Santificado seja o teu nome, Donald

(Francisco Louçã, in Público, 14/04/2017)

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Nasceu uma estrela. Trump passou a ser um estadista, falou pelo mundo. Trump passou a ter sentimentos, ficou incomodado com as imagens do ataque químico a Khan Sheikhoun. Trump passou a ser ponderado, não reagiu pelo Twitter mas sentou-se no gabinete de crise. Trump deixou de ser amigo dos russos, ou pelo menos amigo dos amigos dos russos, é cá dos nossos. Trump passou a ser melhor do que Obama, porque Obama acabou por aceitar a sugestão de Trump (vire as costas à guerra na Síria) e Trump não seguiu Obama que tinha seguido Trump. Trump passou a ser bem informado, ouviu os conselheiros. Trump passou a ser confiável, é o nosso escudo, é o nosso líder. Trump bombardeou o Iraque, que afinal é a Síria, mas o que importa é que bombardeou. Trump bombardeou a Síria, que afinal não é o Iraque, e logo depois o Afeganistão, o Iraque bem pode esperar pela demora. Trump, quando bombardeia, usa logo a “mãe de todas as bombas”. No Observador, sempre na vanguarda, o homem já é um novo Ronald Reagan e salva o “Ocidente“. Para esta ressurreição, bastou bombardear com uns Tomahawks uma base militar síria (alguém se lembrou de perguntar aos “índios” se apreciam a escolha sinistra deste nome?) e depois usar a “mãe” para concluir a semana.

Os governantes dos países da Europa do Sul estão, é claro, solidários. Eles “consideraram que o ataque lançado pelos Estados Unidos tinha a intenção compreensível de impedir a distribuição e o uso de armas químicas e que se centrou nesse objetivo”, mas logo acrescentaram que “só uma solução pacífica credível poderá garantir a paz e a estabilidade, permitindo a derrota definitiva do Daesh e de outros grupos terroristas”. Estes governantes acham “compreensível” o bombardeamento mas repetem que é necessária uma “uma solução pacífica credível”, sempre solidários. Imagine-se a atenção que a Casa Branca dará a este pedido de “credibilidade pacífica”.

Como Valdemar Cruz notou, o que os governantes europeus do sul estão a dizer é que, coitado do Guterres, afinal o cargo tão festejado era mesmo para ser um posto cerimonial e as Nações Unidas, que iam ser reformadas, credibilizadas e respeitadas, ficam afinal fora do campo do tweet de Trump, estamos no tempo das bombas. E essa notícia é a pior de todas, deixa-nos um pouco mais longe da solução para o conflito e um pouco mais perto do desastre líbio.

Houve quem lembrasse que as armas químicas foram utilizadas no passado pelo Reino Unido no Médio Oriente, por todas as potências ocidentais na primeira guerra mundial, pelos Estados Unidos no Vietname (quando já eram proibidas por tratado internacional), por Saddam Hussein contra os curdos quando era aliado dos Estados Unidos e depois ainda pelos comandos norte-americanos em Falluja.

E, no meio de tudo isto, sempre há um porta-voz de Trump que explica que Hitler não usou armas químicas. É certo que nada desse passado tão presente permite qualquer indulgência perante Assad ou quem tenha desencadeado este ataque. Mas, entendamo-nos, nada parará este ou outro ataque, ou o bombardeamento de populações, ou os reféns civis, enquanto não surgirem na Síria forças nacionais capazes de vencer e destituir os senhores de guerra, que em seis anos fez meio milhão de mortos. Se tudo o que é agora a política internacional é reforçar esses senhores, então a paz será impossível.

Quanto ao líder que agora se agigantou à força de bombas e de prosápias, ele continua igual a si próprio, lamento constatá-lo. É o mesmo troca-tintas que foi eleito com uma campanha vergonhosa, que abusa das mulheres, que ameaça os refugiados, que não sabe o que fazer com as suas promessas, que defende as empresas do petróleo como o pilar da economia, que rasga acordos internacionais sobre as alterações climáticas, que levou a extrema-direita supremacista para a Sala Oval, que pisa as liberdades e que, no fim das contas, se trata como um marajá em férias e passou nada menos do que 21 dos 80 dias do seu mandato no seu resort na Florida.

Um velho ditado dos gangsters de Chicago ensina que “se não os consegues vencer, junta-te a eles”. A única novidade destes dias de panegírico trumpista é que demasiados governantes, comentadores e espirituosos estão a seguir à letra essa sapiência gangsteril.

4 pensamentos sobre “Santificado seja o teu nome, Donald

  1. Meu caro, falou muito mas não disse nada.
    A propósito, o seu partido é mesmo sionista convicto ou também é do género “se não consegues vencê-los, junta-te a eles”?

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