar vivas aos heróis do Euro.

Terá havido então “uma grande falta de sensibilidade do governo”, para usar as palavras com as quais Costa justificou a tolerância de ponto na vinda do papa a Fátima. O governo não achou, na altura, que se justificasse o fecho de escolas, o adiamento de cirurgias e consultas, o encerrar de serviços públicos. Não havia, quiçá, do ponto de vista governamental, dignidade ou “bondade” suficientes na ocorrência; não era algo em que se pudessem citar números dos Censos para se alegar que “a esmagadora maioria dos portugueses são futebolísticos”.

Sucede que toda a gente sabe que são. Como toda a gente sabe que o Benfica é o clube com mais adeptos. Poderíamos pois defender que houvesse, em nome da tal “sensibilidade”, tolerância de ponto a cada jogo importante do Benfica? Não, responder-se-á; os outros clubes protestariam, e bem, pelo favorecimento do Estado a um rival. Seria uma insensibilidade do Estado desprezar os sentimentos dos não benfiquistas, para além dos de quem se está nas tintas para o futebol. E ninguém deixaria de reputar tal ideia de completamente idiota.

Muito bem. Qual é então a diferença entre decretar tolerância de ponto para uma celebração do clube com mais adeptos e simpatizantes e fazer o mesmo com uma confissão religiosa igualmente popular? Como se constata, no segundo caso parece haver muito mais gente a não achar uma idiotice, mesmo se a Constituição tem o cuidado de estatuir a separação entre Estado e confissões religiosas, não entre Estado e clubes de futebol (talvez devesse).

Esse cuidado deve-se à existência de uma história, mundial e nacional, de confusão entre Estado e religião. E porque não basta confiar no bom senso dos representantes do Estado para a evitar. Aliás, como nos demonstra o vídeo de propaganda que o PR gravou sobre Fátima, bom senso é um bem escasso. Alguém acharia normal o PR fazer um vídeo a promover um partido ou um clube de futebol? Porque será então que este acha aceitável fazê-lo sobre a sua “devoção” a Fátima? É claro que ser presidente não implica deixar de ser devoto do que lhe apeteça; exige-se-lhe porém não confundir a devoção com a função. E quem tenha dificuldade em perceber o quanto tal confusão é inadmissível só tem de imaginar que o vídeo era de propaganda à Igreja Universal do Reino de Deus ou ao Islão.

Marcelo fê-lo, porém, não só porque quando o bom senso foi distribuído tinha ido a Tires ver de uma avioneta mas porque na sua cabeça – como na de tanta gente – Portugal é católico. De resto, a ideia de que a religião é algo de intrinsecamente bom e útil e partilhado, sem potencial fraturante, só se aplica, por cá, à confissão católica. Assim se explica que haja ainda, sem escândalo generalizado, centenas, senão milhares, de escolas públicas com crucifixos nas salas de aula; que nelas se organizem missas, como ainda nesta Páscoa foi notícia; que se mobilizem membros das Forças Armadas para procissões e seja comum autarquias e Estado financiarem construção de igrejas. Já uma câmara planear a construção de uma mesquita dá um banzé.

Tal imersão coletiva no abastardamento do princípio constitucional da separação faz com que de cada vez que alguém protesta contra esse mesmo abastardamento se fale de “ódio” e “fundamentalismo”. Denunciar o proselitismo católico do Estado – ou alguém pode desmentir que ao decretar esta tolerância de ponto se está a dizer “vão a Fátima ver o papa”? – é reputado de “exagero”. Ou “insensibilidade”, na versão do PM. É até comum que, em notável cambalhota argumentativa, se acuse quem o faz de querer impedir as pessoas de exprimir publicamente a sua fé – como se o que está em causa fosse proibir essa expressão em vez de exigir ao Estado que se coíba de a impor.

Esta reversão das posições – quem impõe e se congratula com a imposição a acusar os outros de serem eles os tiranos – é especialmente chocante vinda de um governo que tem na esquerda laica o seu suporte. Há quem, para justificar a incoerência, acuse Costa de “populismo” e “eleitoralismo”. Recorde-se porém que em 2010, quando na visita de Bento XVI o governo Sócrates decretou três dias de tolerância de ponto, não só houve protestos de vários setores como uma sondagem dava 55% dos inquiridos como desfavoráveis à mesma. Sendo duvidoso que o PS ganhe com isto um único voto, e ainda por cima calhando a visita do papa a Fátima num sábado, a decisão de parar o Estado só pode dever-se à tradicional reverência de partidos e governos, travestida de “cortesia”, face à Igreja Católica. Mais de cem anos após deixar de ter religião oficial, Portugal continua a ser um país em que se confunde liberdade religiosa com a liberdade de ser católico. E isso não é apenas insensível, é estúpido.

Um pensamento sobre “Tolerância intolerante

  1. Sem duvida que a senhora jornalista Fernanda Câncio bem se esforçou nesta peça para argumentar e debitar a opinião, que obviamente se respeita. Mas no que toca a visitas papais e ao relacionamento entre o Estado, Constituição da República e a Igreja Católica em Portugal, revela alguma ignorância e inconsistência no discurso. Por isso se aconselha a que investigue melhor para não ser mais tentada a confundir Estado com religião, e muito menos com futebol e Benfica. Que pancada levou cabeça para lhe ter saído este vómito?

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