A cidade de Donald Trump

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 10/12/2016)

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                                    Miguel Sousa Tavares

Todos temos os nossos itinerários particulares nas nossas cidades de referência. Em Nova Iorque, o meu há-de sempre passar por uma visita à Frick Collection, o meu museu preferido na cidade. Situado na 5ª Avenida, em frente ao Central Park, ocupa a que foi a casa particular de Henry Clay Frick (1849-1919), um dos grandes industriais americanos do seu tempo e coleccionador de arte dedicado e conhecedor. É uma casa sem nenhum interesse, no que os americanos chamam de “estilo neoclássico”, à roda de um pátio supostamente de influência mediterrânica, mas sem sombra da leveza e da luz que tal implica. Abriga também uma muito elogiada colecção de móveis, bronzes e cristais, de que nada percebo e pouco me dizem. O que ali me fascina é a dimensão humana do museu — a dimensão de uma casa de um coleccionador de arte — e a sua fantástica tentativa de reunir, nesse espaço, toda a história da pintura ocidental até então, de Piero Della Francesca a Manet. Frick não viveu o Modernismo nem o Impressionismo, e só podemos lamentá-lo. Mas, de resto, está lá representado quase tudo do essencial: um dos retratos de Filipe IV de Velázquez, uns fabulosos Goya, Rembrandt (incluindo o auto-retrato), dois deslumbrantes Ticianos, o mestre de todos os flamengos, Jacob van Ruisdael, o também paisagista John Constable e dois dos meus três “pintores da luz”, Vermeer e Turner (só falta Caravaggio). Só pelos três Vermeer da Frick Collection vale a pena ir a Nova Iorque.

Saio da Frick e caminho ao longo do Central Park, que continua igual ao que é nos filmes e ainda, nestes dias iniciais de Dezembro, tem as árvores da cor mágica do Verão indiano. Dir- se-ia que nada mudou, afinal. Mas sim, mudou: à esquerda, The Pierre ostenta por baixo do nome o registo do novo proprietário, “A Taj Hotel” (como os nossos Seteais e Tivoli). O Plaza parece igual a sempre ou, pelo menos, nada nas bandeiras indica nova nacionalidade. Mas logo depois, continuando a descer a 5ª Avenida, a concentração de turistas e polícias não deixa margem para engano: estamos em frente à Trump Tower, a nova sede do poder nos Estados Unidos. Donald vive lá em cima, na penthouse, e conta-se que a sua segurança está a custar um milhão de dólares por dia, que o mayor está farto de pagar e quer endossar ao governo federal. Todas as televisões têm ali o seu circo montado em permanência, e hordas de turistas — americanos, europeus e asiáticos — desfilam e fotografam, como se pudessem fazer parte da História. No caminho do bus do aeroporto para Manhattan, um casal do Dakota, acompanhado por um filho que não larga o inevitável iPad, anuncia que vem visitar Nova Iorque pela primeira vez. O pai jura orgulhosamente que nem sequer vai deixar as malas no hotel, ansioso como está de ir directamente à Trump Tower. Donald vai fazer a América “great again”, e todos os idiotas da nação querem estar presentes nesse momento refundador. No dia seguinte, 2 de Dezembro, já depois de as luzes da árvore de Natal do Rockefeller Center se terem acendido em Nova Iorque, Donald participa no primeiro daquilo a que chama os seus “comícios de agradecimento” pela eleição. Em Cincinnati, no Ohio, um dos estados do rust belt que lhe deu a vitória, ali roubada nas barbas dos democratas. Fala primeiro Mike Pence, o vice-presidente eleito: um curto discurso de fascismo puro e duro, perante uma plateia que parece de puro e duro Ku Klux Klan. Depois vem Donald, que entra em cena como o Super-Homem, a capa substituída pela ridícula cabeleira, todo ele patético, boçal, penoso de ver. Por vezes, lê do teleponto o discurso que os assessores lhe prepararam, mas o que gosta mesmo é de sair do texto. E o que diz então o futuro Presidente dos Estados Unidos é que teve uma “landslide victory” (apesar de 2.300.000 votos a menos, quase 2% dos votos), contra uma “very dishonest press”, que cometeu a heresia de prever a sua derrota. Aí não está sozinho: é de bom tom acusar a imprensa americana de não ter sabido ler os sinais do tempo. Mas isso significaria o quê? Que se deveria ter abstido de avisar os americanos sobre o que representava Donald Trump ou conformar-se porque os ventos do tempo, ali e por esse mundo fora, sopram no sentido do nacionalismo, do populismo, do salve-se quem puder?

Trump tem os Estados Unidos. Mas nunca terá Nova Iorque. A vida continua

Donald rebola-se de gozo no palco, ele próprio ainda não acreditando que venceu, e abre os braços proclamando: “Acusaram-me de ser bilionário, mas qual é o mal de saber ganhar dinheiro?” E de não pagar impostos durante dez anos, e de levar as suas empresas à falência, despedindo milhares de trabalhadores, usando depois os prejuízos para não pagar impostos? Sim, qual é o mal? E que importa, se ele acaba de negociar um acordo com a Carrier prometendo pagar-lhes milhões de dólares de compensação para que a empresa fabricante de aparelhos de ar condicionado desista de ir para o México e salve 1100 postos de trabalho nos Estados Unidos? E se os trabalhadores da Carrier gravam vídeos a agradecer-lhe ser “um político diferente” e ninguém se pergunta se ele vai fazer o mesmo, e a que custo, com todas as outras empresas americanas derrotadas pela globalização e pela concorrência de que os Estados Unidos sempre foram os grandes arautos? Ali, entre os seus, enquanto lê os tradicionais apelos à unidade dos americanos que lhe escreveram no teleponto, Trump foge do texto e engalfinha-se num discurso vingativo, primário, profundamente divisionista. Se dúvidas restassem de que não tem categoria para ser Presidente, bastaria escutá-lo nessa noite, em Cincinnati. “Vou-vos contar um segredo, mas não digam nada a ninguém”, dizia ele, semicerrando os seus olhinhos de predador, com as pálpebras maquilhadas de branco. “Para a Defesa vem o general ‘Mad Dog’ Mattis, a coisa mais parecida com o general Patton que já tivemos e já era altura de termos.” Já sobre as suas escolhas na área económica, apenas um silêncio embaraçado, pois elas são o total oposto das suas promessas eleitorais de ir combater Wall Street, por ele acusada de favorecer a candidatura de Hillary e de ser o centro de todos os males económicos dos Estados Unidos. Para o Departamento de Comércio (o equivalente ao nosso Ministério da Economia), vai, como ministro, Wilbur Ross, um homem do Goldman Sachs, e, como vice-ministro, o milionário de Chicago Ted Ricketts. Mas a mais contraditória escolha em relação a tudo o que foi dito e prometido por Trump é a do Tesouro, o equivalente ao nosso Ministério das Finanças. Steven Mnuchin é também um homem do Goldman Sachs, especialista em gestão de activos de alto risco: uma criatura da especulação financeira, grande adepto da desregulamentação sobre as empresas, do tipo da que conduziu à crise financeira de 2008. Wall Street no seu pior. Segurem-se bem!

Trump pode viver na sua torre dourada da 5ª Avenida, ao estilo Versalhes de pato-bravo. Mas Nova Iorque, a cidade e o estado, rejeitaram-no em força, e a força desta cidade é imensa, é indestrutível, venha quem vier do Dakota pregar-lhe as novas regras. No Ground Zero, contemplando a arrepiante simplicidade e beleza do Memorial às vítimas das Torres Gémeas (dois buracos na exacta medida das Torres e no espaço que elas ocupavam, por onde um fio de água, como um caudal de lágrimas, escorre permanentemente, desaparecendo no fundo), ou ali mesmo ao lado, olhando o deslumbrante PATH (o novo terminal de transportes do World Trade Center), de Santiago Calatrava, percebe-se isso muito bem.

Só uma cidade extraordinária, só uma gente extraordinária conseguiria transformar uma tragédia numa obra de arte ainda mais imortal. Trump tem os Estados Unidos. Mas nunca terá Nova Iorque. A vida continua.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Um pensamento sobre “A cidade de Donald Trump

  1. Concordo com Miguel Sousa Tavares. Curto e eficaz. Trump parece preparar-se para substituir a democracia de governos eleitos pelo voto dos cidadãos por um sistema fascista encabeçado por títeres escolhidos pelos consórcios económico industriais militares dominantes, o qual livre do dever de agradar aos cidadãos lhes poderá impor livremente os seus delirantes desígnios esclavagistas em nome de um progresso onde não haverá lugar para a solidariedade universal. Imagine-se só o que poderia acontecer à civilização dos direitos do homem e ao uso dos recursos do planeta! Ou a UE resiste em nome da civilização e dos seus valores e torna-se o seu baluarte ou voltaremos a repetir a história… A que preço?!

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