Conversa sobre a ecologia da corrupção

(José Pacheco Pereira, in Público, 17/12/2016)

Autor

              Pacheco Pereira

De facto, nem é preciso ter grande sofisticação, basta estar lá. No sítio certo.


Salviati, Sagredo, e Simplício encontram-se de novo.

Simplício veio de táxi.

Simplício – Amigos, a rua ferve.

Sagredo – A rua nunca ferve.

Salviati – A rua em Portugal nunca ferve.

Simplício – Ferve, ferve. Deviam ouvir o que ouvi no táxi.

Sagredo – Nunca se deve ouvir os taxistas. Ele não tinha saudades do Salazar? Os taxistas não são a vox  populi.

Simplício – Nem vocês. Continuem a não ouvir nada e depois aparece o Trump.

Salviati – O que é que ouviste?

Simplício – Está tudo corrupto. É só escândalos. Foi o BPN, foi o Sócrates, foi o BES, foi o SEF, foi a Misericórdia, foi o INEM…

Salviati – E depois?

Simplício – A culpa é dos políticos.

Sagredo – Até que ponto a corrupção tem que ver com a política? São os políticos que são corruptos? É o sistema, seja lá que isso for? Vem de fora, vem de dentro? Vem de cima, vem de baixo?

Salviati – Vem de todo o lado, é ecológica. É um ambiente.

Simplício – Explica-te.

Salviati – Uma coisa são os actos concretos de corrupção, que são sempre uma minoria…

Simplício – … porque muitos não são descobertos…

Sagredo – … não sei. São certamente muito menos do que a percepção pública que existe desses actos, embora haver esta discrepância aponte para um problema. Por que razão é muito fácil a muita gente acusar tudo e todos de serem corruptos?

Simplício – Por que há muitos corruptos…

Sagredo – Talvez não haja assim tantos, mas os que são movem-se bem e medram…

Simplício – Medram?

Sagredo – Sim, têm carreiras. Enriquecem à nossa vista e nós sabemos que não pode ser assim muito direito. Mas medram: vão de um lugar para outro, sempre fazendo o mesmo e todos sabem.

Simplício – Sabem?

Sagredo – Sabem, sabem. Têm de saber. As secretárias, os colegas, os próximos, os familiares, os inimigos, os empregados, os companheiros de partido. Há sempre muita gente que sabe, mas depois há medo, indiferença, ou vantagem. Mas sabem, não podem deixar de saber, podem não saber os pormenores, mas sabem, ou suspeitam. Daí a dimensão.

Salviati – Reconheço que é um problema, mas podemos avançar sem nos fixarmos aqui. Na verdade, seja qual for a dimensão do fenómeno da corrupção, ele é preocupante. É estrutural ou não?

Sagredo – É sem dúvida estrutural. Basta ver a lista que o Simplício fez. Inclui um primeiro-ministro, uma parte da elite financeira e económica, sectores essenciais da administração pública, instituições de solidariedade social, empresas, bancos, gente com carreira política e profissional, ministros, governantes, autarcas.

Simplício – Mas como nunca mais há julgamentos, tem de se presumir a inocência.

Salviati – Sim, é verdade. Mas vamos fazer como na física, uma experiência mental, como o gato de Schrödinger. Seja qual for a hipótese, isto está muito mal. Se tudo for falso, temos um grave problema com a Justiça; se tudo ou quase tudo for verdadeiro, então a corrupção campeia. Podemos ficar pelo meio termo, ou melhor, deixar de centrar a questão na culpa e na inocência e colocá-la no que se sabe, métodos, práticas, módus operandi, cumplicidades…

Sagredo – Mas muitas dessas coisas não são corrupção.

Salviati – É verdade, mas são o terreno da corrupção. É por isso que eu falo de ecologia. Está nas más práticas da administração, numa cultura de favores, em escolhas por confiança política ou amiguismo, nas cunhas e no patrocinato, na partilha da informação apenas entre os “pares”, nos círculos informais do poder político… Está na ausência de uma cultura anticorrupção nos partidos políticos, que são mais sensíveis à dissidência do que à vergonha…

Sagredo – Nesse círculo de confiança de que tens falado: a gente que pode ser escolhida para tudo porque “é de confiança” é a ecologia da corrupção “alta”. Já se sabe que circula entre os negócios, a política, certas profissões com acesso muito próximo do poder político: grandes advogados, auditores e consultores, gestores, gente ligada à comunicação.

Simplício – Os que bebem do fino…

Sagredo – E deixam pequeno rastro, conversas em almoços, emails e telefonemas. É por isso que as escutas telefónicas têm o papel que têm. Imagina as centenas, milhares de conversas deste género:

“Olha para o teu projecto, devias falar com o A do gabinete do secretário de Estado. Vou-te dar o número privado.”

“Para essa privatização tens de falar com B. Se não falares com B, nada feito.”

“Seria possível agilizar esta autorização? É que o meu cliente tem muita pressa e está a perder muito dinheiro.”

“Sim, eu concorro, mas não posso perder, e tu podes dar outra coisa ao meu concorrente.”

Todas estas conversas são anódinas, nem sequer incluem a parte das vantagens, nem chegam à corrupção. Mas um dos interlocutores fica sempre em vantagem, seja em poder – é por ele que se conseguem algumas coisas –, seja em favores que podem ser retribuídos, seja no resto… a corrupção propriamente dita.

Salviati – E quem pode fazer isto fá-lo porque tem “acesso” – tal acesso que valia um milhão (a frase foi dita) ou que abre “todas as portas” (a frase foi dita). Ou tem informação, sabe com quem falar e o seu nome faz com que outrem atenda os telefonemas e faça os favores. O círculo de confiança que ninguém escrutina, porque a discrição é norma.

5 pensamentos sobre “Conversa sobre a ecologia da corrupção

  1. “Sagredo – Sabem, sabem. Têm de saber. As secretárias, os colegas, os próximos, os familiares, os inimigos, os empregados, os companheiros de partido. Há sempre muita gente que sabe, mas depois há medo, indiferença, ou vantagem. Mas sabem, não podem deixar de saber, podem não saber os pormenores, mas sabem, ou suspeitam. Daí a dimensão.”

    Todo este arrazoado do “Sagredo” acima, mais palavra menos palavra, já o pacheco tinha proferido na última “quadratura”.
    E mais. O pacheco, na “quadratura” exibia um espanto de espantar o teleouvinte porque havendo, tanta gente que, necessariamente, tinha de conviver e conhecer os actos de corrupção ninguém a denunciava no momento dela.
    Pois pacheco, porque é que os outros que convivem com corruptos e com a corrupção, e são muitos, claro, não a vão logo a correr ao MP! Pois, pacheco, nunca pensaste que quando o peixe pequeno se intromete com o peixe grande é engolido imediatamente. Primeiro, a arraia-miúda não chega a ter percepção concreta se se trata de corrupção e se denunciam algo são eles que são presos por difamação. Os outros todos uns comem outros provam e muitos lambem dos proveitos.
    Imagina só que aconteceria se algum porteiro ou caixa do BPN fosse ao MP com a lista de ministros e ex-secretários de Estado do cavaquismo onde por cima pairava sobrevoando o patriarca da referida escola de “virtudes”.

    No dia seguinte a essa tal “quadratura” fiz um texto como segue:

    Pacheco Pereira continua a fingir que não anda neste mundo político português há décadas e que, sendo ou passando por impoluto e pensando só ter lidado com gente impoluta, agora na “quadratura” pergunta muito espantado como é que “tudo isto acontece e ninguém dá por nada?”
    Pois é Pacheco. Também tu que lidaste de perto, muito perto até, com a escola cavaquista e uma fartura de alunos dessa escola e, mais precisamente, foste colaborador próximo de Duarte Lima na AR e no partido, nunca viste nada, não deste por nada, não topaste nada, não olfataste nada, não sentiste nada e viveste regalado como segunda e primeira figura do cavaquismo na AR e depois na “europa” com o teu amigo poeta e tradutor da treta.
    Por sinal esse teu amigo poeta que viveu a sua existência escrevendo livros, fazendo traduções, conferências e escrevendo crónicas em jornais, etc., etc., foi isso tudo e foi também o maior caça-tachos e parasita-mor do reino. Parasita porque foi tudo isso enquanto era pago pelos parlamentos de cá ou europeu onde nunca produziu uma nota ou trabalho em serviço do país de que a gente se lembre. Os compadres partidários ainda lhe deram um prémio de milhares por traduzir épicos clássicos mantendo martelada à força a rima para parecer ao pagode ser um igual a eles: uma cagada.
    Tudo isso passou mesmo por baixo dos teus olhos junto à tua barba e aparência de cientista da história e da política e tu não deste por nada.
    Assim como no BPN, sob o teu olhar e olfacto apurado (quando queres), então, passava-se tudo no melhor do mundo dos “impolutos” e tu vivias e convivias nesse meio como peixe na água. Água limpinha, limpinha pois nunca nela viste a mais pequena nódoa ou mancha de sombra de mãozinha sorrateira de luvas.
    Foi tudo sempre bacteriologicamnte puro até ontem à noite na “quadratura”. E ontem à noite eram referidos apenas os teus desconhecidos ou afastados ou adversários políticos.
    Bem, sempre não, houve um gajo de que Pacheco ouviu cassetes de “escutas” tratadas para serem “prova” de atentado político e que pelo “tom”, pelo “jeito”, pelo uso de certas palavras ou pela pronúncia de pistoleiro ele “viu” e ficou logo convicto tratar-se dum bandido que queria assaltar o Estado de Direito.

    • Grande Neves! Agora foi porrada de criar bicho. Mas entre o Pacheco e o Vasco da Des(Graça) Moura, ainda prefiro o Pacheco. Ainda havemos de lhe oferecer uns óculos e um “nariz de longo alcance”…. 🙂

      • Caro “estatuadesal” mete dó ouvir o pacheco vir hoje candidamente falar acerca da corrupção, talvez uma questão tão antiga como a prostituição, e perguntar “tudo isto acontece e ninguém dá por nada?”.
        Ele foi braço direito, durante anos, do mais hediondo dos corruptos que está acusado de matar para ficar com o dinheiro que lhe confiaram na sua condição de advogado.
        Ele foi braço direito do corrupto que, além de hediondo, foi o mais ganancioso naquele tempo acerca do qual entre toda a classe de empreiteiros de obras públicas constava e se dizia à boca grande que ninguém ganhava um concurso relevante sem levar o respectivo cheque de dez por cento ao Dr. presidente da bancada parlamentar.
        E vem o pacheco, agora, perguntar aos outros, às secretárias, aos porteiros, aos caixas e porventura às mulheres de limpeza das instituições oficiais, porque não denunciaram logo os casos de corrupção quando nesse tempo trabalhavam nessas instituições.
        A pergunta que faz agora deve ele fazê-la a si próprio; assenta-lhe que nem uma luva.

  2. Descrição perfeita do terreno da corrupção que campeia n mundo em quantidades e extensões diferentes. É muito imaginativa essa descrição de «corrupção ecológica». Tendo em conta que nenhuma doença é justa, diria, que a corrupção é «natura». Quantos vivem sem a sofrer? Este tema faz-me lembrar com asco a frase proferida por um politico em alto cargo numa instituição do Estado, que quando lhe perguntaram se tinha conhecimento de corrupção na casa que dirige respondeu com um enfático «não sou bufo!». Como interpretar este desabafo? Que não quer combater a corrupção? Logo, pergunta-se: Porquê? O País anseia que as investigações em curso o esclareçam…

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