Uma Caixa mesmo pública

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/03/2017)

Autor

                                 Daniel Oliveira

 

Na reestruturação que se está a preparar para a Caixa Geral de Depósitos, já se percebeu quem vai pagar a fatura de décadas de favores a amigos: os utentes comuns. Tem sido sempre assim. Os serviços públicos são saqueados por muitos dos que costumam desancar no papel do Estado na economia. No fim, ou o serviço público é privatizado ou é reduzido à sua mínima dimensão. Paulo Macedo anunciou esta semana que o banco prevê chegar a 2020 com 470 balcões. Neste momento são mais de 650.

Não tenho informação nem conhecimento suficiente para avaliar a profundidade e dano desta decisão. Fico-me, por isso, pela forma como Macedo justificou o corte: “Ninguém peça à Caixa para ficar em todas as zonas em que nenhum banco quer ficar. Porque um dos pressupostos desta recapitalização é a rentabilidade.” Lamento, mas eu não me limito a pedir que Caixa esteja em zonas onde nenhum banco quer ficar. Eu exijo, enquanto contribuinte, que o faça, tendo em conta as necessidades das populações.

Apesar do BCE exigir que a Caixa Geral de Depósitos funcione como outro banco qualquer, trata-se de um banco público. Como tal, tem de prestar um serviço público. Isso implica, claro, ter em conta a sustentabilidade da empresa, mas nunca a política do banco pode ser justificada pedindo aos portugueses para que não lhe seja exigido que cumpram o papel que faz com que este banco seja público. Bem sei que o programa ideológico não sufragado que vigora em Bruxelas e Frankfurt passa por esvaziar de conteúdo todos os serviços públicos que compitam com a oferta privada. Seria uma posição política legítima (contra a qual eu combateria) se alguém tivesse votado nela. Como não foi o caso, a CGD continua a ser um banco com deveres públicos. E cuja rentabilidade só é uma prioridade na medida em que garanta a sustentabilidade do serviço público.

Quando o presidente de um banco do Estado diz que não lhe podem pedir que o banco que dirige cumpra o serviço público alguma coisa tem de estar errada.

Um dia a escolha terá de ser feita: ou serviços públicos e intervenção do Estado na economia ou União Europeia.

Há duas posições legítimas no que toca à Caixa Geral de Depósitos: a dos que, como eu, defendem a necessidade de um banco público como instrumento económico e financeiro do Estado, ainda mais relevante quando o país desmantelou todo o seu sistema financeiro e prescindiu da monetária e orçamental, e a dos que defendem que se a CGD usa os mesmos critérios de gestão que a banca privada deve ser privatizada, caso contrário apenas faz concorrência desleal aos outros bancos. Haverá, no meio, quem defenda a manutenção da Caixa para garantir a sobrevivência de um banco nacional. Não sou insensível ao argumento, mas ele é, na realidade, um expediente de quem não consegue confrontar-se com as suas próprias contradições: afirmam-se europeístas, aceitando com isso a quase total perda de soberania política e económica do país e o programa ideológico do consenso de Bruxelas, e procuram atalhos para defender essa soberania e contornar esse consenso. Têm de explicar aos contribuintes que lhes pedem dinheiro para recapitalizar um banco que não lhes pretende garantir qualquer serviço.

A declaração de Paulo Macedo é talvez o melhor resumo do impasse a que chegámos: o Estado pede aos cidadãos que não esperem serviços públicos do banco público no preciso momento em que saca milhões dos impostos. Compreendo que, para Paulo Macedo, isto não represente nenhum problema político. Mas é um problema político para os socialistas. O problema com que se debatem sempre que tentam casar a sua política keynesiana com as exigências de Bruxelas. A coisa vai-se gerindo e pelo menos espera-se que uma nova gestão não se limite a cortar nos balcões e também vá cortando qualquer coisa nos favores feitos a amigos políticos. Mas um dia a coisa rebenta e a escolha terá de ser feita: ou serviços públicos e intervenção do Estado na economia, ou a União Europeia. As duas coisas são, de dia para dia, cada vez mais incompatíveis.


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