As carpideiras e o sorriso de Centeno

(Nicolau Santos, in Expresso, 22/04/2017)

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As carpideiras estão inconsoláveis. Perante as surpreendentes subida do PIB e descida do défice arrepelam-se, rasgam as vestes, batem com os punhos no peito e clamam: só há crescimento porque o Governo mudou de estratégia; o défice só se reduz porque o Governo cortou fortemente na despesa; as projeções para 2017 são realistas e podem vir a concretizar-se — mas a partir de 2018 tudo voltará a ser pior. Enfim, as carpideiras sentem-se enganadas. Se o Governo tivesse feito tudo o que elas achavam que iria fazer — aumentar impostos e apostar no consumo privado — o país estaria à beira de pedir um novo resgate e o cheiro a enxofre já se sentiria por toda a parte.

Mas Mário Centeno não fez o que esperavam. Alterou a composição das políticas mas manteve o rumo no sentido de cumprir os compromissos europeus. Resistiu quando era evidente o preconceito ideológico e a má vontade do Eurogrupo, do seu presidente Jeroen Dijsselbloem, do ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, e do vice-presidente da Comissão Europeia com as pastas do euro e da estabilidade financeira, Valdis Dombrovskis. Teve também de arcar com as sucessivas análises da Comissão Europeia, do FMI, do Banco Mundial e do Conselho das Finanças Públicas bem mais pessimistas que as do Governo.

As carpideiras sentem-se enganadas. Se o Governo tivesse feito o que esperavam, o país estaria à beira de pedir um novo resgate e o cheiro a enxofre seria insuportável

Esta semana, contudo, FMI e Conselho das Finanças Públicas (CFP) vieram dar a mão à palmatória, corrigindo as suas estimativas de crescimento para este ano para 1,7%, apenas uma décima a menos do que a previsão do Governo (1,8%) — com o CFP a considerar mesmo que o cenário macroeconómico do Programa de Estabilidade para 2017-2021 “apresenta uma composição do crescimento assente no dinamismo do investimento e das exportações que (…) se afigura como a mais adequada para a sustentabilidade do crescimento da economia portuguesa”. Por seu turno, a agência de notação financeira Standard & Poor’s veio admitir na semana passada que pode vir a melhorar a nota de Portugal (atualmente em BB+, nível de não investimento ou ‘lixo’) caso venha a “baixar o volume do crédito malparado” dos bancos e se “o crescimento económico for melhor do que o esperado”. E o o banco alemão Commerzbank, que tem sido muito crítico em relação a Portugal, veio admitir que a agência canadiana DBRS pode mudar para “positivo” o rating da República com base nas notícias “encorajadoras” sobre a descida do défice acima do esperado, o crescimento económico e os avanços na reestruturação do sector bancário.

Junte-se a isso o facto de o Tesouro português ter emitido na quarta-feira dívida às taxas mais baixas do ano; e de a dívida portuguesa a 10 anos que há um mês estava nos 4,2% estar agora nos 3,76% — e ficamos com a certeza que Mário Centeno tem cada vez mais motivos para sorrir e as carpideiras cada vez mais motivos para chorar.


Gaspar ou faz-nos rir ou chorar

Vítor Gaspar, diretor do Departamento de Assuntos Orçamentais do FMI, veio elucidar o mundo sobre os cinco princípios básicos da política orçamental: ser contracíclica, amiga do crescimento, inclusiva, suportada pela real capacidade fiscal, e conduzida com prudência. E as gentes espantam-se: que descoberta! E as gentes interrogam-se: de onde lhe terá vindo tanta sabedoria? É que enquanto ministro das Finanças de Portugal, Gaspar fez tudo ao contrário: a política orçamental foi pró-cíclica, agravando profundamente a recessão; não foi amiga do crescimento (a recessão durou de 2011 a 2015); aumentou as desigualdades sociais; as receitas fiscais colapsaram, levando o antigo ministro a optar por um “enorme aumento de impostos”; e não foi prudente: a dor social infligida foi muito superior ao necessário. Gaspar anunciou os cinco princípios sem se rir. E nós ouvimos sem chorar.


25 DE ABRIL, 43 ANOS DEPOIS

Há 43 anos, o movimento militar dos capitães derrubou uma das mais antigas ditaduras europeias. Neste período, Portugal deixou de ser um pária no concerto das nações, aderiu à CEE, a atual União Europeia, e integrou a moeda única. E apesar destes anos não terem decorrido sem fortes sobressaltos, obrigando a três pedidos de ajuda internacional, o certo é que o país se modernizou fortemente, criou um Serviço Nacional de Saúde que é uma das grandes conquistas do regime e os recursos humanos nacionais dispõem de uma formação muito superior. Hoje somos o país que somos por pertencermos ao clube europeu. É bom que não nos iludamos sobre isso.

Trabalho e salário igual

O sector do calçado assinou esta semana um contrato coletivo considerado histórico pela sua associação, APICCAPS, através do qual homens e mulheres com trabalho igual passam a auferir salário igual. Não deixa de ser notável que tenhamos de chegar ao primeiro quarto do séc. XXI para se avançar com uma medida que é mais do que justa. Não há qualquer razão válida para diferenciar os salários em termos de sexo, quando a revolução industrial há muito ficou para trás. As mulheres são tão ou mais competentes que os homens em todos os sectores da vida profissional. Que seja um sector tradicional como o calçado a dar este passo só enaltece Fortunato Frederico, Manuel Carlos e os seus pares — embora a cortiça já pratique a medida há alguns anos e muito pouca gente conheça esse facto. Esperemos agora que o exemplo frutifique e se espalhe. O fim da discriminação salarial já vem tarde.


Tragam-me um homem que me levante com

os olhos

que em mim deposite o fim da tragédia

com a graça de um balão acabado de encher

tragam-me um homem que venha em baldes,

solto e líquido para se misturar em mim

com a fé nupcial de rapaz prometido a despir-se

leve, leve, um principiante de pássaro

tragam-me um homem que me ame em círculos

que me ame em medos, que me ame em risos

que me ame em autocarros de roda no precipício

e me devolva as olheiras em gratidão de

estarmos vivos

um homem homem, um homem criança

um homem mulher

um homem florido de noites nos cabelos

um homem aquático em lume e inteiro

um homem casa, um homem inverno

um homem com boca de crepúsculo inclinado

de coração prefácio à espera de ser escrito

tragam-me um homem que me queira em mim

que eu erga em hemisférios e espalhe e cante

um homem mundo onde me possa perder

e que dedo a dedo me tire as farpas dos olhos

atirando-me à ilusão de sermos duas

novíssimas nuvens em pé.


(Cláudia R. Sampaio,

‘Tragam-me um homem’, in “ver no escuro”, Tinta da China, março de 2016)

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