A França, cantando e rindo

(Francisco Louçã, in Público, 25/04/2017)

louca

Francisco Louçã

Um suspiro de alívio atravessou as chancelarias no domingo à noite e houve governos europeus que, mesmo antes de o Presidente francês o fazer, se precipitaram para apelar ao voto em Macron. No centro e até na esquerda ouvem-se vozes indignadas exigindo essa mesma entronização, castigando quem se atreva a sugerir que perceber o risco é útil para o combater.

Tal precipitação partilha aliás um consenso que convém a ambos os candidatos que chegam à segunda volta das presidenciais francesas: como anunciavam os cartazes de Le Pen, “Já não existe esquerda e direita mas sim patriotas ou globalistas”, e o mesmo repetem os macronistas da primeira como da última hora. É portanto neste terreno de bipolarização que ambos jogam. É-lhes confortável fingir que acabaram os programas e que agora é tudo ou nada, ou o isolamento ou o desvanecimento. É um sinal do estado da política francesa: “cantando e rindo, levados, levados, sim”, resolve-se o problema? Precisam mesmo de um “som tremendo” e um “clamor sem fim” para que ninguém ouça nada.

Pergunto-me como podem alguns intelectuais colaborar nesta fraude, que é a verdadeira alavanca de Le Pen. Pacheco Pereira resumiu bem todo esse paradoxo: “(a Europa) vai andar feliz uma semana ou duas e depois tudo começa na mesma”. Ora, ficar tudo na mesma é a garantia de dois erros fatais: primeiro, perante a degradação institucional, persistir na solução (entregar o poder soberano a autoridades europeias) que garante o desastre (os regimes deixam de ser representativos); segundo, baixar ainda mais o nível dos protagonistas. Depois de Hollande é a vez de um político postiço cuja qualificação para ser Presidente é ter ganho uns milhões em aventuras financeiras.

De resto, entendamo-nos: não tem o leitor a sensação de déjà vu? Hollande deu o golpe garantindo que com ele a Europa se ia endireitar, respeitar as pessoas e as nações, cuidar dos desempregados, corrigir os tratados – e tudo em três semanas. Macron dá um passo mais: tudo se há-de resolver, mas não me pergunte como, basta um beatífico “referendo europeu na segunda volta”.

Mas se há lição de França é esta: acelera-se o colapso das famílias políticas tradicionais que têm governado a União e os seus principais Estados. Isso é imparável, a culpa é sua, isto não ocorre por causa de inimigos exteriores, não é por Putin e Trump apoiarem Le Pen, o que tem forte significado mas escasso impacto eleitoral, acontece por causa dos inimigos internos.

Numa palavra, é o liberalismo económico que corrói a confiança. E esse é o problema de Macron, é a sua realidade que o perturba. Ele é o nome da “Lei Macron” que facilitava despedimentos colectivos e outras ignomínias e que desencadeou uma greve geral – não seria então de esperar que a esquerda desconfie dele?

Portanto, Macron tem esta escolha: tem de negociar e dar garantias à esquerda. Os que o querem entronizar, esperando depois um governo dos ressuscitados PS e Republicanos, desesperam por evitar esse comprometimento (veja o exemplo do impagável Duarte Marques, que já sonha com a vitória da direita nas legislativas de junho). Mas ele é a chave da segunda volta e é Macron quem deve tomar a iniciativa. Obrigando-o a isso, Mélenchon, que tem a maioria do voto jovem e de metade das grandes cidades, age estrategicamente em nome da esquerda. Ainda bem que houve alguém que não se acobardou nestas eleições francesas.

NB – Apreciei a infamiazinha de Rangel, é mais forte do que ele. Venho só lembrar-lhe, a propósito de a esquerda ser “moralmente” igual a Le Pen que, quando há trinta anos Le Pen pai veio a Portugal para incentivar a extrema-direita, só um punhado de militantes protestou cara a cara contra o que ele representava. Os moralistas rangelianos estavam de folga.

2 pensamentos sobre “A França, cantando e rindo

  1. COBARDE É QUEM TEM DE FAZER ESCOLHAS EM NOME DA LIBERDADE E COMETE O ATENTADO DA INDIFERENÇA PERANTE PERIGOSOS FENÓMENOS DE POPULISMO XENÓFOBO

    A política está cada vez mais a deixar de ser o que era, apesar de tantas contradições, omissões e erros. Tenho para mim, que cada vez entendo menos alguns destes intelectuais e políticos radicais de esquerda.
    Preciso de tempo para reflectir sobre se estou a concluir bem, a partir da parte final do texto de opinião deste intelectual radical de esquerda português, citando-o: “Mélenchon, que tem a maioria do voto jovem e de metade das grandes cidades, age estrategicamente em nome da esquerda. Ainda bem que houve alguém que não se acobardou nestas eleições francesas.”
    Como? Estou a ler bem?
    Então um frustrado de um radical de esquerda francês, a recusar a indicação de voto para a segunda volta das eleições francesas a um candidato republicano contra um candidato da extrema- direita, e é elogiado pelo “iluminado” do Louçã?
    A política já não é o que era!
    Porque agora, em vez de uns coerentes e responsáveis comunistas a fazerem indicação de voto em Mário Soares, porque o outro candidato era de direita (e de supostamente terem de engolir elefantes vivos) aparece agora quem para lhes seja completamente indiferente que o próximo presidente de república francês seja ou não democrata e republicano ou de extrema-direita xenófoba!
    Se o futuro democrático da Europa um dia viesse a estar nas mãos de gente como esta, deixem-me que desabafe: assustam-me!
    Arrepio-me!!!

    • Você está a usar uma métrica do passado: a dicotomia esquerda versus direita. Esse conceito é cada vez menos operativo. Vou publicar hoje um texto que defende, e com o qual eu concordo, que a oposição dos tempos de hoje é entre os que defendem o Estado-Nação e a democracia como governo, e os que defendem o caminho para soluções de governo europeu e posteriormente mundial, controlado pelas elites e por tecnocratas cinzentos, anónimos e não sujeitos a qualquer escrutínio. A União Europeia é um ensaio prévio deste debate. E na França, Marine Le Pen, por estranho que pareça, defende o Estado-Nação, enquanto Macron é o principe entronizado pelos tecnocratas de Bruxelas.

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