O ADMIRÁVEL MUNDO SEM EMPREGO

(Por Daniel Oliveira, in Expresso,  ilustração Gonçalo Viana)

O medo de um mundo sem trabalho é tão antigo como a tecnologia. Só que estamos perante uma alteração sem paralelo na História. Pela rapidez e pela capacidade de as máquinas garantirem o seu próprio desenvolvimento, dispensando-nos de quase tudo.

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O entusiasmo correu as plateias das sessões do Web Summit de cada vez que alguém, no palco, prometeu que determinada função, criativa ou não, dispensaria a intervenção humana. A excitação dos humanos presentes faria qualquer pessoa lúcida perguntar: “Então e nós, o que vamos fazer?” Não consta que alguém se tivesse lembrado de fazer tal pergunta. E, no entanto, as funções de que se estava a falar não eram, como no passado, repetitivas e monótonas, das quais queiramos realmente ser libertos. São as coisas que gostamos de fazer, pelas quais nos podem pagar e das quais nos querem dispensar.

A convicção geral é que, tal como aconteceu no passado, depois de algumas atividades humanas passarem a ser cumpridas por máquinas encontraremos outros trabalhos. Como já não estamos a ser dispensados de funções básicas, mas de tarefas elaboradas e até criativas, isto implica que não sobrará nada para quem não saiba fazer coisas extraordinárias. E mesmo esses acabarão por ser substituídos. É por isso que a acusação de ludismo para calar quem olhe com desconfiança para este movimento civilizacional é inadequada. A dúvida sistemática perante os avanços tecnológicos é um dever de todos os seres inteligentes. Porque a História não é, ao contrário do que pensam os incautos, uma caminhada triunfante para a felicidade.

Apesar de já ser possível ter conversas inesperadas com computadores, ouvir música e ler textos totalmente criados por inteligência artificial, ainda estamos noutra fase: a generalização de robotização de funções humanas que, não sendo repetitivas, ainda não são as mais criativas. Em Pittsburgh, uma cidade simpática, cheia de colinas e serpenteada por um rio, a Uber já tem carros autónomos em funcionamento, em fase de teste. A Google estava a testar os seus em Mountain View (Califórnia), Austin (Texas), Kirkland (Washington) e Phoenix (Arizona), mas recentemente parece ter desistido de desenvolver um carro próprio e deverá dar prioridade a parcerias com empresas como a Fiat Chrysler. Ainda assim, tem planos ambiciosos para entrar no mercado dos táxis autoguiados, competindo com a Uber e a nuTonomy. Os primeiros táxis autónomos da nuTonomy já começaram a ser usados em Singapura, em agosto. Empresas como a General Motors e todos os gigantes da indústria automóvel apostam no crescimento de dois novos segmentos de mercado: os carros elétricos e os carros autónomos.

A tecnologia não é boa nem má. É uma forma de poder e depende sempre de quem o tem

Ainda não chegámos à fase tão desejada: continua a haver uma pessoa atrás do volante, para qualquer eventualidade. Mas na maior parte do tempo o carro funciona sozinho e o condutor é redundante. Diz-se que entre 2018 e 2022 estes carros terão total autonomia e que em 2026 estarão capazes de entrar no mercado sem restrições. Um estudo da empresa IHS Automotive, citado num artigo recente da “New York Review of Books” (“Our Driverless Future”), previa que em 2050 quase todos os veículos fossem autoguiados (a Universidade de Michigan fala de 2030). Na China, a Baidu diz que terá os seus primeiros carros autónomos prontos para venda daqui a dois anos. Um anúncio considerado arrojado. No artigo recorda-se que para um sistema deste género poder ser realmente usado precisa de três garantias: rapidez de reação em tempo real, 99,999% de fiabilidade e um nível de perceção melhor do que o dos humanos. Nenhuma delas está assegurada e muitos acham que a fase final do desenvolvimento tecnológico será a mais difícil. E há o que está para lá da tecnologia. Mesmo sem total autonomia, o condutor eventual perde a concentração e dificilmente consegue reagir com a atenção e perícia normal quando a máquina falha. Uma insegurança que criará muitas resistências à utilização destes veículos. E há questões jurídicas — o sistema de seguros, por exemplo — e até éticas — as escolhas humanas, até na condução, carregam dilemas morais. Mas a verdade é que através do GPS, radar, LIDAR, sonar, IMU, mapas e comunicação entre carros autónomos, a inteligência artificial destes veículos vai permitindo, à medida que vão sendo testados, cada vez mais capacidades.

O caminho parecer ser inexorável: nos próximos 30 anos a mobilidade sofrerá uma revolução comparável às que fizeram nascer os caminhos de ferro, popularizaram o automóvel ou criaram as companhias aéreas comerciais. O carro autoguiado pode levar a uma revolução no transporte urbano. É provável que cada vez mais pessoas comecem a dispensar o carro próprio e o sistema de carsharing, que continua a ter um peso marginal (prevê-se que em 2020 seja usado por 1% dos norte-americanos), vá ganhando terreno. Mas deixará o carro de ser um elemento de distinção social? Não é absurdo que, na geração do Uber, isto possa acontecer. Sobretudo se políticas fiscais e de planeamento urbano tornarem cada vez mais cara a propriedade e a utilização de carro próprio. Mas, para refrear otimismos excessivos, a cidade de Singapura fez tudo isto e o resultado foi praticamente nulo.

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Os efeitos da introdução maciça de carros elétricos autoguiados e partilhados seriam extraordinários para o ambiente e para a qualidade de vida urbana. Mas neste tipo de assuntos o pessimismo é sempre um bom conselheiro. Nunca devemos esquecer o que os interesses económicos relacionados com um determinado desenvolvimento tecnológico farão para transformar o que parece garantir a nossa liberdade em novas formas de dependência. Não era a internet um espaço de liberdade individual, onde finalmente nenhum Estado nos calaria? E não andamos nós a debater o poder censor do algoritmo? Não era a internet um novo e inviolável espaço de privacidade? E não passou a ser uma forma de entrar em todos os recantos da nossa vida e controlar cada um dos nossos movimentos, como nunca o mais totalitário dos Estados alguma vez conseguiu? Não eram as redes sociais um novo e imparável instrumento de participação cívica? E não se transformou num dos mais eficazes instrumentos contra a democracia? A tecnologia não é boa nem má. É uma forma de poder e depende sempre de quem o tem.

No caso dos carros autoguiados e partilhados, se estes conseguirem entrar no mercado em força, é provável que os monstros económicos em que se transformarão as empresas que dominarem este mercado (sejam os atuais gigantes da indústria automóvel, seja a Google, a Uber e as suas concorrentes) comecem a pressionar para reduzir o investimento em transportes públicos. Não seria de espantar que oferecessem viagens muito baratas ou gratuitas em troca de informação sobre nós, sobre os nossos movimentos e sobre os nossos consumos. Começarem a fazer na rua o que já fazem no mundo digital. Mas a revolução na mobilidade é apenas o sinal mais evidente, mesmo a despontar, da mudança radical que a robotização provocará nos nossos modos de vida e as possibilidades abertas pelo extraordinário desenvolvimento da inteligência artificial. E é no mundo do trabalho que tudo mudará de forma mais radical.

Menos cinco milhões de empregos

Por enquanto, as perdas de emprego acontecem nas atividades mais óbvias. Em maio, a multinacional de Taiwan, Foxconn, conhecida por fornecer a Apple ou a Samsung, substituiu 60 mil dos seus 110 mil trabalhadores por robôs. Nos Estados Unidos abriu a primeira cadeia de fast food quase totalmente automatizada. Na Eatsa, que tem quatro lojas na Califórnia e uma em Washington DC, os pedidos são feitos num iPad da loja, recebidos nuns cubículos de vidro, sem nunca se ver um ser humano. Até ver, só há cozinheiros. Mas nada disto é uma revolução. Essa virá depois.

O maior estudo sobre as mudanças no emprego foi feito pelo Fórum Económico Mundial (FEM) e divulgado já em 2016. “The Future of Jobs” concentrou-se em 15 economias desenvolvidas ou emergentes que correspondem a 65% da força de trabalho global. A conclusão do que se espera entre 2015 e 2020 dá-nos razão para todos os temores. Só nestas economias serão perdidos 7,1 milhões de empregos, compensados pela criação de apenas 2,1 milhões. E as previsões são, avisa o FEM, conservadoras. Grande parte das tecnologias de que ouvimos hoje falar chegará ao ponto extremo de mudança em 2025 (apenas daqui a oito anos) e em 2030 as atividades económicas estarão irreconhecíveis por via da automação. Em resumo, nos próximos anos assistiremos a uma mudança ainda mais radical do que aquela que sentimos desde que surgiu a internet. Nas últimas décadas a rede contribuiu para efeitos em cadeia: globalização de mercados, financeirização da economia, ciclos de crises cada vez mais curtos, crise dos media tradicionais, atomização da sociedade, redução do poder dos Estados, crescimento de movimentos políticos xenófobos. Imaginem o que nos espera nas próximas décadas.

À quarta revolução industrial — inteligência artificial e machine-learning, robótica, impressão 3D, nanotecnologia, genética e biotecnologia — juntam-se novos fatores económico-sociais, como a crescente volatilidade geopolítica, os jovens e a classe média nos mercados emergentes e as alterações climáticas. Apesar de rápida, não é uma evolução nem linear nem simultânea. A internet móvel e a tecnologia de cloud já tiveram o seu maior salto; a economia de partilha e o crowdsourcing tenderão a estabilizar nos próximos três anos; as novas energias ainda terão uma evolução significativa; e o desenvolvimento da robótica, dos transportes autónomos e da inteligência artificial só se sentirá a sério no final desta década, lançando, até 2025, o mundo para um novo e arriscado patamar civilizacional. E mudando radicalmente o mercado de trabalho.

A mudança será sentida com especial violência entre os trabalhadores administrativos, com perdas colossais de emprego. E entre os operários, mas isso não é novo. Em algumas profissões mais especializadas, nas áreas informáticas, da matemática e da engenharia, surgirão os novos empregos, mas em muito menor número. Analistas de dados e representantes de vendas especializados são áreas prometedoras. Outras, como a finança, as infraestruturas e os transportes sentirão fortíssimas alterações. Das 15 economias estudadas prevê-se um cenário de emprego positivo para o Sudeste asiático, com a criação de 3,72 empregos por cada um perdido, México (3,06), Reino Unido antes do ‘Brexit’ (2,91), EUA (1,37) e Turquia (1,14). Todas as restantes dez economias perdem emprego, algumas delas em larga escala, com destaque para França e Brasil. Como a participação das mulheres em várias áreas em crescimento é menor, estima-se que por cada emprego feminino criado se perderão cinco enquanto nos homens a relação será de um para três.

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Mudança: A Google estava a testar o seu carro autónomo, mas recentemente parece ter desistido. Agora deverá dar prioridade a parcerias com empresas

Os gestores e empresários parecem estar mais interessados em investir nas capacidades dos seus trabalhadores do que em contratar mais precários ou colaboradores virtuais. Uma boa notícia que no entanto reforça a ideia de que o trabalho se concentrará nas mãos de alguns, a quem será exigido cada vez mais, enquanto ao lado engrossa o exército de desocupados. Ao contrário das revoluções tecnológicas anteriores, esta não demorará uma geração. Mesmo que a educação chegasse, teria de ser para quem já está na vida profissional ativa. Mas a educação não chega, porque os empregos criados serão, depois desta primeira fase, cada vez menos. Incluindo nas áreas especializadas.

Um estudo de 2013, de Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne, da Universidade de Oxford (“The Future of Employment: How Susceptible are Jobs to Computerisation”), previa que cerca de 47% dos empregos dos Estados Unidos estariam em risco de automação numa ou em duas décadas. Para demasiada gente a questão já não é saber se vai perder o emprego para um computador, é saber quanto tempo levará até que isso aconteça. É verdade que o medo de um mundo sem trabalho é tão antigo como a tecnologia. E, no entanto, a economia cresceu e houve mais emprego depois de cada uma das revoluções industriais. Só que se este estudo está certo, não vale a pena procurar um padrão no passado. Estamos perante uma alteração sem paralelo na história. É uma revolução industrial toda concentrada apenas numa parte da vida de uma só geração, sem as possibilidades de adaptação do passado.

Este estudo é citado no livro de referência sobre o tema, que já está traduzido para português: “Robôs – A ameaça de um futuro sem emprego”. O autor, Martin Ford, empresário de Silicon Valley, garante que “mesmo o trabalho dos engenheiros de software poderá brevemente ser largamente computorizado”. Numa entrevista ao “Dinheiro Vivo”, em julho deste ano, Ford explicava que se numa primeira fase a tecnologia criará novo emprego, a tendência será para que as máquinas venham a substituir os empregos altamente qualificados. O que quer dizer que, a prazo, nem os países que invistam muito em educação se salvarão da perda de emprego. O avanço na inteligência artificial cria um novo mundo, em que as máquinas aceleram o seu próprio desenvolvimento. Ao contrário do que aconteceu com o anterior processo de industrialização, não ficaremos apenas livres do trabalho físico. O trabalho intelectual, de que o desenvolvimento tecnológico costuma precisar, também empregará, a médio e longo prazo, cada vez menos pessoas.

Jerry Kaplan, um cientista e empreendedor que dá aulas em Stanford, diz, em “Humans Need Not Apply: A Guide to Wealth and Work in the Age of Artificial Intelligence”, citado num número recente da “The New Yorker”, que “quando a maioria das pessoas pensa em automação tem em mente a simples substituição de trabalho ou a melhoria da velocidade de produção, não a mais extensiva disrupção causada pela reengenharia”. Dessa reengenharia, que permite às máquinas garantirem a sua própria evolução e reinvenção, resulta a certeza de que por mais que um negócio se expanda não vai contratar mais humanos.

No mesmo artigo propõe-se uma análise há muito imaginada por académicos. Pensando em dois eixos — trabalho manual ou intelectual, trabalho rotineiro ou não rotineiro —, temos quatro tipos de funções. Nos extremos, o trabalho manual não rotineiro — servir às mesas, limpar quartos de hotel —, que é geralmente o mais mal pago; e o trabalho intelectual não rotineiro — gestão de fundos de risco, advocacia, produzir um programa de televisão, trabalho criativo —, que é regra geral o mais bem pago. No meio, está o trabalho manual rotineiro, que a comutação tornará redundante (a robotização das linhas de montagem já nem sequer é uma novidade); e o trabalho intelectual repetitivo — administrativo, por exemplo —, que será, nos próximos anos e em larga escala, substituído por computadores. Ou seja, antes de atingir os assalariados mais pobres e desqualificados e os mais abonados e qualificados, atingirá em cheio o grosso da classe média. Depois, serão os restantes. E isto bate certo com as previsões do FME. O que quer dizer que impedir a partida de fábricas para a China não resolve grandemente o problema: a própria China está a tratar da automação das suas fábricas e são outros os empregos que se começarão agora a perder no Ocidente. E muitos deles não vão para lado algum.

Receber para não trabalhar

Martin Ford prevê, com alguma satisfação, um futuro sem postos de trabalho: “Se um dia a maioria de nós não precisar de trabalhar, isso poderá ser uma coisa boa. Nós conseguimos adaptar-nos.” E com essa alegria jovial que domina quase todos os deslumbrados pela tecnologia, porque ela “sempre nos deixou melhor”, vê um mundo perfeito onde as pessoas passam mais tempo com a família e a trabalhar: “Não temos de encontrar sentido na vida na mesma fonte de onde vem o nosso rendimento.” Reconhecendo que é difícil viver numa sociedade onde não há emprego, Ford afirma: “Se quisermos que o capitalismo continue, vamos ter de encontrar uma forma de pôr dinheiro nas mãos das pessoas. Se não houver empregos, precisaremos de outro mecanismo como o rendimento básico.”

Perante o provável crescimento do desemprego e do subemprego, o Rendimento Básico Incondicional (RBI) tem ganho cada vez mais adeptos. Trata-se de uma prestação do Estado que seria dada a todos os adultos, empregados ou desempregados, no mesmo valor. Na União Europeia milhares de cidadãos têm pressionado as autoridades para que a adoção deste instrumento comece a ser debatido e na Suíça a proposta foi a referendo em junho, tendo sido recusada por 77% dos eleitores. Daniel Häni, um dos principais impulsionadores da consulta popular, explicou ao “Financial Times” o desencontro em que vivemos: “O nosso sistema social tem 150 anos e é baseado na resposta de Bismarck à Industrialização 1.0.” E defendeu que é necessário um sistema adaptado a esta nova industrialização. Mas vale a pena recordar como o Estado social, que respondeu tardiamente à industrialização do século XIX, se deparou com o mesmo problema e nem por isso pretendeu substituir o emprego por apoios sociais. Pelo contrário, promoveu como objetivo central o pleno emprego.

Para demasiada gente a questão já não é saber se vai perder o emprego para um computador, é saber quanto tempo levará até que isso aconteça

Há bons argumentos a favor do RBI: o facto de as pessoas terem um rendimento garantido permite que recusem condições inumanas de trabalho e é um bom instrumento de combate à pobreza que evita critérios discricionários do Estado, tão visíveis no cada vez mais difícil acesso a apoios que resultam de descontos feitos pelos trabalhadores. Tem, sobre o RSI, a vantagem de dar a todos por igual, não permitindo que desenvolvam discursos populistas. Mas não é por acaso que cada vez mais liberais aderem à ideia, apesar de, à partida, um subsídio do Estado para todos ser um pouco estranho às suas convicções. O inevitável aumento do desemprego e do subemprego para níveis impensáveis até hoje levanta um problema ao capitalismo: falta de consumidores. Alguém tem de consumir as coisas extraordinárias que as máquinas que nos vão tirar o emprego irão produzir. E como o processo que aqui vivemos acabará por chegar às economias emergentes, o problema também será vivido nesses mercados. O RBI poderia transformar-se numa espécie de subsídio ao consumo para quem foi excluído do papel de produtor.

O problema não é o RBI desincentivar a procura de trabalho. Nisto, Roberto Merrill, um dos principais defensores da ideia em Portugal, investigador e autor do livro “Rendimento básico incondicional: uma utopia realista para o século XXI”, tem razão no que escreveu em 2014: “A ideia de que o RBI é um incentivo à preguiça corresponde sobretudo a um preconceito cultural e social, e não a uma verdade empiricamente comprovada. Os estudos empíricos realizados com o objetivo de averiguar a objetividade desta conceção, no Brasil, na Namíbia e em vários países da União Europeia, demonstraram que entre as pessoas que recebem uma renda incondicional apenas um número reduzido opta por mudar de trabalho e as que o fazem é com o objetivo de encontrar um trabalho que corresponda mais às suas capacidades e gostos.” A questão é se este rendimento desincentiva a sociedade a ter como meta o pleno emprego e se transfere da economia para o Estado o provir de uma parte muito significativa da população. De uma sociedade de trabalhadores passaríamos a uma sociedade de subsidiados. E isso terá um preço.

O trabalho continua a ser a forma mais eficaz de inserção social. Viver numa sociedade onde a maioria das pessoas não tem emprego minimamente estável é viver numa sociedade deslaçada, mesmo que essas pessoas tenham rendimento. A democracia precisa de comunidade e não há sentimento de comunidade se não houver a convicção geral de que todos contribuímos e recebemos de acordo com as nossas possibilidades e necessidades. Uma sociedade onde uma minoria contribui com o seu trabalho e uma maioria está condenada a não trabalhar e só receber será, mesmo sem pobreza, uma sociedade disfuncional. Mesmo que pagássemos muito (coisa impossível) a quem não trabalhasse. Não é difícil perceber que uma sociedade assim teria de viver com a insatisfação da minoria que trabalha e sente sustentar o resto dos cidadãos e com a frustração de quem não trabalha e não tem, além do rendimento que o Estado lhe dá, qualquer perspetiva de progressão. Alguém sinceramente acredita que a democracia resistiria a este sentimento de injustiça, de um lado, e de menoridade, de outro? Alguém acredita que uma sociedade onde metade das pessoas não seja remunerada pelo seu trabalho pode funcionar? Se fosse para garantir rendimento por via de dinheiro do Estado, seria bem mais eficaz e interessante a criação de emprego público útil para novas funções sociais.

Recusando o ludismo, qualquer alternativa tem de passar por novas partilhas de trabalho num mundo que será, inevitavelmente, robotizado. Se aceitarmos, por exemplo, que em vez de sermos menos a trabalhar temos todos de trabalhar menos, talvez trilhemos o caminho certo. Até porque a concentração do trabalho em poucos tenderá a sobrecarregar esses poucos, que tudo aceitarão perante o gigantesco exército de reserva de desempregados, pronto para lhes tirar o lugar. Claro que para reduzir horários de trabalho sem perda salarial é preciso voltar a equilibrar a distribuição do rendimento entre trabalho e capital (que regressou aos desequilíbrios do início do século XX) e impedir que a competitividade se faça através da desregulação laboral. Num mercado de trabalho totalmente liberalizado não se reduzem horários porque nada realmente se negoceia.

Rohan Silva, o ex-conselheiro de David Cameron para o empreendedorismo e cofundador da Second Home, fez elogios rasgados a Lisboa. Mas, numa entrevista ao “Público”, identificou um problema: as nossas leis laborais. É um clássico e poucas são as economias que não são vítimas desta critica. Só que leis mais flexíveis, desequilibrando ainda mais a balança do poder negocial, acabarão por aprofundar o que já existe: alguns trabalham imenso, muitos trabalham quando é preciso, imensos não têm trabalho. Infelizmente, seria para financiar esta tendência, e não para permitir um tempo de conforto onde todos têm o mínimo e trabalham o que querem, que o RBI seria aproveitado. Parafraseando a banda Timbuks 3, o futuro é tão brilhante que temos de usar óculos escuros.

4 pensamentos sobre “O ADMIRÁVEL MUNDO SEM EMPREGO

  1. Uma questão que surge naturalmente daqui é, será que o capitalismo, esse modelo económico que usamos desde a última revolução industrial, capaz de se adaptar a esta nova?
    Há que pensar na coisa de forma simples: no fim do dia trata-se de como os recursos do planeta, que não são mais que os produtos para consumo aqui mencionados, serão distribuídos.
    O conceito de que a riqueza individual é proporcional ao esforço e tempo investidos numa tarefa está desactualizado face à realidade em que vivemos e, perante as mudanças eminentes, torna-se até perigoso.
    A tecnologia é uma forma de poder e depende de quem o possui. Não podia concordar mais com esta afirmação. Apesar dos conflitos ideológicos que mantenho com o Daniel Oliveira, ele está na mouche aqui. Note-se que, ao contrário que acontecia no pós primeira revolução industrial, o nível de tecnologia que estamos a falar não está acessível a qualquer um. Ao nível do investimento corporativo lá está. Se a progressão se mantiver, os gigantes tecnológicos serão cada vez maiores e, como acontece com tantas indústrias que seguem a fé capitalista, simplesmente não há espaço ou vontade de criar concorrência.
    O potencial para desigualdades crescerá exponencialmente enquanto continuar-mos abraçados ao sistema capitalista. Será o RBI a solução para tal? O conceito é radical. Mas nesta altura de mudanças radicais, suponho que a solução também o seja.
    Pegando no exemplo da Foxconn. Ao automatizar a fábrica, suprimiu 60 mil postos de trabalho. Num mundo ideal, as máquinas seriam usadas para aliviar a carga humana. Num mundo onde o bem estar dos cidadãos fosse prioridade, a Foxconn manteria os 110 mil trabalhadores reduzindo antes a sua carga laboral, de acordo com ideal Keynesiano. Mas a mera sugestão de tal situação em pleno regime capitalista coloca os dentes de muita gente perto da ruptura. Entretanto o capital continua a acumular-se nas mãos de cada vez menos. Será que os 60 mil trabalhadores despedidos irão continuar a consumir produtos da Foxconn (se é que alguma vez o fizeram)? É curioso que o capitalismo defenda com unhas e dentes estas medidas mas depois baseie todo o seu sucesso no constante crescimento da economia que insiste em destruir… como uma serpente a comer o próprio rabo.
    O paradigma económico tem de mudar. Não é uma sugestão ou uma birra de estimação contra o sistema. É uma necessidade.

  2. A Web Summit prevê a dispensa da intervenção humana …
    A empresa IHS e a Baidu prevê carros sem condutor e consequente dispensa de intervenção humana …
    Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne prvê que 47% dos empregos nos USA desapareçam em benefício da automação …
    Jerry Kaplan prevê máquinas inteligentes que se reinventam e reproduzem dispensando qualquer emprego aos humanos …
    Martin Ford prevê um futuro sem postos de trabalho para humanos …

    Certamente do não inventariou todos os que prevêem num futuro próximo a máquina inteligente a fazer todos os trabalhos e deitar os humanos no caixote do lixo.
    E o problema está precisamente em como atirar os humanos para o caixote do lixo.
    Todos conhecemos a história simples do caçador que apontou ao coelho e começou a pensar que matava o coelho, vendia-o e comprava uma cabra, depois vendia a cabra e comprava uma vaca, vendia vaca e comprava um rebanho e assim sucessivamente até que… quando ia disparar o coelho fugira e, nada.
    Também todos já vimos e conhecemos o que acontece quando as populações famintas, desesperadas, se lançam sobre lojas e supermercados recheados.
    Então pensem no que pode acontecer perante uma ínfima parte da humanidade senhora dos destinos da quase totalidade dos humanos e trazendo-os vivos como ineprestáveis máquinas obsoletas desprezíveis.
    Talvez essas máquinas humanas obsoletas desprezíveis, cheias de fome, engulam os seus donos e lá se vão as sábias previsões dos modernos profetas pró maneta.

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