Europa: a História não deu nem tirou a razão a Soares

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 11/01/2017)

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                                  Daniel Oliveira

Gostamos de discutir se a História deu ou não razão a alguém. Porque todos queremos estar do “lado certo da História”. A ideia é duplamente absurda. Primeiro, porque assume que o político trabalha para a História. O político trabalha para os seus contemporâneos e para um horizonte previsível. Ficar na História não é um objetivo, é uma consequência.

Depois, porque apesar do distanciamento permitir um olhar mais desapaixonado, o passado depende sempre do presente. E o presente vai mudando e com ele o olhar sobre os mesmos acontecimentos. A História nunca chega ao fim. Dá razão e volta a tirá-la. O importante não é estar do lado certo da História – para o conseguirmos teríamos de saber do fim dos tempos –, mas fazer o melhor possível com os dados que se tem.

Com a crise do euro não faltou quem dissesse que a História veio dar razão aos comunistas. No momento da morte de Mário Soares, associa-se a defesa da democracia e da liberdade ao seu europeísmo, dizendo que ele esteve do lado certo da História. Não pretendo resolver esta disputa. Quero apenas dar-lhe alguma perspectiva.

O projecto europeu desempenhou, na minha opinião, quatro funções para Portugal: consolidar a democracia, livrar-nos de uma elite bafienta, subsistir a vocação imperial pela vocação europeia e dar ao País meios para o seu desenvolvimento económico.

A primeira era a mais evidente e talvez a que mais moveu Mário Soares: ela consolidava o processo democrático, defendendo Portugal de outra influência que não fosse a europeia e norte-americana. Com a entrada na CEE, 11 anos depois da revolução, a democracia tornou-se irreversível. Não é possível fazer História contra-factual, mas não estou seguro que isso acontecesse sem a integração no clube das democracias europeias ocidentais. E foi isso, muito mais do que as criticas económicas, que moveu o PCP contra a entrada de Portugal na CEE.

A integração europeia abria o País ao exterior, vencendo décadas de isolamento que criaram uma elite provinciana, rentista e profundamente reaccionária. O regresso, ao fim de poucos anos, das burguesia criada ou protegida por Oliveira Salazar durante décadas – Champalimaud, Mello ou Espírito Santo – aos mesmos lugares de onde partira em 74/75 desmentiu essa ilusão. A nossa elite económica mudou muitíssimo menos do que o resto do País: é mais atrasada, medrosa e impreparada do que o povo que supostamente lidera. Mas é verdade que surgiram, apesar de tudo, novas elites cuja a ascensão só foi possível com a integração no espaço económico europeu. Não estou seguro é da sua relevância.

A adesão à CEE permitia que o país fugisse da sua própria pequenez, substituindo o Império pela Europa. Ao contrário dos dinamarqueses, belgas ou islandeses, Portugal nunca conseguiu viver de forma descomplexada com a sua dimensão. O facto de ter detido um império colonial não o dotou dessa humildade realista. E isso está interiorizado naquilo que somos.

Este complexo de simultânea menoridade e megalomania, esta fatalidade do império perdido, faz parte do que somos. Os maiores traumas que vivemos estão todos ligados a esta perda imperial: Alcácer-Quibir, desmantelamento luso-brasileiro, ultimato britânico e descolonização.

Todos eles resultaram nas mais profundas mudanças políticas que a metrópole conheceu. A quinta mudança foi a integração europeia, que nos “salvou” do maior dos nossos medos: a nossa própria pequenez. Ainda hoje, esse terror determina uma total incapacidade de discutir o nosso papel na Europa. Temos pânico de ficar confinados a este rectângulo.

Por fim, a Europa daria ao País os meios económicos e políticos para o seu desenvolvimento. Quem viveu os anos 70 sabe que Portugal se tornou irreconhecível desde então. Perco a conta às vezes que digo à minha filha que no meu tempo não havia isto e aquilo. E percebo quase sempre que a fronteira foi a entrada na Europa. No que toca a serviços públicos e alguns direitos básicos, o 25 de abril foi mais determinante. Mas na economia e no acesso a bens de consumo a Europa é que fez a diferença. O preço foi, como sabemos, a destruição de grande parte de um tecido produtivo obsoleto, sem a necessária substituição por um mais moderno. A Europa, em vez de ajudar a substituir por uma economia mais modernizada, contribuiu para desmantelar e substituir a produção por importação.

Era possível dizer – dizia-se sem qualquer receio –, nos anos 90, que a aposta de Soares tinha sido totalmente ganha e que os comunistas tinham mostrado, mais uma vez, estar do lado errado da História. Portugal conhecia níveis de desenvolvimento e qualidade de vida nunca vistos, era impossível aflorar sequer qualquer tipo de crítica à escolha europeísta. A opção definida em Maastricht e consolidada em Lisboa, que encaminhou a União para um projeto de liberalização económica e divergência entre nações estava já inscrita no DNA do projeto europeu. A criação do euro e o alargamento exponencial e descontrolado da UE transformou a Europa noutra coisa. Depois de cumprir todas as suas funções, a nossa participação na União Europeia está a ter o resultado oposto ao pretendido: está a desgastar a nossa democracia (e a das restantes nações europeias), esvaziando-a de objeto e propósito; colocou no lugar da nossa obsoleta elite económica um poder financeiro distante, volátil e predatório; substituiu os nossos sonhos imperiais por uma mentalidade de colonizado; e retirou-nos qualquer instrumento soberano que permita defender o nosso desenvolvimento económico e social.

Soares apoiou todos os passos que foram dados para aqui chegar, em especial a criação do euro. E fê-lo na convicção de que a Europa que defendia era a mesmo que tinha garantido um enorme desenvolvimento social e económico e a consolidação da nossa democracia. Tal como Mitterrand, Soares era uma político sem sensibilidade económica. Por isso sobrevalorizou o processo de integração política e ignorou a dinâmica económica e de poder entre Estados que a integração monetária provocaria.

Nos anos 90, Soares mostrava que a escolha europeia pela qual se bateu estava totalmente certa, o que obrigou os comunistas a enfiar a viola no saco. Em 2017 é impossível dizer as coisas assim. Isto apenas quer dizer que a História nunca está feita, e por isso nunca sabemos a quem ela vai realmente dar razão. Vai dando e tirando razão a todos. Com os dados que tinha, Soares fez a escolha certa: a integração europeia consolidou a democracia, abriu o país ao mundo e garantiu um extraordinário salto económico e social. A União que se forjou para o século XXI não oferece ou oferecerá nada disso. Soares percebeu-o e foi-se opondo ao rumo que as coisas tomaram, não percebendo que as condições para este novo momento foram definidas pela sua própria geração – Mitterrand e Kohl –, quando iniciou a caminhada para a integração monetária e forçou novos passos para os quais a Europa não estava preparada.

Reconhecer que o projeto europeu, que garantiu décadas de paz, protegeu o Estado Social e permitiu uma convergência económica e social entre Nações livres, está morto e que a União é hoje o oposto disto tudo representa, para tradição socialista europeia de que Soares é uma das figuras históricas, um momento tão doloroso como aquele que os comunistas viveram nos anos 90.

Fazê-lo não tira razão à escolha europeia que Soares defendeu nos anos 70 e 80. Apenas assume o que Soares assumiu muitas vezes: que as opções mudam quando muda a realidade. A História deu razão a Soares e depois tirou-a. Será a nova geração de socialistas a adaptar-se a um tempo em que ser europeísta quer dizer o contrário do que queria.

7 pensamentos sobre “Europa: a História não deu nem tirou a razão a Soares

  1. A sua análise está perfeita. Felicito-o também pela sua homenagem anteontem ao Mário Soares, na qual senti exactamente tudo o que disse a respeito do homem e do político. Parabéns, Daniel Oliveira

  2. «Isto apenas quer dizer que a História nunca está feita, e por isso nunca sabemos a quem ela vai realmente dar razão. Vai dando e tirando razão a todos.» Daniel Oliveira, ipsis verbis.
    É isso! Humildade e tolerância são precisos.

  3. O Daniel tem uma perspicácia fora do normal, embora às vezes as palavras não lhe saiam bem e crie anti-corpos, mas normalmente é de quem quer estar do contra de qualquer forma.
    Isto para dizer “na mouche”.

  4. Para dizer que Soares perdeu a razão será necessário acreditar que o projeto europeu está realmente morto e que nada mais de bom poderá vir dele. Mas mais, a alternativa de regresso a estados nacionais protecionistas não augura nada de bom, porque o nacionalismo leva normalmente à guerra e à penúria económica. E depois, as tentativas de erguer estados baseados num nacionalismo progressista redundaram não apenas em penúria económica, mas também em despotismo e capitalismo de Estado (pense-se nos casos da Venezuela ou de Angola, para não irmos mais longe no tempo). Foi também por estarem fartos de saber isto que os social-democratas enveredaram pelo projeto europeu. Adaptar-se ao novo tempo de que fala Oliveira implicará encontrar um modelo que substitua o atual, mas que não pode significar regredir 40 anos para o passado…

  5. Artigo muito bem escrito e que ilustra as 3 décadas da adesão de Portugal à actual UE. De facto alcançamos a democracia e a liberdade mas não a solidariedade da UE, onde predominam os grandes, que espezinham os pequenos. A total integração europeia é um mito nos nossos dias, e, vai daí que os nacionalismos e proteccionismos já se vislumbram no horizonte. Foi isto que o Mário Soares, já percepcionou nos seus últimos dias de vida, insurgindo-se contra a austeridade virtuosa, defendida pelos neo-liberais (também esteve contra a guerra no Iraque, e sempre do lado dos palestinianos, ou seja dos oprimidos, porque foi contra isso contra quem sempre lutou; isso valeu-lhe os mais desvairadas críticas; nem sempre esteve bem, mas só aqueles que algo fazem é que estão sujeitos à critica). Volte com mais artigos dando a sua opinião.

  6. Concordo com o que li.
    Todavia a liberdade que temos tambem se deve a politicos bem como a entrada na União Eurpeia…
    Agora vamos ver se havera juventude com a garra politica para mudar a historia positivamante…
    …Deus queira que sim…..
    Obrigada Daniel pelos seus pareces televisivos e escritos.
    Bom ano de 2017 para si.

  7. A História não deu nem tirou a razão a Soares – totalmente de acordo.
    Mas Soares fez a história dos 40 anos de Portugal após o 25/abril. E fê-la à sua maneira.
    Meteu o país na UE e Euro porque sabia que isso traria muitos almejados biliões de euros (como aconteceu), e seria uma rede de protecção às pretensões de Cunhal.
    Dizer que, depois a Europa se modificou e “obrigou” Portugal à desindustrialização e à importação, é que me parece errado e uma tentativa de desculpar a ( como diz com razão ) ignorância económica e financeira de Soares para lá da sua astúcia política.
    Entraram rios de dinheiro que deram para comprar muitos carros e fazer muitas rotundas… Mas a Europa não tem qualquer responsabilidade pela forma como os governos socialistas ( e não só…) esbanjaram essas ajudas numa festa obscena.
    Com esses milhões entrados, só faltava que não se sentisse um desafogo… mas nada foi feito estruturalmente para o país pertencer a este clube de ricos. Os países nórdicos fizeram, a Irlanda fez, a Holanda também fez… Nós esbanjámos que nem novos ricos.
    A história que Soares escreveu depois da entrada na UE, e a matriz que legou pela constituição e pela praxis política até à direita, não merece encadernação de luxo.
    E o PCP/BE só parecem ter agora razão, porque alguém se encarregou de tornar o país miserável e divergente da UE.

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