Os labirintos da Justiça e os da memória

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 08/04/2017)

AUTOR

                                    Miguel Sousa Tavares

1 O desfecho da investigação criminal a Dias Loureiro e Oliveira Costa, por eventuais falcatruas cometidas no BPN, mostra o nosso Ministério Público (MP) em todo o seu esplendor: depois de oito anos de investigações, não conseguiram obter prova alguma das graves suspeitas lançadas logo de início com a habitual e prestimosa colaboração da imprensa tablóide, sempre ao serviço do MP e da violação do segredo de Justiça. Não se sabe que rigorosa investigação terá sido feita para se arrastar durante oito anos, mas sabe-se que o suspeito Dias Loureiro foi ouvido uma vez, ao princípio, e nunca mais sentiram necessidade de voltar a ouvi-lo. E, assim, não tendo provas para levar os suspeitos a tribunal, arquivaram o processo. Porém, o despacho em que o MP arquiva os autos é digno de figurar nas colectâneas de jurisprudência e nos manuais escolares como exemplo do que é a distorção da Justiça — se é que os princípios fundamentais do direito ainda vigoram, não tendo sido afastados pela necessidade de combater o terrorismo, o crime de colarinho branco em grande escala ou outras situações de excepção que se vêm tornando regra sob o nosso impávido olhar. Resumindo, o MP arquiva mas faz notar que se mantêm todas as suspeitas e todos os indícios de crime, só que não houve forma de as provar. Já tínhamos visto isto com o arquivamento de um processo contra Duarte Lima, há vinte anos, ou contra José Sócrates no caso Freeport (investigado com fragor durante seis anos, sem que o suspeito alguma vez tenha sido interrogado ou chamado a pronunciar-se).

A estratégia do MP, nestes casos ditos “mediáticos”, é sempre a mesma: parte de suspeitas (às vezes vindas não se percebe de onde e outras vezes mais parecendo desejos) e imediatamente espalha essas suspeitas aos quatro ventos em tudo o que é imprensa ávida de escândalos — a qual, por sua vez, logo as transforma em verdades inatacáveis; assim garantida a glória dos intrépidos investigadores e a condenação popular e prévia dos arguidos, o MP começa, paulatinamente e sem pressa alguma, à procura das provas para as suas suspeitas; demora nisso o tempo que quiser, obtendo sucessivas prorrogações do prazo investigatório, pois que a jurisprudência estabeleceu que não há prazo algum; quando já está farto de investigar em vão ou quando o escândalo da demora ameaça fazer esquecer o escândalo dos eventuais crimes, arquiva porque não conseguiu provas — faltam os meios, faltou-lhe mais tempo, o processo é extremamente complexo, não lhe respondem às cartas rogatórias ou, se respondem, é preciso traduzi-las porque, imaginem, vêm em língua estrangeira. Mas não arquiva sem mais nem menos: arquiva condenando aos quatro ventos, chamando a si o papel de juiz e justiceiro popular e dando logo a sentença, sem sequer ter de passar pelo julgamento. É claro que o suspeito não vai preso, mas para aqueles que leram algures (será na Constituição?) que todos têm direito ao bom nome, e para aqueles que o prezam, arquivar assim é o mesmo que ser entregue às feras e para sempre. E acabamos todos sem saber se A, B ou C são, de facto, uns bandidos ou se são inocentes. Se beneficiaram da incompetência do MP ou se, pelo contrário, foram vítimas do seu abuso e da sua falta de respeito pela presunção de inocência.

Mas isso interessa a alguém? Alguém ainda se preocupa com essas relíquias de museu como o segredo de Justiça, a presunção de inocência, o direito ao bom nome, o contraditório, o ónus da prova, a celeridade da justiça e outras baboseiras esquecidas na poeira dos livros?

2 Nunca tive a mais pequena consideração pela pessoa e pelo percurso de Armando Vara. Pelo contrário: um comentário meu a seu respeito levou-o a perseguir-me judicialmente e sempre em vão até ao Supremo Tribunal de Justiça, pois que Armando Vara, então no seu apogeu, achava-se no direito de ser imune às críticas. Dito isto, não posso senão mostrar a minha perplexidade pela dureza da pena de cinco anos de prisão efectiva, agora confirmada pela Relação do Porto, por três crimes de tráfico de influências, pagos com cestos de robalos ou com dinheiro vivo. Não que eu viva bem com o tráfico de influências, mas porque vejo aqui uma zona muito cinzenta, em que a fronteira entre o criminoso e o profissional muitas vezes me aparece determinada apenas pelas circunstâncias políticas do momento ou pelas circunstâncias pessoais do agente. Entre o traficante de influências e o “facilitador de negócios”, qual é a grande diferença? Quantos portugueses (e estrangeiros) ilustres não se dedicam hoje a essa actividade e a uma escala multinacional, fechando negócios de milhões ou biliões, utilizando a sua capacidade de influência junto dos seus “contactos” importantes? Mas, mesmo saindo para a nossa pequena escala, não somos nós historicamente o país da “cunha”, do “empenho”, da palavrinha”, do “almoço de trabalho”? Quem é capaz de distinguir com toda a clareza o que é crime daquilo que é apenas a regra habitual do jogo? O que distingue o tráfico de influências do lobbying (legal em vários países) ou mesmo da actividade conhecida das nossas agências de comunicação e imagem?

Na dúvida, eu seria prudente no julgamento e comedido na pena. Para não ficar a impressão de que a frustração por não conseguir resolver os grandes processos mediáticos leva às tão perigosas “sentenças exemplares” quando aparece peixe-miúdo no cesto e processos simples para resolver.

Assim vejo também a condenação de Manuel Godinho no mesmo processo ‘Face Oculta’, por crime de corrupção activa, a uma pena de quase dezasseis anos de prisão — uma pena que não é dada nem aos homicídios com premeditação, ao homem que vai matar a ex-mulher à frente dos filhos e outros que tais. Mais ainda, quando os corrompidos levaram um quarto da pena do corruptor: não será mais grave um funcionário do Estado deixar-se corromper do que alguém de fora corrompê-lo? Ou será que também aqui a Função Pública goza de um regime especial?

3 Segundo a tese do MP, Ricardo Salgado terá corrompido José Sócrates para que este beneficiasse a PT, e o mesmo Ricardo Salgado terá corrompido Zeinal Bava e Henrique Granadeiro para que a PT beneficiasse o GES. Alguém me explica o que tem uma suspeita que ver com a outra? Parece que nada. Então, porque foram Granadeiro e Bava arrolados também como arguidos no processo ‘Operação Marquês’, acrescentando mais uns milhares de páginas, dezenas de testemunhas e meses de julgamento ao julgamento de Sócrates? Será a tentação de anunciar o “processo do regime”, a maior investigação criminal jamais levada a cabo em Portugal, de exibir a coragem de um procurador que, de uma assentada, sentou no banco dos réus todos os presumíveis criminosos de colarinho branco do país? E depois queixam-se da complexidade dos processos…

4 Não deve haver um português esclarecido que não esteja chocado e em pânico com o desfecho da Resolução e da “venda” do BES. Mas há quem o possa questionar e quem não tenha a mais pequena legitimidade para o fazer: Carlos Costa, Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e Sérgio Monteiro. Que, como de costume, a culpa morra solteira, já era de esperar. Mas, ao menos, que morra em envergonhado silêncio e não em indecorosa chicana política. Há limites para a capacidade de gozar com a memória dos outros.

5 Quanto ao Montepio, basta olhar para a cara de Tomás Correia e escutar as suas garantias de que nada de anormal se passa. Ah, felizmente que o Banco de Portugal “está a acompanhar o assunto”… desde 2008!


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

5 pensamentos sobre “Os labirintos da Justiça e os da memória

  1. Caro Miguel,
    Em dada altura o Senhor pergunta : Mas isso interessa a alguém? Alguém ainda se preocupa com essas relíquias de museu como o segredo de Justiça, a presunção de inocência, o direito ao bom nome, o contraditório, o ónus da prova, a celeridade da justiça e outras baboseiras esquecidas na poeira dos livros?

    A mim interessa saber sim,,, só que… hei de morrer sem nunca saber… e isso acho inadmissível. E como eu e o senhor… muita gente com certeza.

  2. Em termos de índice de corrupção mundial,Portugal encontra-se na casa dos vinte primeiros…Manobras palacianas,
    eminentemente feudais,são infelizmente um lugar comum no nosso sistema de justiça.48 anos de salazarismo,acrescidos de mais quarenta de cavaquismo sequencial,emperram qualquer sociedade.O conformismo latente e habitual,não pode ser inviabilizado da noite para o dia,já que a imprensa controlada,tendenciosamente beneficia o infractor…O executivo actual,misto dos que não são tão representativos habitualmente,tendência um equilíbrio de forças que pode repor o equilíbrio..Os deuses sagrados que não mentem e raramente se enganam,podem,mercê dum passar de testemunho duma geração,encontrar-se em maus lençóis,para que a maioria se torne viável sem compadrios e viabilizando uma economia de mercado que aumente a fluidez e,seja mais imune aos habituais desvios que tanto enfraqueceram a nossa economia.Reformas vitalícias não têm razão de ser.O agricultor do qual dependemos diáriamente para comêr,tem muito mais valor do que um político que diária e impunemente compromete o futuro de todos em proveito próprio.As mentalidades estão a mudar.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.