O mundo das pessoas de pernas para o ar

(Anabela Mota Ribeiro, in Público, 08/01/2017)

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Começamos o ano acabrunhados. A eleição de Trump, o ‘Brexit’, as vagas de refugiados, as imagens de destruição na Síria, os ataques terroristas… Que esperar do futuro? Falámos com pessoas da Filosofia, do teatro, da academia, da política. Pedimos que nos ajudassem a ler o mundo em que vivemos.


1. Carmen Miranda gravou em 1938 um samba-choro de Assis Valente. “Anunciaram e garantiram que o mundo ia-se acabar. Por causa disso, a minha gente lá em casa começou a rezar. Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada. Por causa disso, nessa noite lá no morro não se fez batucada.”

Um ano antes de rebentar a Segunda Guerra, com uma alegria feérica e uma graça mordaz, a cantora brasileira dava expressão  a um sopro que era o do seu tempo. A um medo. O mundo ia-se acabar? Liberdade poética à parte, Assis Valente prenunciava que a ordem natural das coisas ia ser tão subvertida que até o sol ia nascer antes da madrugada?

O tal de mundo não se acabou, conclui-se na canção. Entretanto beijou-se a boca de quem não se devia, fez-se o excesso, o impensável. Recorreu-se à oração, a quem pode, a quem vale.

2017. Já estamos do outro lado da madrugada, o sol nasceu, o ano novo entrou. Uma certa ordem permanece intacta. Apesar dos balanços catastrofistas, dos presságios, da racionalidade que nos diz que Trump é Trump como dois e dois são quatro, da ameaça palpável, do medo que fustiga, da memória fresca dos atentados em Istambul, em Berlim, em França, uma certa ordem permanece intacta: temos de viver o dia presente, o dia seguinte, o outro. E, quem sabe, encontrar alegria, fazer batucada. Apesar de um tal de mundo, que nós conhecíamos desde o fim da Segunda Guerra, ter acabado, ou estar em ruínas. Falando da Europa, sobretudo, mas não só.

A atmosfera deste outro lado da madrugada não é de alívio ou de começo de mundo. Há poucos dias, todos trocámos mensagens (pífias), desejámos o melhor (o que quer que isso seja), fincámos os pés, queremos estar preparados, bem acordados. Já estamos no futuro, mesmo que não tenhamos futuro dentro de nós, mesmo que este não seja o futuro com que sonhámos. Nós somos estes que têm medo e não sabem o que esperar. Somos estes que não sabem bem quem são quando se vêem reflectidos no espelho, nem têm ferramentas para identificar o outro, o estrangeiro, o próximo, um outro diferente de si.

A principal luta que vamos ter é a da defesa da democracia.

(Marina Costa Lobo, politóloga)

2. O dia não é claro, há uma névoa que embacia, ares de pesadelo. O futuro é isso. Procuramos uma nova sintaxe que organize ou torne legível o novo caos. Procuramos entender.

Marina Costa Lobo, politóloga, investigadora do Instituto de Ciências Sociais. “A principal luta que vamos ter é a da defesa da democracia. Os desenvolvimentos recentes, sobretudo no mundo das democracias ocidentais, levam-me a acreditar que o que vai estar mesmo em causa é a defesa da democracia liberal, pluralista, assente em alianças internacionais. Inglaterra e EUA, deixaram de ser faróis, o que nos fragiliza enquanto grupo. Nos EUA elegeram alguém que é de fora dos partidos, que se propõe desfazer alianças internacionais que têm definido o século XX (nomeadamente a Nato ou a forma como ela está constituída, como é financiada). Também a relação com o México. O anúncio de construir um muro é simbólica de uma nova era.

Muro: é uma palavra que regressa.”

O tempo é o da construção de muros. Mas como, se a queda do muro que separava as Alemanhas foi ontem? O horizonte temporal de que estamos a falar é estreito, muito estreito, e contudo inegável. Tudo ganhou aceleração. O tempo passou a ser uma matéria mais elástica, que nos escapa das mãos.

Prossegue Marina: “O ‘Brexit’ é uma forma de construir muros, de limitar a livre circulação de pessoas. O que o Reino Unido está a dizer é que não quer participar do Mercado Único nos moldes em que ele existe. O que os que votaram no Trump e no ‘Brexit’ estão a dizer é: ‘Não nos revemos nisto, inventem outra coisa’. A crise da Zona Euro + Refugiados tem fragilizado muito a União Europeia. Crescem os partidos de extrema-direita. E este ano temos as eleições em França e na Alemanha. É fundamental, durante este período, manter princípios básicos do Estado de Direito. Pluralismo. Liberdade. Aceitação do outro.”

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O que os que votaram ‘Brexit’ estão a dizer é: ‘Não nos revemos nisto, inventem outra coisa’ (Marina Costa Lobo).

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3. A terra treme. Pisamos território movediço. O antigo já não funciona e o novo ainda não é. Como é que nos aguentamos de pé durante o sobressalto? Um elenco de dificuldades por João Constâncio, professor de Filosofia da Universidade Nova.

“O actual estado do mundo é muito deprimente, e, de certa forma, muito óbvio, muito claro. Já muitas pessoas disseram que estamos a viver uma espécie de regresso aos anos 30 do século XX. Sentimos o regresso da ameaça nuclear. Sabemos da destruição ambiental, da extrema financeirização da economia, do crescimento das desigualdades. Acompanhamos a corrupção do sistema democrático americano, a crise das instituições europeias, os males da globalização, o terrorismo (incluindo o terrorismo de Estado). Sabemos da irrelevância do Direito Internacional. Da existência de cerca de 60 milhões de refugiados espalhados pelo mundo. E nada disto é novo: tudo isto é o que tem vindo a acontecer desde há muito tempo.”

Não podemos dizer que fomos apanhados desprevenidos. Todavia, a montanha parece agora inultrapassável, e viver um exercício ciclópico. E o que resulta da conjugação de todos estes factores surge como um fenómeno recente, urgente, aflitivo. Uma arrepiante sensação de fim de mundo, sintetiza João Constâncio. “O que pode acontecer, e talvez esteja já a acontecer, é que, um pouco por todo o lado, as pessoas percam a esperança de que as coisas possam melhorar. Percam, no fundo, a ideia de progresso. Nesse caso, triunfará a lógica do pânico e do cada um por si. Isso bastará para que seja impossível resolver, por exemplo, a questão ambiental. (A possibilidade de tal acontecer foi recentemente pensada e muito bem descrita por uma pessoa muito inteligente, chamada Brian Eno).”

É a própria ideia de ser possível algum tipo de progresso e de fazer sentido pensar em algo como ‘a humanidade’, que está posta em causa.”

João Constâncio, professor de Filosofia.

Ele tinha 18 anos em 1989, o ano em que caiu o muro de Berlim. Estudava Filosofia, interessou-se por Platão e Nietzsche, mais do que tudo. Lembra-se bem de como era fácil, nesse tempo e ao longo de todos os anos 90, acreditar na teoria do fim da História. A democracia liberal havia triunfado e, com ela, os direitos humanos, o direito internacional, a globalização e a liberdade individual. “Hoje, depois do 11 de Setembro, depois da invasão do Iraque, depois do que foram os anos Bush, depois da queda do Lehman Brothers e da crise financeira internacional, depois do ‘Brexit’ e da vitória de Trump, não só essa visão dos anos 90 parece absurda, como é a própria ideia de progresso, a própria ideia de ser possível algum tipo de progresso e de fazer sentido pensar em algo como ‘a humanidade’, que está posta em causa.”

4. A Europa. Os Estados Unidos. O mundo. Pedimos o auxílio de um verso de Manuel António Pina, para suster o pessimismo, ganhar fôlego: “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo. Calma. É apenas um pouco tarde.

5. O discurso é pré-apocalíptico, lúcido, sem exageros. São os fundamentos da democracia liberal que estão a ser abalados quando se elege um demagogo como Donald Trump (constatação que transparece de todas as conversas que tivemos). O único modo de o contrariar, defende o escritor Richard Zimler, é apostando na educação. Este americano-português, a viver em Portugal desde 1990, faz um longo excurso para falar de pilares da identidade europeia: a existência de uma rede protectora. Vale a pena acompanhá-lo nesta volta. “Os EUA têm uma cultura anti-intelectual. E os EUA têm as melhores bibliotecas, as melhores universidades, os melhores centros de investigação. Parece incompatível. Porém, para um americano de classe média, a palavra ‘intelectual’ tem uma conotação negativa. Significa uma pessoa longe da realidade quotidiana, que sabe alguma coisa sobre assuntos esotéricos. Esta tradição anti-intelectual nunca foi tão pronunciada. Ao contrário, em Portugal, é respeitado o saber. O professor é um senhor. Vejo isso quando as pessoas falam com o Alexandre [Quintanilha, o marido, professor catedrático]. É um respeito pelos anos que essa pessoa dedicou ao seu tema, ao aprender, e que está acima de discordâncias políticas ou outras.

Quando falo disto na Europa, as pessoas ficam estupefactas.

Para um americano de classe média, a palavra ‘intelectual’ tem uma conotação negativa. Significa uma pessoa longe da realidade quotidiana, que sabe alguma coisa sobre assuntos esotéricos. Esta tradição anti-intelectual nunca foi tão pronunciada.

Richard Zimler, escritor

Mas pensemos bem. Nos EUA, as propinas de uma universidade privada custam 60 mil dólares por ano. Não inclui habitação e demais despesas. Quem é que pode pagar isto? A solução-sacrifício é contrair uma dívida gigantesca. Não é incomum uma pessoa passar os primeiros dez anos da vida adulta a pagar dívidas de 100 mil dólares, 300 mil dólares, refém de um sistema que não faz sentido.

Saúde. Vi isto com a minha mãe. Nos últimos anos de vida, as pessoas perdem todas as economias que acumularam ao longo dos anos para pagar despesas de saúde, para se manterem vivas. O ‘Obama Care’ foi uma tentativa de criar um serviço de saúde público, mínimo, parece que Trump vai extingui-lo. Exemplo prático: a minha mãe e eu pagávamos a uma senhora que estava com ela mais de 3500 dólares por mês [3355 euros]. São 40 mil dólares por ano [38.342 euros]. Fora o resto. Quem pode pagar isto? A minha mãe perdeu tudo o que tinha, felizmente não perdeu a casa.

Na Europa, temos uma rede protectora espectacular. Que se mistura com a identidade europeia. Os europeus nem são conscientes dos problemas provocados pela falta de uma rede protectora. Ainda bem que não compreendem, mas não compreendem. E têm a sorte de não ter de perder o seu tempo pensando nestas coisas. Dá uma liberdade… Como? Eu não tenho de fazer outros trabalhos para pagar o meu seguro de saúde privado.”

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Os europeus nem são conscientes dos problemas provocados pela falta de uma rede protectora

Richard Zimler

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6. Volver a los diecisiete

después de vivir un siglo

es como descifrar signos

sin ser sabio competente.

Volver a ser de repente

tan frágil como un segundo,

volver a sentir profundo

como un niño frente a Dios,

eso es lo que siento yo

en este instante fecundo.”

(Violeta Parra, cantora chilena, nasceu em 1917, matou-se em 1967.)

7. Pensemos simbolicamente no 17 como um ano inaugural, um momento em que a terra é fértil e o mundo uma aventura que queremos viver. Em que acreditamos. E, como uma criança, deciframos signos recorrendo à intuição, temos uma compreensão íntima das coisas, dominamos conceitos primordiais. Somos crianças e temos menos medo, temos um coração que não se parte na decepção.

Eduardo Paz Ferreira é professor catedrático de Direito na Universidade de Lisboa. Traz consigo um léxico de palavras-propostas para o novo ano. Palavras que caíram em desuso, assumiram tom moralista, e que são cada vez mais requeridas, como decente. (Por uma Sociedade Decente é o título do seu mais recente livro.) “John Le Carré resumiu assim: uma sociedade decente é uma sociedade que se ocupa em primeiro lugar dos derrotados e com a protecção dos mais vulneráveis. Cruza com a ideia de Estado Social, necessariamente.

Decente é a única coisa que podemos opor à barbárie.”

Outras palavras: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. E luta. E esperança. E radicalismo, para dizer mais vigorosamente: NÃO! Nem é dizer, é gritar. Gritar não.

Comecemos o ano com vigor, observemos as linhas vermelhas que não podem ser pisadas. Por exemplo em matéria de refugiados. Os descartáveis de que falava o Papa Francisco, que foi a Lampedusa chorar os mortos no Mediterrâneo.

Francisco, líder inspirador, que toca em tudo o que é incómodo, considera Paz Ferreira. “Os imigrantes foram remetidos para a esfera da clandestinidade. São uma espécie de criminosos que andam a vaguear pelo mundo. É deplorável. O medo do outro é o resultado de políticas concertadas e activas no sentido de o estimular. Foi criado um inimigo comum, os índios que vêm assaltar o forte.” Os índios são quem? Os que vêm da Síria?, os muçulmanos? “Os muçulmanos, de certa maneira, fizeram apagar o problema dos que vinham de África. O ódio está agora concentrado neles.”

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Os imigrantes foram remetidos para a esfera da clandestinidade

Eduardo Paz Ferreira, Professor de Direito

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Os migrantes formam um corpo visível, doloroso, do desarranjo em que está o mundo. Não conseguimos esquecer a imagem do menino que dá à costa, naufragado, nem do menino coberto de poeira e sangue, em cuja cara está o absurdo de Alepo, a violência, a destruição, o sofrimento. Vêm à memória imagens do filme de Rossellini Alemanha Ano Zero, rodado em 48, uma criança que vagueia pela Berlim de prédios esventrados, à cata de comida. Sabemos como termina esse menino.

Mas então, voltemos a citar Gramsci, exorta o advogado: contra o pessimismo da razão, o optimismo da vontade. Apesar de o velho custar muito a sair e o novo ter dificuldade em instalar-se. Vamos lutar. Vamos pensar em voltar aos 17 depois de viver um século, como na canção de Violeta Parra. Não nos deixemos apanhar na ratoeira do populismo, do apontar o dedo aos políticos, aos que estão na esfera do poder. O dedo que diz:

– Nós somos os sem mácula, os outros, os impuros. Nós somos a plebe honrada, a elite é uma corja que de alguma maneira se corrompeu. Nós somos os que não têm poder, os que querem destituir aqueles que detêm o poder. Seja de que maneira for. Mesmo que seja através de pessoas como Trump. Pessoas de poder que são diferentes das outras pessoas que têm poder.

Não nos deixemos apanhar em ratoeiras que nos gritam que são ratoeiras.

Não podemos não ver no populismo, de modo grosseiro, aquilo a que antigamente se chamava luta de classes. Os novos proletários são os excluídos da globalização.

Eduardo Paz Ferreira

Ouçamos Paz Ferreira: “Não podemos não ver no populismo, de modo grosseiro, aquilo a que antigamente se chamava luta de classes. Ou seja, uma luta entre pobres e ricos. Os novos proletários são os excluídos da globalização. Estes anos de prosperidade e paz foram também anos em que a desigualdade cresceu brutalmente e a concentração de riqueza aumentou. Christine Lagarde [directora-geral do FMI] disse uma vez que 85 pessoas, ou seja, a lotação de um autocarro de Londres, de dois pisos, concentram uma riqueza igual à da metade da população mundial. Dado assustador. Carlos Farinha Rodrigues [professor do ISEG] fez um trabalho sobre os anos da troika. Os mais sacrificados foram os mais pobres. Aos que seguem no autocarro?, ninguém lhes toca. E vemos Trump anunciar que vai desonerar ainda mais os impostos sobre os ricos, que já eram escandalosamente baixos!”

Inventemos novas narrativas. Participemos na res publica. É preciso meter as mãos na política. Não forçosamente nos partidos. “Mas não é opróbrio estar nos partidos. E nos partidos há outras condições de eficácia”, sintetiza Paz Ferreira.

8. “Eu não nasci para odiar, mas sim para amar” – Antígona, Sófocles.

Isabel Capeloa Gil é reitora da Universidade Católica. Na sua tese de doutoramento trabalhou três figuras femininas da tragédia grega, Antígona, Cassandra e Medeia. Pedimos-lhe que falasse de Antígona, partindo da afirmação célebre com que abrimos este capítulo. “O que leva Antígona a reagir não é a rebelião política. As suas motivações são de outra ordem. Assentam na defesa da coesão social, da esfera privada contra as intromissões de um Estado que sente como sendo ditatorial. O que a faz ir contra a lei da cidade é o desejo de sepultar o irmão (cujo corpo deve ficar fora dos limites da cidade, à mercê das aves de rapina). A lei de Creonte é a de punição do traidor (o irmão). Mas essa punição vai interferir na esfera da família. A lei da cidade contende com os sentimentos e com aquilo que define a humanidade e o bem comum (num sentido menos político e mais social).

O problema é olhar para o outro como: Aquela gente que é etnicamente diferente, que me vai tirar o emprego, que vai pôr uma bomba, que ameaça o meu ecossistema,

Isabel Capeloa Gil, reitora da Univ. Católica

Hoje em dia precisamos de nos reencontrar com os laços da nossa comunidade, com as formas de pertença. Não digo que sejam as tradicionais. Que nos entendamos a partir do que temos em comum. E isso não diz respeito apenas às pessoas do nosso grupo social, da nossa nação, que falam a nossa língua, que têm a cor da nossa pele. A tónica do discurso deve ser sobre o que o outro tem e que eu também tenho. Ou sobre o que o outro tem que é diferente de mim mas com o qual me posso relacionar. Isso é ser humanista. O problema é olhar para o outro como:

– Aquela gente que é etnicamente diferente, que me vai tirar o emprego, que vai pôr uma bomba, que ameaça o meu ecossistema, que eu não entendo.

Com estes medos estamos a perder-nos a nós próprios.”

Uma das palavras que Isabel Capeloa Gil traz para a discussão é memória. Num cenário em mutação acelerada, ou mesmo voraz, falta espaço e distância para reflectir sobre os impactos das transformações a que assistimos. Ainda não decorreu tempo, por exemplo, para que as assimetrias entre alemães de leste e ocidentais fossem superadas. Ainda há, em certas atitudes, um muro. Mas o mais preocupante, para Capeloa Gil, é o esquecimento, é a ilusão de que todas as feridas estão cicatrizadas, é ver que um passado recente está tão enterrado que dele não resta memória. “Dou um seminário sobre Cultura Visual e mostro aos meus alunos um documentário feito pelo Billy Wilder, Moinhos da Morte, Die Todesmühlen, a partir de imagens recolhidas nos campos de concentração nazis. Este filme, durante um período de tempo, era de visionamento obrigatório para que os alemães pudessem ter acesso às senhas de racionamento. Era uma forma de reeducação pela imagem. Posso dizer que há nestes grupos muitos alunos que nunca tinham visto as imagens dos campos nazis. O efeito é de choque. O meu ponto: que tenhamos no século XXI uma geração de estudantes que vê na Segunda Guerra um acontecimento longínquo, distante, para quem o impacto daquele acontecimento, que representa uma cisão na História da Humanidade, está ausente, é preocupante. Representa o esboroar da História. Quando falamos com eles sobre o pós-Guerra, a construção da Europa assente numa ideia de pertença, igualitária, com justiça retributiva, uma partilha do mesmo ethos, estamos a falar com uma geração que não vê no projecto europeu um projecto salvífico, que não tem nem cultiva esta memória, que adultera a memória. E voltamos a ter narrativas semelhantes às que se urdem de ressentimento e desconhecimento. Ora esta dimensão contextual não pode perder-se para o cidadão comum.”

Em certos momentos parecia-me que o mundo estava a ficar todo de pedra: uma lenta petrificação mais ou menos avançada de acordo com as pessoas e os lugares, mas que não poupava nenhum aspecto da vida

Italo Calvino

9. O escritor italiano Italo Calvino fez um conjunto de conferências em Harvard, em 1985. A sistematização dessas lições americanas resulta no livro Seis Propostas para o Próximo Milénio. No texto sobre a Leveza, falando sobre um mundo que já se amedrontava face à iminência de um novo tempo, podemos ler: “Em certos momentos parecia-me que o mundo estava a ficar todo de pedra: uma lenta petrificação mais ou menos avançada de acordo com as pessoas e os lugares, mas que não poupava nenhum aspecto da vida. Era como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa. O único herói capaz de cortar a cabeça à Medusa é Perseu, que voa de sandálias aladas […]. Para cortar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu apoia-se no que há de mais leve, o vento e as nuvens; e fixa o olhar no que só poderá revelar-se-lhe numa visão indirecta, numa imagem captada num espelho.” Calvino continua uma encantatória descrição do mito de Perseu e da Medusa, não nos deixa esquecer, por exemplo, que é do sangue da terrível Medusa que surge o cavalo alado Pégaso. Sobretudo, retira um ensinamento que importa para aqui: “Nas alturas em que o reino do humano me parece mais condenado ao peso, penso que como Perseu deveria voar para outro espaço. Não estou a falar de fugas para o sonho ou para o irracional. Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra óptica, outra lógica, e outros métodos de conhecimento e de análise”.

10. Entrevista breve a Francisco Bettencourt, historiador, professor no King’s College, em Londres, autor do livro Racismos: das Cruzadas ao Século XX.

Estamos a viver uma crise de identidade? 

Não, estamos a viver uma crise política, na qual várias interpretações de identidade estão em conflito.

Apesar do nevoeiro denso, é possível perscrutar uma direcção em que avançamos? 

A História sempre desenganou os prognósticos.

Que palavras novas usamos para dizer a nossa vida? 

As palavras revelam mas também fluem de acordo com as circunstâncias e os grupos sociais envolvidos. Nova é a moda da vulgaridade e da ofensa em política, que deixou de estar ancorada no mínimo de consenso à volta de factos básicos. Outras dinâmicas irão resultar em novos equilíbrios.

Reconhecemo-nos no outro ou temos simplesmente medo do outro?

O medo do outro cresce com a falta de contacto e de interacção. Quando estas condições existem, a compreensão aumenta.

Estamos mais isolados? 

Nunca tivemos este grau de interacção, sobretudo virtual. O que não significa que o isolamento tenha diminuído.

Os atentados terroristas, a conquista de espaço eleitoral por movimentos e líderes populistas, as sequelas deixadas pela crise económica: foi isso que nos trouxe aqui?

Há um cheirinho dos anos de 1920, mas as condições históricas não são as mesmas e o terrorismo fascista não está ao virar da esquina. Apesar de tudo existe uma sólida educação de boa parte da população e a capacidade de resistência a movimentos extremistas de extrema-direita é forte.

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Apesar de tudo existe uma sólida educação de boa parte da população e a capacidade de resistência a movimentos extremistas de extrema-direita é forte

Francisco Bettencourt, historiador, King’s College

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11. Então. Discutimos o futuro? A identidade? Sentimo-nos a esfarelar? Perdemos horizontes, perdemos referências. É muita coisa. Tudo misturado. Mas evitemos as generalizações. E tenhamos claro que a memória que temos do mundo é sempre uma memória seleccionada. Seleccionada por alguns.

José Maria Vieira Mendes nasceu em 1976, é dramaturgo, membro de uma companhia que é também uma família artística, o Teatro Praga. Escreve, a páginas tantas, na peça Terceira Idade: “Então abandonamos este século e saltamos no tempo. Estou-me nas tintas. Estou farta de ser passiva, de aturar as palavras dos outros. A partir de agora só digo aquilo em que acredito. Poupem-me as máximas e dêem-me os mínimos. Vamos tratar de negócios. Temos de mudar o mundo. Alguma coisa havemos de conseguir. Quem é que escreveu isto?” (Esta é uma das peças coligidas no livro Uma Coisa.)

12. O que caracteriza o nosso tempo? Uma ideia de velocidade. Que contrasta com a evolução lenta e silenciosa das coisas, no subsolo. Normalmente damos pela deflagração, a nossa reacção é imediatista, emocional, ao visível, o que nos ajuda a esquecer e ignorar esta ramificação e complexidade.

Outra ideia. A de abertura à informação. Uma fantasia de livre acesso às coisas, aos lugares, às pessoas, à informação (dominante e minoritária). Tudo potenciado pelas redes sociais. A visibilidade do que é alternativo passa muito pela Internet. De certo modo, parece contraditório com o crescendo de discursos xenófobos, totalitários. Mas, muitas vezes, os próprios discursos xenófobos e totalitários vêm da alternativa, do underground, e sobrevivem à custa de redes sociais.

Outra e talvez decisiva ideia: a da manipulação da verdade. O conceito de pós-verdade [post-truth foi eleita pelos Oxford Dictionaries como uma das palavras do ano] é um modo de dizer que eu posso fazer o que eu quiser. Nesta, interessa o que a mim me parece, os sentimentos, há uma rejeição da informação factual. “É um discurso distinto do da pós-modernidade em que se diz que não há uma verdade, há pontos de vista sobre o mundo. É um discurso que aponta no sentido de abolir os totalitarismos, o é assim e acabou-se, abre espaço para a individualidade, para as minorias, para o que quer romper. A pós-modernidade é capturada por aqueles que proclamam o pós-verdade: se não há verdade, tu crias a tua própria verdade, e como crias a tua própria verdade, podes manipulá-la. Torna-se perigoso e perverso.”

Foi uma das grandes lições da austeridade: a de que não serviu para nada. Só serviu para as pessoas ficarem muito zangadas. E alguns enriquecerem.

José Maria Vieira Mendes, dramaturgo

Estamos a voltar aos perigosos anos 30 do século passado? É possível estabelecer uma similitude ou ela é longínqua?, perguntamos. (José Maria Vieira Mendes viveu em Berlim.)

“Se quisermos podemos sempre estabelecer similitudes. Penso na crise financeira dos anos 30 e na emergência de populismos, de discursos anti-democráticos e xenófobos. Os pêlos começam a eriçar-se quando vemos discursos anti-refugiados, bloqueios, crise financeira. Mas depois, casos como o da Áustria, recentemente, em que o candidato de extrema-direita foi derrotado, fazem-nos dizer:

– Ah, espera aí.

Mesmo em Portugal, nunca vingaram movimentos populistas ou xenófobos. Mesmo quando tivemos imigração africana. Tivemos racismo, sempre, velado. Mas não a nível político.

Que há uma relação entre pobreza e discursos.., chamemos-lhes de inimizade para com o outro, é óbvio. Basta ir à Segurança Social naqueles dias em que as filas são intermináveis. Começa toda a gente a barafustar com toda a gente, e toda a gente é culpada. Ou entrar num autocarro cheio. E há sempre vítimas, que são sempre as minorias.”

Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

“Foi uma das grandes lições da austeridade: a de que não serviu para nada. Só serviu para as pessoas ficarem muito zangadas. E alguns enriquecerem.

Mas há sempre a possibilidade de desligar. Como com a televisão. A escolha é minha. Não somos autómatos que estão a receber. Tenho uma escolha e uma responsabilidade. Por exemplo a responsabilidade de dizer que o meu mundo é outro. Esta honestidade, de olhar para si próprio enquanto pessoa que investe sentido no mundo, é fundamental. Muitas vezes esquecemo-nos disso, da nossa possibilidade de desligar. De interpretar. Não há nada que seja inalcançável. Não existe a coisa absoluta a que só alguns têm acesso. Todos temos capacidades de relação e percepção do mundo. Obviamente por cansaço, perdemos muitas vezes a vontade de nos mexermos, de dizer:

– Ok, eu posso fazer. Eu posso mesmo fazer.”

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PÚBLICO -

Esta honestidade, de olhar para si próprio enquanto pessoa que investe sentido no mundo, é fundamental.

José Maria Vieira Mendes

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13. Faranaz Keshavjee nasceu em 1968 em Moçambique, tem origem indiana, é muçulmana, mudou-se para Portugal em 1974. Estudou Antropologia, viveu em Inglaterra, é especialista em estudos islâmicos.

“Quando começamos a falar muito de identidade, estamos, peixes dentro de água, a questionar a água, o modo de respirar. Estamos a questionar o modo como pertencemos a uma coisa. E quem define isso? Identidade não é coisa estática. É mutante. O que é certo: a nossa identidade constrói-se em relação com outro. Se não definir quem é o outro, não consigo ver-me a mim mesma.

Talvez as sociedades contemporâneas precisem de um outro que tenha uma face homogénea, que não dê trabalho a desconstruir, que seja fácil arrumar numa categoria. Talvez esse outro tenha sempre uma carga negativa, e de há uns séculos para cá esse outro é alguém que segue uma religião diferente. Hoje em dia, esse outro é eminentemente o que segue o islão.

De uma maneira diferente, neste lado do mundo onde nos posicionamos, até há pouco, o outro era o inimigo soviético. Cai o império, tudo fica diluído, a guerra fria não chega a acabar, usa peões diferentes. No cair de um modelo ideológico, é preciso arranjar um outro outro. O 11 de Setembro marca-nos indelevelmente, e muito por acção dos média. Podia ter sido um filme e aconteceu deveras. A importação da ficção para a realidade tem um poder extraordinário, muda a nossa percepção do mundo, da ordem das coisas. Percebemos que somos vulneráveis. Todos alvo. A nossa vida de todos os dias pode transformar-se, acidentalmente, imprevistamente, num campo de batalha. E o alvo não é alguém que está envolvido num processo de guerra, é alguém que está a fazer o seu quotidiano.

Aprender: não isolar as coisas. Perceber a teia. Não discriminar. Os baixos, os gordos, os de cor. O meu filho, quando era pequeno e pintava, queixava-se de não ter cor de pele.

– Mas, filho, o que é cor de pele? Há muitas cor de pele.

Ele dizia de si que era castanho, e que os seus amigos eram todos cor de pele.

Eu acho mesmo interessante que sejamos todos diferentes. O desafio é saber conviver com essa diferença. Mais, é saber construir com essa diferença. Esse é para mim o cerne do cosmopolitismo.

Palavra que emerge com força, ao revés dessa: nacionalismo.

A minha mãe ensinou-me a estar atenta à diferença entre sabedoria e instrução. É uma diferença enorme em relação à qual somos desatentos. Resumia assim: ele é estudado mas não é conhecedor. Isto para dizer que há cada vez mais informação a circular e cada vez menos conhecimento. O problema dos nacionalismos é o desconhecimento. O filtro parece que desapareceu. Tinha um professor que dizia assim:

– Leio um livro de História. Pergunto quem é este investigador. Quem paga para ele investigar. De onde vem o dinheiro que paga a investigação. O que é que lhe foi encomendado.

Isto orienta a informação. Não podemos ser ingénuos. Ensino aos meus filhos e sobrinhos a serem críticos, a questionar, a procurar saber mais, a cruzar informação, porque as coisas não são o que está à superfície.”

O desafio é saber conviver com essa diferença. Mais, é saber construir com essa diferença. Esse é para mim o cerne do cosmopolitismo. Palavra que emerge com força, ao revés dessa: nacionalismo.

Faranaz Keshavjee, especialista estudos islâmicos

14. Mário de Sá Carneiro, poeta português, viveu entre 1890 e 1916. Escreveu estes versos:

“Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro.”

15. Num território de penumbra, ao contrário do poema de Sá Carneiro, tendemos a afirmar-nos seres absolutos, margem de um rio que não se pode transpor. Não nos pensamos estrutura de uma ponte, uma ponte que liga margens como nós. Ficamos encapsulados, movimentamo-nos em círculos, os nossos círculos, que confirmam o que pensamos, quem somos. Adquirimos de facto informação nova?, estamos de facto abertos a discutir perspectivas diferentes ou até antagónicas?, estamos de facto disponíveis para rever o que pensamos? Consumimos informação no Facebook, prescindimos de peritos, de filtros, de testes mínimos. Medimos a nossa acção social pelo número de likes. Descremos do establishment, descremos do intelectual que está fechado na sua torre de marfim, como o americano de que falava Richard Zimler, descremos do inculto que nunca leu o New York Times. Ficamos circunscritos a determinados cubículos. Emparedados. Polarizamos o mundo. Os que pensam como nós. Os outros. Que é feito da palavra pluralismo ou mesmo diálogo?

16. 2017, parece que no mundo as pessoas estão todas de pernas para o ar,  para aludir a um texto antigo e para a infância de Manuel António Pina.

17. Mas depois somos como Cabíria, a prostituta interpretada por Giulietta Masina, no filme Noites de Cabíria de Fellini (1957). Somos essa mulher que acreditou num amante, que acreditou no paraíso, que descobre com horror que foi enganada, que quer morrer, ser lançada no precipício. E que depois, por um instinto vital que não se sabe de onde vem, talvez por milagre, regressa à estrada, ouve risos de jovens e uma música que convida. Regressa à estrada, esboça um sorriso tíbio. Pronta para acreditar e talvez ser enganada, de novo.

Assim estamos nós: pessimistas, pesadamente pessimistas, e prontos para apurar os ouvidos e ouvir uma música que nos permita calcorrear a estrada, alimentar o sonho de estar vivos e de querer o dia que vem.

2 pensamentos sobre “O mundo das pessoas de pernas para o ar

  1. Apesar de Antígona, o lamento da repetição do «desejo-de-mudança-não-verificado» sai reforçado pela beleza, extensão e ilustração do texto. O problema parece residir na racionalidade ou melhor, na irracionalidade de recusar a vida simples da Mater. Tudo o mais são desabafos expressivos de uma maior ou menor frustração perante a insistente, irritante e nunca respondida questão «o que é?». Atente-se que a questão não é «para que serve» a Mater. A questão é sobre as queixas que o sistema «inventado» pelo ser humano suscita, é sobre esse sistema que podemos com propriedade perguntar «para que serve?» As torturantes alterações – disfrutadas pelos tais 80 do autocarro – impostas ao mundo segundo uma dada «racionalidade», tudo o indica, foram e são infrutíferas. Porquê infrutíferas? Porque deles nada restará dentro de poucos séculos. À irredutível determinação da Mater se referem os muitos escritos pré-socráticos de Sófocles, Heráclito e outros. Na Mater tudo é necessário e suficiente. Contudo, dois milénios passados, o ser humano segue recusando alegremente essas necessárias e suficientes determinações. É a Mater que o faz, é ela que o sustenta e, finalmente, é ela que o dissolve. Não há sobras! Somos ingratos e a ingratidão paga-se…

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