Aeroporto contribuintes

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 01/04/2017)

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                                    Miguel Sousa Tavares

1 Se alguém em Portugal merece ser homenageado, ter um aeroporto com o seu nome, são os contribuintes. Os contribuintes são o parceiro silencioso da equação económica, os que assistem, calados e impotentes, a todos os desmandos financeiros, que depois são pagos com o dinheiro dos seus impostos. A sua função é apenas essa: assistir em silêncio e pagar. Nos últimos anos, o grosso do seu esforço foi canalizado para pagar o despesismo público injustificável e o desvario imperdoável da banca.

2 Já perdi a conta a quanto dinheiro dos portugueses que pagam impostos foi usado para acorrer às sucessivas más “surpresas” que a banca tinha reservadas para nós: entre BPN, Banif, Caixa e Novo Banco, julgo ser possível dizer que nunca o país foi chamado a um tão grande esforço financeiro, sem qualquer retorno nem culpa própria. Julgávamos que deter um banco era um privilégio que tinha como contrapartida exigências de competência e de seriedade a toda a prova e afinal descobrimos que não. Julgávamos que, mesmo que isso falhasse, estávamos seguros por uma supervisão atenta e afinal descobrimos que não. Julgávamos que a banca era essencial para financiar a economia e afinal acabámos com a economia (os nossos impostos) a financiar a banca.

Há muito que eu aqui vinha escrevendo que a próxima bomba a cair-nos em cima, depois de revelados os prejuízos da Caixa, era o Novo Banco. Ela aí está e pode resumir-se assim: os contribuintes não vão ver de volta um único euro dos 3,9 mil milhões que o Estado “emprestou” ao Fundo de Resolução (empresta agora e recebe, se receber, daqui a 40 anos, sem juros: agradeço, mas não sei que endereço hei-de dar para me enviarem o meu dinheiro de volta, em 2057). Portanto, a primeira mentira que nos foi dita é que o Fundo de Resolução (constituído com dinheiro dos outros bancos) passaria a responder pelas necessidades de financiamento de urgência da banca, assim poupando os contribuintes. Viu-se: no primeiro teste, logo avançaram, outra vez, os contribuintes. Mas a coisa não fica por aqui: depois de dois anos a tentar vender o banco para evitar a sua liquidação, eis que os termos dessa venda não só não implicam o pagamento de um euro que seja como ainda permitem antecipar, quase seguramente, novas perdas para o futuro, a pagar pelos mesmos de sempre. O acordo de venda é tão mau que, da direita à esquerda, não há quem não o conteste. Porém, nenhum partido consegue apresentar uma alternativa viável para um problema que, na verdade, nasceu com a resolução do BES e que eles não se atreveram então a contestar — uns por princípio ideológico, pois parecia-lhes uma nacionalização, outros por oportunismo político, pois queriam gabar-se de ter enfrentado o Dono Disto Tudo. O problema é que se esqueceram de acautelar os interesses das Vítimas Disto Tudo.

Se alguém em Portugal merece ser homenageado, ter um aeroporto com o seu nome, são os contribuintes.

Seria interessante rever o discurso do governador do Banco de Portugal na noite em que anunciou a resolução do BES. Estava ali um ovo de Colombo, que ele e o BCE tinham inventado e que, curiosamente, nunca antes ou depois foi aplicado a outro banco. Era assim: afastavam-se os administradores e nomeavam-se outros, escolhidos pelo BdP; ignoravam-se os accionistas, grandes ou pequenos (os quais agora reclamam, e com razão, que foram alvo de um confisco, nem sequer de uma nacionalização); mudava-se o nome ao banco, confundindo a criança com a água do banho; chutavam-se todas as más imparidades para outro banco, que, esse, continuaria a chamar-se BES e que seria presidido pelo amigo do primeiro-ministro, o dr. Ricciardi (o qual, não chegando à sorte grande, se contentou com a terminação e depois com a chinização); injectavam-se no Novo Banco 4,9 mil milhões, vindos supostamente do tal Fundo de Resolução, e fazia-se uma vasta campanha publicitária a anunciar a boa nova a todos os actuais e futuros clientes. E, depois, era só esperar sentado pelos inevitáveis resultados positivos. Porém, ninguém sabe como (a banca é, de facto, um negócio misterioso), aconteceu exactamente o contrário. Depois de perder o crédito de 4 mil milhões sobre o BESA, trocado por miúdos, depois de vender todos os activos disponíveis a preço de saldo, depois de dar um calote de 2 mil milhões aos obrigacionistas, enviando-os para o BES mau (de onde regressarão um dia para cobrar com juros ao Novo Banco e a nós), mesmo depois de tantos actos luminosos de gestão, os 4,9 mil milhões de capital de arranque esfumaram-se. E esfumaram-se de tal maneira que hoje já são precisos mais uns 2 mil milhões para recapitalizar o banco. Em Trafalgar, antes da batalha vitoriosa em que viria a morrer, Nelson enviou uma mensagem aos seus marinheiros: “A Inglaterra espera que cada um cumpra o seu dever.” No Novo Banco, antes de sair ao fim de dois anos, deixando para trás 6, 7 ou 8 mil milhões esfumados no nevoeiro, o seu presidente declarou, ipsis verbis: “Missão cumprida.”

E, depois de vistos os resultados da gestão pública no Novo Banco e na Caixa Geral de Depósitos, depois de se renderem à evidência de que, ao contrário do que garantia Carlos Costa, ninguém quis pagar um tostão pelo NB, propõem o BE e o PCP que se nacionalize oficialmente o NB e assim se garanta que os contribuintes responderão não por 25% mas por 100% dos futuros prejuízos. E, tanto na CGD como no NB, sem fechar balcões nem despedir funcionários excedentários, para que os prejuízos sejam garantidos.

3 A outra fonte de inesgotáveis alegrias para os contribuintes é ver o Estado a gastar dinheiro. Eu sei que o Governo conseguiu a proeza de obter 4 mil milhões de saldo primário (isto é, sem os 8,3 mil milhões de serviço da dívida) na execução orçamental de 2016. Mas os parceiros do Governo, os mesmos BE e PCP, detestam que se pague a dívida e não gostaram nada do défice de 2,1%, pois queriam que o Estado tivesse gasto muito mais consigo mesmo. E, como não querem que isso se repita este ano, todas as semanas avançam com mais propostas para aumentar a despesa pública: ou é a integração de 100 mil “precários” na Função Pública, ou é a retoma das progressões automáticas e os aumentos salariais no Estado, as propinas gratuitas ou a extensão da ADSE aos cônjuges e filhos dos funcionários até aos 30 anos de idade das criancinhas (os hospitais particulares agradecem).

São tudo “direitos adquiridos”, ou “devolução de direitos”, ou “conquistas de direitos”, que escapam ao “mundo civil”, cuja situação, cuja opinião e cujos votos contam muito pouco para os que têm por programa político fomentar a dependência do Estado, na boa tradição salazarista. Eis um exemplo do tipo de notícia que os contribuintes “civis” adoram ler, entre o espanto e a ira: uma auditoria à Direcção-Geral da Segurança Social concluiu que ali trabalham 86 funcionários (numa proporção de 73% de mulheres) e com um rácio de um chefe para cada 4,5 índios. Isso é indicativo, mas não é escandaloso. O escândalo vem a seguir: um dia por mês, os funcionários da DGSS estão dispensados de ir trabalhar — ou seja, têm um horário de 33 horas por semana ou mais 12 dias de folga por ano do que o comum dos mortais! Ah, e também folgam no dia de anos — um “direito” que nem as crianças da Primária têm. Quem terá sido o generoso dirigente ou governante que instituiu este oásis de trabalho? E será o único oásis existente? Depois de saber que há mais de 1200 tipos diferentes de subsídios na Função Pública, não seria de espantar que houvesse também algumas dezenas (para ser modesto) de regimes de trabalho diferentes, e cada um melhor do que o outro… E depois diz António Costa que é preciso dar aos funcionários públicos uma perspectiva de carreira. Tem toda a razão, mas primeiro é preciso limpar a casa.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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