A loucura dos povos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 05/11/2016)

AUTOR

                                   Miguel Sousa Tavares

Olho para uma fotografia de Donald Trump em campanha, tirada dias atrás: está de boné de basebol branco, onde está escrito o seu slogan de campanha: “Make America great again”. Por baixo do boné espreitam os seus olhinhos semicerrados, num esgar de ódio, desprezo, arrogância e orgulhosa ignorância: a sua imagem de marca. A boca, também pequena, está arredondada num círculo do qual se adivinha saírem as suas habituais frases de uma total imbecilidade e irresponsabilidade. O conjunto forma o retrato de um focinho de porco, rematado por um cabelo de porco-espinho oxigenado e uma gravata encarnada berrante, daquelas de laço já feito. Podia ser um vendedor de pentes de alguma aldeia do Uzbequistão, um agente imobiliário encarregado de vender os raros apartamentos que ainda restam de pé na cidade de Mossul, ocupada pelo Daesh e atacada por comandos de elite curdos, iraquianos e americanos. Mas não: é o candidato pelos republicanos a Presidente dos Estados Unidos e, segundo as últimas sondagens, uma ameaça real para a América e para o mundo. Nem sequer é preciso determo-nos em tudo o resto que faz deste candidato uma espécie de case study dos alçapões da democracia. Já tudo foi dito e exposto sobre isso e nada fez efeito. Mas atentemos apenas na sua fotografia e imaginemo-la exposta em todos os lugares da América e do mundo onde a fotografia oficial do Presidente representa o país: metade dos americanos perdeu a cabeça, metade deles quer excluir a outra metade que faz dos Estados Unidos a “nação indispensável”, como dizia a ex-secretária de Estado Madeleine Albright, e quer transformar a Casa Branca num misto de cabaré, casino e Guiné Equatorial.

Agora olhemos para o idiota do Nigel Farage ou o irresponsável do Boris Johnson (OK, fez uma boa biografia do Churchill, mas quem a não faria ou não fez com aquele material?). O grande projecto político deles foi devolver a Grã-Bretanha à condição de ilha, assim como seria o de a devolver à condição de ruller do Raj indiano. Como se a Invencível Armada de Filipe II ainda estivesse no Canal da Mancha à espera de ser detida pelos truques de pirata de Sir Francis Drake ou a Armada franco-espanhola do almirante Villeneuve ainda estivesse em Trafalgar na iminência de ser destroçada por Lord Nelson. Farage e Johnson inventaram uma ameaça que não existia, convenceram o povo a ter medo do mundo em que vivemos e a apostar no regresso a uma grandeza fora de época e a uma condição de outsider num mundo globalizado fora do qual nem a Inglaterra nem nenhuma outra nação pode liderar por si só. Tal qual como Trump quando promete aos mineiros das minas de carvão do Ohio que lhes há-de devolver os postos de trabalho e a antiga prosperidade num mundo onde os melhores cérebros dos Estados Unidos trabalham para uma economia onde a energia há-de ser limpa e inesgotável. O ‘Brexit’ e a eleição de Trump eram, no início do ano, uma espécie de pesadelo absoluto das casas de apostas. Impensável, mas teoricamente possível, como hipótese de trabalho. A primeira parte do pesadelo está cumprida e tudo o que podemos desejar é que a Europa faça pagar caro à Inglaterra o preço da sua arrogância: no one for the tea. Terça-feira à noite saberemos até onde foi a loucura destrutiva destes povos que se habituaram a governar um mundo que já não existe, à medida dos seus desejos e da sua nostalgia imperial.

Que os deuses protejam os povos da sua loucura! Que nos protejam da democracia

Noutra dimensão, olhemos agora para a gloriosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que os portugueses fundaram há 500 anos e que os franceses tentaram em vão roubar-nos quase à nascença. A cidade onde não existe o pecado mas apenas o vício virtuoso, a cidade que, como nenhuma outra, representa a mais extraordinária amálgama humana daquilo que acreditamos ser o Brasil eterno, o Brasil que atravessa tudo — os “coronéis”, o “tenentismo”, Getúlio, Kubitschek, a ditadura militar, o PMDB, Collor, Lula e Dilma, ou o Judas Temer — e sempre se mantém fiel àquilo que representa o seu pecado original — a alegria —, esse Brasil que o Rio de Janeiro representa acaba de cair nas mãos da IURD. Nada menos do que 1,7 milhões de cariocas, 60% dos votantes, entregaram a Prefeitura do Rio de Janeiro ao bispo da IURD Marcelo Crivella, sobrinho e criatura do próprio chefe da quadrilha, Edir Macedo. Eu não conheço Crivella, mas conheço um pouco, e suficiente, sobre a sinistra IURD e conheci, numa entrevista televisiva, esse grande vigarista da fé que é Edir Macedo. E conheço bem, bem demais, a querida cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Não entendo o que uma e outra coisa — o Rio e a IURD — possam ter em comum. Mas um milhão e 700 mil cariocas acharam que sim: que Deus os proteja! Que os deuses protejam os povos da sua loucura! Que nos protejam da democracia.

O que falta? Falta a Le Pen ganhar em França, para o ano que vem. Falta os nórdicos tornarem-se maioritariamente nacionalistas e racistas, falta os húngaros, os polacos, os eslovacos e os romenos tornarem-se oficialmente fascistas. Falta a Europa render-se de vez à “doutrina Barroso” de cada um por si e Deus contra todos. Falta o Putin tomar-se de vez pela Catarina, a Grande, ou o fedelho mongolóide da Coreia do Norte querer experimentar os seus brinquedos nucleares. E falta o Obiang, da Guiné Equatorial — o novo membro luso-falante dessa comédia sem graça a que chamam CPLP — vir ajoelhar-se em Fátima, a convite de Marcelo e Costa, para obter indulgência plenária pelos seus crimes de delito comum e um salvo-conduto para os mandatos de captura internacional pendentes sobre a sua lusa pessoa.

Sabem que mais? Tudo isto era previsível. Há dez anos, perdoem-me a imodéstia, escrevi ou disse algures que as redes sociais eram uma ameaça mais grave para a civilização que conhecíamos do que o fundamentalismo islâmico. Fui gozado por toda a gente, tratado como um auto-excluído da modernidade. Mas dez anos depois, dou comigo a rir-me quando vejo alguns dos grandes arautos dessa modernidade queixarem-se agora de serem vítimas indefesas do primarismo intelectual e moral das redes sociais. Ou da opinião colectiva que se forma nas redes sociais, sem escrutínio de facto ou de verdade. Rio-me, mas não deixo de me assustar cada vez mais. A falsa democracia em rede e instantânea transformou aquilo que é essencial a uma verdadeira democracia — a capacidade, o esforço e a liberdade de decidir por si próprio — numa atitude de manada, desresponsabilizada por ter de reflectir, de se esforçar para estar informado, de pensar e decidir pela própria cabeça. Julgam que sabem, só porque têm voz activa no meio da manada e são livres de dizer a primeira coisa que lhes ocorre, de opinarem sem saber, de presumirem sem confirmar, de insultarem sem consequências, de passarem adiante o boato e a calúnia sem se deterem. Julgando saber, nunca tantos souberam tão pouco sobre tantas coisas. Julgando ser livres, nunca tantos se prestaram a ser cordeiros dóceis nas mãos de todos os manipuladores. Durante muito tempo, acreditei que a grande desigualdade do futuro seria, não entre os que têm ou não têm dinheiro, propriedade ou oportunidades de negócio, mas sim entre os que têm ou não têm saber, cultura, informação. E acreditei que essa desigualdade seria cada vez mais visível e determinante e irremediavelmente a favor dos que adquiriram saber e informação — por condição, por sorte ou por mérito próprio.

Mas, hoje, temo um mundo ainda mais injusto e assustador: um mundo onde uma maioria de ignorantes, formados nas redes sociais, tome o poder, pelas regras da democracia, e nos imponha as suas soluções e os seus valores. Um mundo do Facebook, da “Casa dos Segredos”, do “Correio da Manhã” ou de um Donald Trump em cada esquina.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)

22 pensamentos sobre “A loucura dos povos

  1. O Miguel é saudades do tempo em que fazia parta de quem controlava a opinião pública, antes de toda a gente perceber que era um fascizóide de merda. Antes as redes sociais que os mérdia dos capitalistas.

  2. Parabéns pelo maravilhoso texto . Sempre entendi que nem tudo se aprende nas faculdades ; mas também
    Portugal não é excepção … Somos um país com excesso de doutores e onde são desaproveitadas as parcas inteligências

  3. Pois é, Miguel, é tido isso é mais o que está para vir! Mas eu sei como é porque é que chegámos aqui. E, tenho a certeza, o Miguel também saberá, mas como tem vivido bem, e à pala, nada diz sobre as verdadeiras razões de ser, ou, melhor escrito, a verdadeira razão: o CAPITALISMO funciona assim, esse hediondo sistema que há mais de 400 anos invadiu, ocupou, explorou, matou, dizimou, roubou, escravizou, arruinou…acumulando capital indevidamente para chegar a onde chegámos, o mais que virá a seguir, em nome daquilo a que o Miguel chama democracia, sem a adjectivar de burguesa e capitalista onde um voto do esclarecido, muito letrado, inteligente r culto Miguel, tem o mesmo valor do voto de um Zépovinho qualquer que, por outros chefes de outras IURDs como é, por exemplo, a seita onde milita a mulher com quem o Miguel casou, vai sendo aliviado a votar, tendo como formatação o anticomunista primário que o leva a apoiar coligações como a PàF de má memória onde, por certo, o Miguel votou!
    Mas, ó Miguel, há quantas dezenas de anos é que a Rosa escreveu: Socialismo ou barbárie?!?!?!
    E o que é que o Miguel e tantos outros democratas como o Miguel, têm a fizer sobre esta conclusão da Rosa??… socialismo sim, mas em liberdade, e de abundância, nada de à cubana, ou à chinesa, o tal de “a Europa está connosco”, ou da dita social democracia, como pregava o maior charlatão da política lusa em 1974 e 1975, mas que o povo nas ruas viria a impor um outro SOCIALISMO, que ficou plasmado na Constituição da República, a mesma CR que foi elaborada por deputados eleitos numa votação participada em mais de 92% dos eleitores com direito a votar, e que viria a ter apenas os votos contra dos 15 deputados do CDS, o partido onde milita a mulher do Miguel.
    E mesmo este SOCIALISMO, viria a ser posto na gaveta, pelo mesmo referido charlatão, para se manter no poder e perto do pote, e, admito, com a aprovação do Miguel, até porque reconhece ao dito cujo, o único “grande” português mundialmente conhecido e reconhecido, só igualado agora pelo Guterres, ambos, o charlatão e o seu aluno, grandes amigos e correligionários políticos do Miguel.
    É a vida, ó Miguel! Mas como acredita em deus, ao que parece, alimenta a esperança de que, pela confissão, o contador fica a zeros e, se morrer, vai para o céu!
    É a vida, ó Zépovinho! Vais na cantiga dos pafistas e pafiosos e depois és lixado com um “F” maiúsculo
    Já lá dizia/cantava o saudoso Zeca: Quando um fascista conspira na rua, o que faz falta é dar poder à malta!…
    Mas o Zeca viveu sempre com o cu virado para o poder, ao contrário do Miguel e de tantos Migueis que por aqui e aí vem formatando as consciências com os seus doutos escritos e ditos!!!…

    • Estes comentários são muito duros e acho bastante injustos… é claro que a situação actual do mundo muito se deve a governos que não cumpriram o seu papel de arbítrio no mundo económico, e que fomos levados pelos bancos, a finança, e os espertinhos que souberam navegar por conta própria.
      Mas este olhar sobre o mundo actual e sobre o papel da internet e das redes sociais, é muito justo, e partilho da angustia e do pessimismo que Miguel Sousa Tavares deixou bem claro neste muito bom texto.

      • Claro, e a vida continue com estas boas vontades como as do Miguel, e estes desabafos acalentar os egos quer do Miguel quer dos seus seguidores e apoiantes magoados! Mas enquanto o Miguel escreveu estas lamúrias, quantas crianças morreram de fome? E quantos milhões se investiram nas bolsas? E quantos etc., etc….
        Mas soluções, para travar a degradação social que se acentua a cada momento, onde estão propostas?

    • Grande estilo, caro anticapitalista!. O Miguel e outros fazem parte do status quo e dão-se bem com ele. Parece que não saiu ao pai. Apesar de tudo o pai era muito menos acomodado. Penso eu de que…:). Que a Teresinha é da IURD é uma grande novidade. Ele sempre teve uma queda para as “cristãs”, como foi o caso da Laurinda Alves. Enfim, o Freud deve ter explicação para a coisa…:)

  4. Os artigos do MST sempre se distinguiram pela sua elecuencia
    pela sua articulação nem sempre pelo seu saber !!! Chamar ao Michel Temer
    De judas só para quem nada sabia da realidade brasileira !!! O que era pior o judas do Temer segundo a opinião do MST ou o ladrao do PT e companhia ltd
    Democracia e roubar o povo e delapidar toda uma nação ??? Não sabia !!!

  5. De uma estupidez atroz chegar à conclusão que é tudo culpa do Facebook ,do correio da manhã. ..um jornal,ou de um programa de televisão.

  6. Para que quereria o MST mudar efetivamente algo? Paleio, opiniões, livros (excelentes), textos bem pagos, conta bancária gorda certamente, vida boa. O MST é um opinador-mor, que nunca passará da palavra à ação, até porque isso poder-lhe-ia sair caro, muito caro. Em vez de só opinar, poderia fundar um partido político ou um movimento cívico, já que a situação atual é assim tão grave (e é mesmo) e ATIVAMENTE agir em prol da comunidade. Mas o problema é que todos os que aqui opinam sofrem da mesma doença, pecam por ter a mesma atitude e por isso mesmo nada vai mudar. Ação é palavra vã. Ora, digam-me lá por exemplo, qual de vocês se despediu sem ter garantido novo emprego, por não concordar com as políticas capitalistas do empregador? Ou quantos de vós já fundaram um movimento cívico focado em ajudar a resolver um problema qualquer da nossa sociedade? Ou quantos de vós – por opção – decidiram viver com menos para poder ajudar os mais desfavorecidos? Ou quantos de vós já escreveram cartas a municípios dizendo-lhes para tomar conta dos pedintes, ajudando-os a ter uma vida mais digna? Já calculava. Afinal, são como o Miguel Sousa Tavares.

  7. Eu sempre li MST! Li e coleccionei todas as revistas Grande reportagem dirigidas por MST! Também li e tenho quase todos os romances do MST! Sempre me deu prazer ler e concordar com muito do que MST articulava e sentenciava. Por estar muito bem informado, cada vez me dá mais gozo discordar de MST e de ver nitidamente como generaliza e defende os seus interesses particulares! E é pena… Pois um homem que dirigiu uma revista de grande qualidade, na qual, concorde-se ou não com o estilo, atacava na altura à esquerda e à direita; um homem filho de um Grande Democrata e de uma Grande Escritora Democrata, esteja cada vez mais submisso de interesses que, embora dominem ainda, estão a ser ultrapassados pelos Ventos da História! Se esses “ventos” são de feição, creio que não mas, como diz o Povo: “Quem semeia ventos, colhe tempestades”! A mim resta-me lamentar: os tempos que se avizinham e as oportunidades perdidas de quem, como MST avisaram a malta mas defendendo o status quo. Fez mal e não aprendeu nada com a História.

  8. Eu defino-o como um palhaço (rico) inteligente, astuto, oportunista, bom “atirador”, e muito bem posicionado socialmente.
    Tem tanto de atrevido como de cobarde, é um xico-esperto moderno que investe na imagem opinativa.
    Haverá sempre muitos necessitam dele, e o compram…
    São estes oportunistas que deturpam a realidade e me metem nojo.

  9. Li no comboio. Mordi os labios, parei de respirar, tudo para salvaguardar-me de juízos alheios. Já tanto foi dito…Muito bem escrito, como nos habituou.Adoro-lhe a alma. Teresa

  10. Fico podre de raiva quando leio os descalabros de muita gente que se diz irudita e, que ao fim e ao cabo só quer mostrar que é melhor do que os outros. Poxa! Já não há liberdade para se escrever o que vem à mente das pessoas? Eu, pessoalmente, acho o Miguel Sousa Tavares uma pessoa bem informada. Ele é uma barra a escrever, um corajoso que diz muitas verdades. Forças amigo e não desista.

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.