Mário Soares 1924-2017. Já pode ser estátua

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 08/01/2017)

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O maior elogio que posso fazer a Mário Soares é aquele que poucos farão por estes dias, em que a canonização simula consensos que nunca existiram: ele está entre as figuras mais odiadas e mais amadas deste País. Como apenas acontece aos políticos que fazem escolhas difíceis. E as escolhas que Soares fez, que lhe garantiram sempre novos inimigos, marcam a história de Portugal nos últimos 50 anos.

Soares escolheu o combate ao fascismo e os saudosistas não o suportam. Escolheu a descolonização e os retornados odeiam-no. Escolheu a democracia liberal e a CEE e os comunistas não lhe perdoam. E cada escolha sua deixou tanto ressentimento por ser quase sempre decisiva para o que somos hoje. Tem a sua cota-parte de culpa em tudo o que de bom e de mau nos aconteceu desde o 25 de Abril. Essa é a qualidade que ninguém lhe pode tirar: não é inocente de nada. Felizmente, porque não há maiores inúteis do que os políticos que se banham nas águas puras das ideias e morrem sem culpa nem obra.

Com o papel que teve na nossa história, Mário Soares nunca se pôde dar ao luxo da coerência absoluta e da mera declaração de princípios. Isso é para os homens de religião. O seu percurso, as suas lealdades, até as suas convicções foram muitas vezes sinuosas, tendo apenas a democracia como único valor constante, o que não é pouco. Houve o Soares da austeridade de 1983 e o que combateu a austeridade de 2011. O que meteu o socialismo na gaveta e o que tirou, já na velhice, o radicalismo do armário. O que escolheu o lado dos EUA na Guerra Fria e se manifestou contra os EUA na guerra do Iraque. O que se abraçou a Cunhal no Aeroporto da Portela e combateu Cunhal na Fonte Luminosa. O que fez dupla com Zenha e enfrentou Zenha, foi amigo de Alegre e conspirou contra Alegre. O que foi desleal com os amigos de sempre e o que levou a lealdade para lá do limite da sanidade na prisão de Sócrates. Não foi apenas porque a realidade mudou e só os burros não mudam. Foi porque Soares sempre foi mais pragmático do que ideológico.

Enquanto o corpo deixou, Soares manteve-se em cena, sem nunca deixar que o transformassem numa figura de museu. Acreditou que todo o tempo de vida era o seu tempo. Na sua reeleição para Belém, em 1991, tinha conseguido 70% dos votos. Era o pai querido da Nação, principal referência política e moral da democracia portuguesa. Mas, com 80 anos, não teve medo de descer de um pedestal com que poucos poderiam sonhar para se candidatar de novo à Presidência. A política que reencontrou era muito diferente, com uma comunicação social muito mais agressiva do que no passado e um escrutínio muito mais apertado. Este já não era, afinal, o seu tempo.

Não vou fingir que venho do lado de onde vem Soares. Não me revia no que na sua vida foi excesso de tática e intuição e pouco de estratégia e convicção. No vício da política que valeu sempre mais do que a própria política. Mas tenho por Soares a admiração que se tem por quem foi intransigente na defesa da democracia e nunca quis ser uma estátua de si mesmo. Mesmo quando a estátua que estava encomendada, e que lhe era totalmente devida, era de pai fundador da nossa democracia. Como todas as contradições e erros que se exigem a quem faz questão de deixar uma marca da sua passagem pela vida, Soares mudou Portugal. E mudou-o para melhor. Agora sim, podemos erguer a estátua.

9 pensamentos sobre “Mário Soares 1924-2017. Já pode ser estátua

  1. Só concordo que se erga uma estátua se for para nos recordar que Mário Soares foi dos primeiros, se não o primeiro, a servir-se da política em proveito próprio. Só para citar um exemplo recordo as inúmeras viagens que ele fez, muitas delas inúteis outras só para fazer férias, como foi o caso da sua ida as Ilhas Seychelles. A outra, que muitos portugueses não se lembrarão foi a visita que ele fez a Mobuto e apareceu, nas reportagens da RTP, a atirar galinhas vivas aos crocodilos que Mobuto tinha no jardim, as “escolhas difíceis” que Daniel Oliveira fala, talvez seja a entrega das colónias portuguesas aos guerrilheiros sem que se fizesse uma consulta popular, como prometeu Spínola. Aliás Spínola foi afastado porque não embarcava nos arranjinhos que Mário Soares e quejandos queriam fazer. Também quero recordar uma das grandes escolhas difíceis de Mário Soares foi dizer a Samora Machel que atirasse os portugueses aos tubarões.

    • Só queria recomendar aos portugueses que lessem o livro Contos Proibidos de Rui Mateus para conhecerem um pouco de quem foi Mário Soares e como se servia da política em proveito próprio.

  2. Nestas situações sempre surgem criticas mais ou menos certeiras, porém, o homem é a sua circunstância com bem disse o filosofo José Ortega Y Gasset. Não importa só a circunstância, bem mais importante é o saldo final. Apesar de tacticista e algo improvisador irrefletido, reconhece-se o papel definitivo que desempenhou na consolidação da democracia. Só por isso merece as honras em curso.

  3. nao sei muito sobre esse senhor ou sei…sou um dos que viveu para levar com os contratos a prazo que hoje ainda vigoram porque serve bem aqueles que abraçam esse bem estar de pagarem baixos salarios…sua autoria esse senhor dr Mario Sores

  4. Totalmente tacticista é esta opinião de do, aliás como é costume e até já é vício e modo de vida dos opinadores semanais, especialmente, do eixo-do mal e governo sombra.
    A táctica é sempre fazer o elogio em estilo de contra-ponto:
    “O que escolheu o lado dos EUA na Guerra Fria e se manifestou contra os EUA na guerra do Iraque. O que se abraçou a Cunhal no Aeroporto da Portela e combateu Cunhal na Fonte Luminosa. O que fez dupla com Zenha e enfrentou Zenha, foi amigo de Alegre e conspirou contra Alegre. O que foi desleal com os amigos de sempre e o que levou a lealdade para lá do limite da sanidade na prisão de Sócrates.”
    Claro, sem nenhuma explicação e um tal simplismo ultra-redutor para tomadas de actitudes tão díspares e opostas, a táctica é contrapô-las sem mais para depois tirar efeitos literários com insinuações políticas; afinal “ultrapassou o limite da sanidade” e “sempre foi mais pragmático do que ideológico.”
    Para do Soares bateu-se sempre, sempre pela liberdade e democracia, que do até agradece, depois conclui que não tinha ideologia mas quase tão só pragmatismo. do devia era explicar-nos como é que um chefe político pode conduzir um povo, para mais um povo atordoado face à repentina libertação da submissão física e sobretudo mental a que foi sujeito durante 50 anos, sem usar de pragmatismo e tacticismo para levar esse povo a gostar e saber usar a liberdade e a democracia; a meta idealizada que nunca perdeu de vista até lá chegar contra ventos e marés mas que, para do, foi “com pouco de estratégia e convicção”.
    E é este mesmo do que, exibindo-se palavrosamente um ideólogo da estratégia e convicção em absoluto, já trocou de partido, logo de ideologias e convicções, 3 vezes 3 e vamos ver onde vai parar.

  5. Caro estatuadesal, não está em causa o facto de “mudam-se os tempos mudam-se as vontades”. E isso também é realismo e pragmatismo.
    O que sobreleva deste tipo de escrevinhador é que, eles sim, querem vender a ideia que são mais capazes, inteligentes, estrategas e convictos que a pessoa que pretendem elogiar. Fazem lembrar aquele treinador ex-grande jogador que se queixava pelo facto da selecção ganhar muitas vezes os jogos mas sem brilhantismo.
    Repare que do depois dos insinuosos “contrapontos” acaba sempre por fazer o elogio dos conseguimentos e resultados históricos de Soares . A história de Sócrates ainda não terminou e do não sabe ainda nada de concreto acerca da futura razão ou não de Soares acerca da sua lealdade para com o camarada de partido. Então que raio de convicção tem do para predizer que Soares, neste caso, “ultrapassou o limite da sanidade”?
    E se a História vier dar, como tantas vezes o próprio do lhe reconhece ter acontecido, mais uma vez razão a Soares afinal quem é que sofre, sofria de insanidade?

  6. Caro “estatuadesal”, acho me lembrar que tinha escrito um comentário a este texto do Daniel Oliveira. Não o encontrando mais em parte nenhuma, fiquei admirada e desagradada. Será que não concordou com o teor da mensagem ? ou achou que não merecia permanecer na lista dos comentários por algum motivo ?
    De futuro, deixarei de comentar e de ler a abundância dos textos que me manda, se realmente não posso argumentar.

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