França fez “acordo secreto” com Comissão da UE para não cumprir metas do défice

(In Expresso Diário, 02/11/2016)

holande

A revelação deste “contrato secreto” é confirmada pelo próprio presidente francês, François Hollande, no livro “Um presidente não deveria dizer isso” (661 páginas, edições Stock) e não foi desmentida. Desde que Hollande foi eleito, em 2012, as autoridades francesas apresentaram sempre previsões de défices intencionalmente falsas, com a aprovação da Comissão presidida por Durão Barroso e pela seguinte, por Jean Claude Juncker. Desse modo, a França escapou sempre a sanções por défice excessivo. Um livro explosivo.


A poucos meses das eleições presidenciais, o livro, com o título original “Un président ne devrait pas dire ça…”, da autoria de dois jornalistas de investigação do vespertino le Monde, Gérard Davet e Fabrice Lhomme, é já considerado “um suicídio político” por muitos analistas e por diversos dirigentes dos socialistas franceses, incluindo o próprio primeiro-ministro, Manuel Valls.

O chefe de Estado não desmentiu as revelações, nem sequer as mais incómodas no domínio da política interna – revela dados e críticas inacreditáveis sobre ministros, camaradas socialistas ou sobre o funcionamento da Justiça e outros assuntos – ao ponto de o seu próprio primeiro-ministro, Manuel Valls, falar em “vergonha e cólera” dos militantes socialistas. A publicação do livro – fruto de cinco anos de investigação e 61 entrevistas e mais de 100 horas de gravações de conversas com Hollande – provocou alvoroço nos socialistas franceses, ameaçados de uma derrocada histórica nas presidenciais da próxima primavera e nas eleições legislativas que se seguirão.

“Uma mentira aceite por todas as partes”

Mas também pode vir a provocar graves problemas entre os países da União Europeia porque, afiançam os autores, a promessa de Hollande de reduzir o défice francês a três por cento do PIB (cumprir chamada regra de ouro europeia) foi “uma mentira pura e simples, aceite por todas as partes”.

“Podemos escrever aqui que, durante todo o quinquénio, as autoridades francesas apresentaram com efeito previsões do défice intencionalmente falsas, e isso com a aprovação das próprias autoridades europeias”, escrevem os dois jornalistas. Desde 2013 que foi assim e o próprio presidente confessa: “Toda a gente sabia que não iríamos cumprir esse objetivo desde o princípio”. “Eles (na Comissão) disseram-nos: o que vos pedimos é de apontar para três por cento e o que vos concederemos é uma certa bondade sobre o ritmo da vossa trajetória”, acrescenta François Hollande.


“A verdade era que estávamos com um défice mais elevado e eles sabiam que não atingiríamos os três por cento! Mas disseram: nós preferimos que vocês apontem para três por cento porque desse modo podemos fazer frente a outros países”


As revelações, neste ponto do défice, são estonteantes. “…em 2014 … estávamos na véspera de eleições europeias, como a Comissão é fraca – ‘à imagem do seu presidente José Manuel Durão Barroso’, escrevem os autores – , pedimos mais um adiamento”, acrescenta Hollande. Ganhou a aposta porque, pouco tempo depois, foi anunciado que, em troca de promessas de reformas estruturais, Paris conseguiu o prazo de 2015 para atingir a meta dos três por cento de défice.

O comentário de Hollande sobre esta negociação é claro: “Com esta Comissão atingimos o máximo do que poderíamos esperar nessa época: um prazo de dois anos e uma certa benevolência sobre os números que tínhamos apresentado”. A mentira era uma evidência e François Hollande sublinha-a no livro, (‘com um pequeno sorriso’, escrevem os jornalistas): “Porque a verdade era que estávamos com um défice mais elevado e eles sabiam que não atingiríamos os três por cento em 2015! Mas eles disseram: nós preferimos que vocês apontem para três por cento porque desse modo podemos fazer frente a outros países (…) não vos atacaremos”.

O “contrato secreto”

Espantosa confissão, escrevem os dois jornalistas: “Com que então, a Comissão europeia pediu a Hollande de se comprometer com metas com as quais ela sabia, antecipadamente, que ele não as cumpriria, e isso com o objetivo de salvar as aparências em relação a outros Estados membros da União, suscetíveis, pelo seu lado, de pedirem eles também derrogações idênticas?”. Não foi bondade, foi condescendência….


“Fazemos um contrato secreto, afixamos três por cento, mas vocês sabem muito bem que não os atingiremos – disseram-nos que sim”.


A situação fica ainda mais clara quando é François Hollande que fala: “ (O discurso da Comissão) foi de dizer: no período em que estamos pedimos-vos para apontarem três por cento de modo a que não venham outros países querer fazer o mesmo e perturbar a zona euro”. “Portanto, acrescenta Hollande, dissemos: fazemos um contrato secreto, afixamos três por cento, mas vocês sabem muito bem que não os atingiremos – disseram-nos que sim”.

Sobre com quem a França negociou diretamente este surpreendente acordo secreto, no fim da era Durão Barroso, François Hollande é pouco loquaz, mas diz: “Barroso estava informado e outros membros da Comissão também”. Hollande chega a sair com esta estupefacta afirmação: “Como esta Comissão estava em função até novembro, mesmo se o novo presidente vai ser escolhido no mês de junho, não se negocia com uma Comissão fantoche, ou fantasma, ou virtual”.

No livro, François Hollande afirma que a chanceler alemã, Angela Merkel, estava por trás de Barroso e dizia-lhe, segundo o presidente francês: “Atenção, a França não está na linha, não se pode deixá-la fazer o que quer”. “Mas eu também estava por trás de Barroso!”, acrescenta Hollande.

Depois, com o novo presidente da Comissão, Jean Claude Juncker, tudo teria decorrido da mesma forma, sempre de forma favorável à França. Na altura, explica Hollande, seguiu a seguinte estratégia: “Sou a favor de fazer algumas correções que lhe permitirão dizer (a Juncker) : ‘este orçamento não está em conformidade com as regras, mas podemos considerar que a França fez esforços suficientes”.

O privilégio dos grandes países

Sancionar a França é complicado… e Paris voltou a obter um novo adiamento, o terceiro consecutivo, sobre a meta do défice – “até 2017”, lê-se no livro. A certa altura, os jornalistas comentam: “você faz o que quer com a Comissão”. Hollande responde, de forma espantosa: “É o privilégio dos grandes países (…) nós dizemos, nós somos a França, nós protegemos-vos, temos umas forças armadas, uma força de dissuasão, uma diplomacia (…) eles, os europeus, eles sabem que precisam de nós e portanto isso paga-se, há um preço, que deve ser pago, ao poder político, económico, militar”.


O livro é o resultado de cinco anos de investigação e de entrevistas. Antes de ser publicado, François Hollande pediu para o ler e eventualmente corrigir algumas das suas declarações.


O livro é o resultado de cinco anos de investigação e de entrevistas. Antes de ser publicado, François Hollande pediu para o ler e eventualmente corrigir algumas das suas declarações. Os jornalistas recusaram, porque o acordo inicial não previa essa possibilidade. Até agora, François Hollande não desmentiu nem uma das suas declarações, apenas disse que algumas delas estão a ser citadas “fora do contexto”. Mas é uma bomba em França, e sê-lo-á certamente também na União Europeia, porque, na realidade, “um presidente não deveria dizer isso”.

7 pensamentos sobre “França fez “acordo secreto” com Comissão da UE para não cumprir metas do défice

  1. “O presidente não deveria dizer isso”… pois todos dizem isso, mas eu acho que fez bem em dizê-lo… não sei se foi da parte dele intencional ou se foi sem se dar conta que deixou escapar tantas coisas, tantas revelações, até parece que foi por desabafo que “esvaziou o saco”. Nem me admirava tanto se assim fosse porque tem sido alvo de tanto “Hollande-basching” de todos os lados, inclusive do seu campo, que não tendo já nada a perder (as sondagens sobre a sua popularidade estão catastróficas!) largou as comportas da sua impaciência, e disse todo o que lhe apeteceu. Quem sabe se não terá sido por vingança contra toda a classe política e mediática!!!
    Por vezes pode ser salutar para o futuro, mas receio que venha a piorar a situação em França e sobretudo na Europa.

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