Até podem diabolizar o homem, mas têm o dever de tentar perceber quem nele vota

(Henrique Raposo, in Expresso Diário, 09/11/2016)

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(Nota: Pela segunda vez desde a origem deste blog publico um texto do Henrique Raposo, que é normalmente um escriba que defende os pontos de vista da direita com os quais não me identifico. Mas, esta análise que ele faz não deixa de ser um contributo a ter em conta na explicação do fenómento Trump. (Estátua de Sal))


Será que é desta que o centro político e mediático vai acordar do torpor politicamente correto? Será que é desta que as redações, que garantiam que Trump não podia vencer, vão começar a reportar o mundo tal como ele existe de facto em vez de tentarem impor às pessoas uma narrativa ideológica que surge mascarada pelo eufemismo “jornalismo”? Será que é desta que vão perceber que tentar perceber uma coisa nefasta não é a mesma coisa que concordar com essa coisa nefasta? Será que é desta que os jornalistas, colunistas, intelectuais e políticos profissionais vão perceber que as pessoas estão fartas do paternalismo politicamente correto e das agendas do costume? Convém acordar, porque a base do sucesso de Trump está nesta revolta popular contra as elites que dominam o discurso do espaço público. As soluções de Trump são radicais e mesmo protofascistas, mas ele, tal como Le Pen na Europa, é o único que olha de frente para algo que estava há muito a irritar a população: os efeitos económicos do consenso em torno da globalização e das novas tecnologias e a opressão intelectual e moral do politicamente correto sobre universidades, jornais, televisões, séries, cinema; uma opressão que até se sente no humor e gestos do dia a dia.

Ontem, o mundo geek que está na web summit declarou – com orgulho – que está a construir “um mundo sem trabalho” onde máquinas e algoritmos substituirão os homens. Ontem, os operários da cintura industrial americana (Rust Belt), que sempre votaram à esquerda, disseram que não querem essa utopia, aliás, disseram que acham isso uma distopia. É por isso que votaram pela primeira vez em massa num transfigurado partido republicano. Como filho de outra cintura industrial igualmente desativada, estou com eles. A questão é que eles votaram numa utopia reacionária perigosa. Mas a tragédia aqui é que ninguém no centro político respondeu a este problema, que só surgiu na agenda através de dois radicais, Trump e Sanders. Da mesma forma, o jornalismo continua de beicinho caído pelo mundo geek. Não estou a dizer que devemos ser luditas anti-novas tecnologias. Estou porém a dizer que o jornalismo tem o dever de ser mais cético e crítico em relação a este novo mundo tecnológico. O Expresso há dias dizia que o Facebook paga menos impostos no País de Gales do que uma simples pastelaria. Como é que não querem uma revolta popular?

Há uns anos, escrevi que não gosto de rap ou hip-hop, nem do som, nem da habitual iconografia dos clips: violências, armas, o machismo mais aberto de todos. Fui apelido de “racista” por muita gente; tenho mais casos destes na minha memória relacionadas com muçulmanos, negros e até mulheres. E isto é só Portugal. Se questionar as habituais narrativas sobre negros ou muçulmanos, um intelectual americano é de imediato apelidado de “racista” – mesmo quando o intelectual em causa é negro. Isto tem de acabar. Uma boa parte dos humoristas americanos (de Seinfeld a Chris Rock) está em guerra aberta com o politicamente correto, que é de facto um fator de opressão intelectual que atingiu o limite do tolerável há muito tempo. O Brexit e a vitória de Trump são avisos claros nesse sentido. Estes 50 milhões de americanos não são todos racistas ou misóginos, estão é saturados desta ditadura intelectual que até impede piadas ou gestos de cortesia em relação às senhoras. Importa perceber isto, porque Trump não é contra o politicamente correto. É racista, ponto. Trump não é contra o politicamente correto, ele acha mesmo que as mulheres são pedaços de carne. Trump não é contra o politicamente correto ou conservador ou republicano ou liberal, é o maior bullshiter de que há memória.

A tragédia é que todo o centro político, dos partidos à CNN, passando pelos jornais, foi incapaz de fazer uma crítica sólida e adulta à perversão intelectual que é o politicamente correto, deixando o espaço aberto para Trump. A vitória da boçalidade quase fascista de Trump começa nesta cobardia de todo o centro político e mediático.

Um pensamento sobre “Até podem diabolizar o homem, mas têm o dever de tentar perceber quem nele vota

  1. O Senhor Henrique Raposo tem razão em todas estas afirmações com as quais concordo. As “intelligentzia” que controiem um mundo em que desaparece por completo o trabalho dos homens e das mulheres que precisam de empregos para sobreviver, estão se marimbando por completo das pessoas que não são todas, nem podem ser todas qualificadas para criar “statups” e fazer parte do mundo “geek”, mas que estão a beira do desespero, a procura de saber como vão acabar o mês, e se vão ter trabalho para o ano que vem.
    É contra esses factos que o povo se revolta um pouco por todo o lado, e mesmo aqui na Europa, estamos a beira de uma agudização deste fenómeno. Marine Lepen está exultando de alegria coma vitória do Trump. É lamentável que os governantes actuais (sobretudo Hollande e Merkel), não compreendem o que se passa, e não façam nada para agir e inflectir as suas políticas! Quando acordarem… será tarde demais.

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