Toda a procura cria a sua própria oferta

(Jorge Nascimento Rodrigues, in Facebook, 11/12/2016)

austeridade

O austerismo consolidou duas ideias do mundo da fantasia.

A primeira fantasia é que o capitalismo se “reproduz” pela poupancinha dos poupadinhos (no limite, uma espécie de auto-flageladores que tiram à comida e ao bem-estar civilizacional para aforrar na conta do banco, entre eles também os avaros, ainda que os juros líquidos do esforço sejam cada vez mais de um dígito), e não pelo consumo de massa e globalizado, ou seja, pela criação de “procura” (para irmos para o tecnicalês) nas economias. Pois é, meus: o capitalismo não vive da oferta, mas sim da procurazinha; sem procura mesmo, a oferta fica mono e os produtores entram em crise, sabem?

A segunda fantasia é que os bancos e os investidores – do institucional ao zé-ninguém – vivem sobretudo para, direta ou indiretamente, “investir” na produção de bens e serviços, na tal “criação da riqueza”, e não para especular em produtos financeiros (sejam os mais comuns em bolsa ou na dívida, pública e privada, ou noutras n invencões do inventivo e imparável capital financeiro).

O capitalismo, desde a segunda revolução industrial, que não é mais esse paraíso da poupança e do PIB industrial: ter o ordenadinho de pelintra ou de classe média média ou o lucro ou a renda multimilionária, poupar e aforrar, depois alguém dar crédito e o endividado investir no engordar do PIB “produtivo”.

O capitalismo desde o século XIX que sofre do vírus da financeirização (metam pedras na boca para dizer o palavrão). As primeiras crises financeiras globais não começaram no século XX — em 1907 ou em 1929. Começaram no século XIX, antes, que chatice.

O austerista diz basicamente que basicamente a crise surge porque basicamente a arraia-miúda não poupa (aliás, a maioria não poupa mesmo, mesmo, porque o rendimento que tem fica aquém do gasto mínimo que deveria ter no quadro civilizacional atual, o que é que querem?), porque uma parte (aquela parte a que chega os prospectos dos bancos com as ofertas de crédito) desses malandros se põe a pedir emprestado e a gastar à tripa-forra. Ao que parece, ultimamente, depois do garrote aliviar um pouco, voltou a adquirir bens duráveis (que fazem a beleza do comercio internacional, sobretudo o de média e alta intensidade tecnológica)

Por isso, para o austerista, o que se tem de impedir é que essa galera se estique — e há sempre duas maneiras, ou limitar-lhe as “ambições” com uma “desvalorização interna” que lhes corte o rendimento ainda mais e por aí fora enquanto o termómetro do ‘aguenta’ resistir; ou meter uma mordaça no crédito ao consumo dessa gentalha (que não aos ‘investidores’, que, como a malta indiscreta sabe, são depois os números gordos no malparado).

O azar do austerista é que o mundo não é o da sua fantasia.

No mundo real, real mesmo, as crises surgem — e continuarão a surgir (um gajo chamado Minsky dizia que este mundo é mesmo, mesmo, ‘instável’ e tem no seu ADN os estoiros) – porque a exuberância do investimento não é na economia real, real, real mesmo, mas no mundo maravilhoso da finança — onde se obtêm rendas e não tem de se andar a penar a ver se se ganha o ordenadito ou empenhar tudo ao banco para se aguentar a empresa (sobretudo quando esta é um projeto pessoal de vida).austeridade1

E esse mundo maravilhoso precisa de duas roldanas:
a) que haja consumo de massa para fazer rolar a economia real (já que a finança não está para aí virada no seu grosso);
e b) que o crédito se multiplique como as rosas da rainha de Coimbra para que o consumo role e o fluxo para aplicações financeiras também.

E tudo isto não vem só da poupança dos poupadinhos (ou das contas à ordem que qualquer mortal ou negócio tem de ter), mas do dinheiro fiduciário que se cria do ar puro (pelos bancos centrais) e que permite a toda esta máquina girar, pelo menos, por ciclos.

O dia em que acabasse o consumo de massa e o endividamento (de toda a maralha, dos ‘investidores’, e mais dos Estados), a máquina do capitalismo modernaço pifava. As metas defendidas pelos austeristas se fossem levadas até ao fim matavam a galinha dos ovos de ouro de que eles mesmo vivem. Um austerista não é só um patife, é burro sistémico.

É, por isso, que a finança usa (e alimenta) os austeristas como mata-mata para certas missões (como a de fazer pagar à gentalha a crise financeira com medidas patifórias e moralice de sacristia) e depois os dispensa como fralda descartável, quando o que tem de começar a dar, de novo, é a exuberância financeira.

E, para a nova fase de exuberância financeira, nada como um populismozinho que dê algumas migalhas para baixo (trickle down), através de um Keynesianismo bastardo (como lhe chamava a Joan Robinson, amiga de peito do John Maynard).

Os austeristas estão condenados à morte política, mais dia menos dia. E ninguém vai derramar uma lágrima por eles, a não ser uns fanáticos no tweeter.

Quanto mais tarde o funeral desse grupo de patifes, mais o populismo caudilhista e totalitário se agigantará como vaga, tomem nota.

Mas, deixem lá, os financistas, na bebedeira em que vão embarcar, vão repetir, mais ano menos ano, o filme que a gente já conhece.

Mas, entretanto, enquanto o pau vai e vem, a maralha folga as costas. Haja natal, galera.

7 pensamentos sobre “Toda a procura cria a sua própria oferta

  1. E pronto, mais um a cascar no capitalismo. E com razão lá está. Qualquer conservador de fim de semana lê este texto com as orelhas em brasa e grita “comunista” a cada dois parágrafos. Mas esta é a limitação do conservador: não consegue ver para lá da dualidade entre o comunismo e o capitalismo.
    Hoje em dia há cada vez mais vozes a denunciar o capitalismo como um sistema falhado. Há muitos anos atrás houve quem se pronunciasse com os mesmos tons em relação ao feudalismo. Ambos foram, e estão, a ser recebidos com grandes doses de cepticismo. O papel dos inovadores é pensar fora da caixa enquanto que os conservadores se limitam a negar o óbvio. Porque não têm inteligência para mais, porque são comodistas ou porque simplesmente têm demasiado medo da mudança. Seria de esperar que com a quantidade de informação que hoje dispomos, com as análises históricas que conseguimos obter com dois cliques, que tal raciocínio, mais do que óbvio, seria de esperar. Como o autor bem disse, o capitalismo caracteriza-se por crises periódicas onde quem leva com os falhanços do sistema é quem menos beneficia dele.
    Do ponto de vista científico, o capitalismo como sistema, é aberrante. Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento sobre teoria de controlo e sistemas, ao analisar o capitalismo como sistema financeiro, social ou mesmo político, rapidamente chega à conclusão que este é imbecil. A longo prazo, e talvez aqui esteja o problema porque muita gente falha em ver a sua inutilidade, o capitalismo tende a concentrar os recursos, que são de todos pois o planeta não é de ninguém, num pequeno grupo, ou na sua expressão máxima, numa única pessoa. É a natureza dos monopólios e o capitalismo, auxiliado por filosofias nefastas como o neoliberalismo que teima em destruir o pouco que podemos fazer para o combater, assim o dita.
    Qual é então a alternativa? Honestamente não consigo dizer que o sistema A ou B resolve estes problemas (isto para calar quem assume a priori que quem é contra o capitalismo é necessariamente comunista). Apenas sei que parte da solução passa por reconhecer e admitir que o capitalismo não funciona e é preciso mudar.

  2. A instabilidade cíclica do capitalismo é um fenómeno bem estudado, mais associado a nomes como Kondratiev e os que se lhe seguiram do que propriamente a Marx e Engels, que estavam convencidos que essa instabilidade levaria à destruição do sistema, quando tem simplesmente levado a transformações cada vez mais diletérias (mas não para os capitalistas, claro). O grande problema com as alternativas é que não há nenhumas. A social-democracia agoniza, fruto da evolução tecnológica, da globalização e sobretudo do ataque ao poder dos sindicatos, iniciado no final dos anos 70, fenómenos que atomizaram e alienaram a sua base de apoio (e que explicam em parte Trump e o Brexit). As soluções de Socialismo Estatista (nacionalizações e Economia planificada) continuam a ser teimosamente brandidas pela Esquerda radical (com ‘r’ pequeno, porque claramente não consegue pensar os fundamentos), mas qualquer pessoa com mentalidade minimamente empírica já teria deitado ao lixo algo que só reproduz o que de pior o capitalismo tem, ou seja, o Monopólio de que fala o Ricardo Almeida (e que os capitalistas adoram, já que a competição reduz as margens de lucro, mas que no caso dos Monopólios estatais aparentemente nem lucros gera). E eu refiro-me tão só a questões de eficiência económica, porque no que diz respeito à repressão de liberdades políticas, nem vale a pena conversarmos (curiosamente, a dita Esquerda parece que não tem nada para dizer sobre tal coisa, como se tudo se resumisse à Economia, uma posição estranhamente parecida com a do capitalismo puro e duro). Eu tenho alguma fé nas soluções de natureza cooperativa, mas ninguém parece dar-lhes nenhuma atenção. Relativamente ao texto, o autor tem razão. Keynes, de acordo com o seu biógrafo Skidelsky, teria detestado este keynesianismo que obriga a um crescimento eterno para preservar a relação dívida/PIB, ele que defendia políticas contra-cíclicas (leia-se austeridade em períodos de crescimento, para retirar a taça do ponche quando a festa está boa, na expressão de um ex-Presidente da FED). Assim, não faremos mais do que empurrar com a barriga até à próxima crise, que pode bem ser a última…

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