A mão por detrás dos arbustos

(José Sócrates, in Diário de Notícias, 18/02/2017)

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No livro lançado na quinta-feira sobre os seus anos em Belém, Cavaco Silva não poupou nas palavras sobre a governação de José Sócrates, com quem coabitou de 2006 a 2011. Depois de o DN pedir uma reação do antigo primeiro-ministro à obra de Cavaco Silva, Sócrates respondeu com um texto de opinião que publicamos nesta página.


Nunca um presidente ou primeiro-ministro relatou as conversas tidas entre ambos enquanto exerceram funções. Há boas razões para isso, que vão da boa educação até ao necessário sentido de Estado. A avaliar pelos relatos públicos e bem vistas as coisas, o livro agora publicado é um autorretrato perfeito das consequências que o ressentimento pode ter no carácter de um político.

Não desejo, nem nunca me ocorreu, seguir caminho tão indigno. Já no passado tive de suportar a indecente campanha de um partido da oposição contra mim, atacando-me por não ter falado com o seu líder, quando na verdade tivera com ele numa longa reunião. Fi-lo pelo escrúpulo de não revelar conversas que estava comprometido a não a divulgar.

Ponho de lado as vulgares opiniões políticas expressas no livro pelo autor, que aliás, sempre me enfastiaram. Ponho igualmente de lado outras conversas, na sua maioria distorcidas e falsas, que não passam de vulgar exercício de mesquinhez disfarçado de relato histórico. Mas não posso pôr de lado, pela sua importância e pelo que tem de paradigmático, o inacreditável relato que faz do chamado “episódio das escutas”, sem outro propósito que não seja o de distorcer e falsear a verdade histórica.

Houve, é certo, uma reunião no dia 16 de setembro de 2009, que recordo muito bem. Como poderia esquece-la? Nessa reunião exprimi ao então Presidente o meu protesto por não ter visto desmentida uma grave acusação de escutas que o meu gabinete teria feito ao Palácio de Belém e que o Presidente sabia ser falsa. O Presidente respondeu-me, como aliás faria noutras ocasiões, que não interromperia as suas férias para responder aos deputados do meu partido que tinham criticado a participação de membros da casa civil do Presidente na elaboração do programa de governo do PSD. Retorqui, como é óbvio, que não percebia a ligação entre os dois assuntos. Lembrei também que os senhores deputados “não eram do meu partido”, mas deputados à Assembleia da República, membros de um órgão de soberania, e que só eles poderiam responder por eles, não eu. Insisti no assunto: a notícia das escutas era pessoalmente ofensiva e, estando o país em campanha eleitoral, tinha provocado sérios prejuízos ao Partido Socialista, podendo ter sido evitados se o Sr. Presidente da República a tivesse desmentido. Agastado, o Sr. Presidente entendeu lembrar-me que eu estava a falar com o Presidente de República. Respondi que nunca me esquecia disso, mas que estava ali a falar-lhe como primeiro-ministro, eleito democraticamente e contra o qual se tinha lançado uma falsa e maldosa campanha para que perdesse as eleições. A conversa ficou por aí.

Uns dias mais tarde soube-se a verdade. A publicação de um e-mail permitiu saber que tais notícias tinham sido transmitidas a um jornalista pelo principal assessor de imprensa do Sr. Presidente da República. Estava identificado o executante. Mais tarde, quando este publica as memórias, denuncia o mandante: “Recebi uma indicação superior para o fazer” (pag. 146 do livro de Fernando Lima). Tudo isto é conhecido e está comprovado. Custa acreditar na perfídia que a recente versão do livro contém: afinal, as notícias sobre as escutas teriam sido intencionalmente colocadas na imprensa pela “tenebrosa máquina de propaganda do PS” para, claro está, afetar a credibilidade do Sr. Presidente.

Por mais desprezo que sinta – e sinto – por tal estilo e por tal literatura, não posso consentir que tal deturpação da verdade fique sem resposta. O que se passou foi, tão simplesmente, isto: pela primeira vez na história democrática do país ficou provado que um Presidente concebeu e executou uma conjura baseada numa história falsa, por forma a deitar abaixo um governo legítimo em funções.

Pela sua importância, não devo também deixar de fazer um último comentário. Todos os que acompanharam a vida política na altura da crise política sabem bem que a única preocupação do Sr. Presidente era aquela que revelou na noite da sua reeleição: vingança e desforra. O seu discurso de posse foi o sinal de que a direita precisava para atirar o governo abaixo e provocar eleições. Na Assembleia da República, e pela primeira vez na história democrática, chumbou-se um acordo e um compromisso com as instituições europeias que um governo legítimo tinha conseguido para que o país não fosse forçado a pedir ajuda externa. O Presidente da República de então não tem moral para dar lições de lealdade institucional. Na crise política de 2011, ele sempre foi a mão por detrás dos arbustos.

E por aqui me fico, por agora.

PS: Nunca tinha visto uma transmutação de personagens tão estrambólica: “As reuniões com Soares eram sonolentas.” O livro não é uma prestação de contas, mas um ajuste de contas.

3 pensamentos sobre “A mão por detrás dos arbustos

  1. Agora já sabemos o que é que a comunicação social, arregimentada como um rebanho de carneiros, vai fazer com esta opinião de José Sócrates, ao contrário de todo o alarde que fez com a opinião de Cavaco. Vai fazer de conta que não sabe, não leu, não viu.
    Cambada de vendidos !

  2. Há um brutal ressentimento que guia determinantemente o comportamento do animal cavaco. Digo animal no sentido em que todos o somos por descendência mas onde uns se mantêm mais perto do animal primitivo original e outros mais afastados pela civilização, educação, conhecimento e inteligência.
    Cavaco pela sua natureza de “desconfiado” (no sentido como os algarvios de Loulé e lugares fronteiriços) aplicam o termo e pela fraca educação doméstica de valores democráticos recebidos é, precisamente, um produto do meio onde foi criado como lhe diria o poeta Aleixo se fosse vivo. O “desconfiado” é o que desconfia de tudo e todos, é por conseguinte, uma personalidade insegura permanente, vive em permanente instabilidade mental e por isso pergunta a todos, conhecidos e até desconhecidos, a opinião sobre qualquer decisão que precise tomar. Mas, desconfiado de tudo e todos, também não acredita em nenhuma opinião que não seja a sua e, dada a fraca cultura e capacidade intelectual, torna-se um homem só, isolado, todo entregue a ver maquinações contra si por todos os lados e, por isso mesmo, totalmente disponível para ser manipulado por qualquer sujeito esperto que o bajule de forma a granjear-lhe a confiança.
    Foi desta forma que se foi rodeando de muitos sujeitos espertos oportunistas-calculistas que desaguaram quase todos no BPN e outros locais ainda mais tenebrosos como o duarte lima. E nunca deu por nada, nunca suspeitou de nada, nunca reparou como enriqueciam do dia para a noite. Antes pelo contrário, apoiou-os teimosa e irresponsalvelmente até ao último minuto, pois, já antes se deixara captar pelos tais “sujeitos espertos” através de pequenas corrupções e favores corruptos uma vez que, para um carácter tão mesquinho e desconfiado tais actitudes não passam de pequenos pecados que ficam saldados com uma missa.
    Uma tal personalidade mesquinha e instável é imprópria para chefiar qualquer cargo de responsabilidade. Uma tal personalidade remete toda e qualquer responsabilidade própria para cima dos seus adversários: “raramente tenho dúvidas e nunca me engano” e “deixem-me trabalhar”.
    Uma tal personalidade é sempre medíocre e incompetente para gerir uma bomba de gasolina quanto mais um país: burrice do eleitorado e pouca sorte a nossa.
    E pior que tudo ainda foi que este estilo e comportamento reles de fazer política fez escola que, como se vê hoje em dia, o país se confronta e está com dificuldade de vencer a mediocridade dos “sujeitos espertos”.

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