Os debates Trump-Hillary Clinton

(José Pacheco Pereira, in Sábado, 14/10/2016)

Autor

                Pacheco Pereira

Foram duas noites sem dormir, mas valeu a pena, porque se aprende mais sobre o estado actual da política americana vendo o confronto sem ambiguidades de um populista ignorante, e soez, com um sofisticado produto de Washington. Ambos trazem para a ribalta o pior da vida política americana, que já lá estava e sempre lá esteve, mas que nunca tinha tido a projecção para o topo das eleições presidenciais, envolvendo os dois maiores partidos. Até agora tinha ficado sempre ao nível da política local e estadual, onde personalidades como Trump apareceram ocasionalmente, ascenderam como um foguete e depois caíram fragorosamente, às vezes à bala, num país em que o assassinato político é mais frequente do que se pensa.

Trump é uma personagem execrável, pessoal e politicamente, que é já um perigo público para os EUA e para o mundo. As últimas gravações boçais sobre as mulheres, entre uma exibição do poder de quem acha que porque tem dinheiro pode fazer o que quiser e se comporta como um predador, e a mais total grosseria, na verdade, não surpreenderam ninguém. Mas suscitaram um festival de hipocrisia como há muito tempo não se via na política americana. As televisões americanas, que são púdicas ao ponto de criarem um caso quando se viu um mamilo de uma cantora, passam e repetem ad nauseam as frases grosseiras de Trump na abertura dos noticiários seguidas de comentários jornalísticos e declarações de repúdio moralistas dos republicanos. É, no seu excesso e na sua hipocrisia, política “à Saraiva”, e como eu não gosto do moralismo da fechadura da porta, também me desagrada esse festival de hipocrisia. Trump podia até ser um excelente candidato ao lugar, que não é, e ter feito aquelas declarações ofensivas que qualquer homem sabe que são aliás muito comuns nas conversas entre homens, que são quase por regra muito grosseiros e ofensivos face às mulheres. O que não são é gravadas, nem eles são candidatos presidenciais. Não se justificam, podiam ser citadas sem ser obsessivamente repetidas, e podiam poupar-nos o moralismo.

Ora Trump, um bruto, chega ao debate com Hillary Clinton, queira-se ou não como the real thing, o produto genuíno, e ela como um sumo produto da hipocrisia política, que não se explica sobre os emails, que não reconhece os erros clamorosos da política externa americana na Líbia e na Síria, que anda de braço dado com Wall Street, e que conhece todos os meandros e truques da política do círculo de confiança que frequenta há 30 anos.

Ela é infinitamente mais preparada do que ele, ele mente e calunia, sem se preocupar com provas, distribui caneladas por todo o lado. É muito parecido com as personagens que habitam os comentários na Internet, mas ela é falsa até à medula. Em momentos de crise, é ele que marca todo o terreno à sua volta, e ela não suscita simpatia nem numa pedra da calçada. Ele enfurece-nos a todos com a sua grosseria, mas ela é “mais do mesmo” numa altura em que as pessoas já estão mais que fartas do mesmo. Espero que Clinton ganhe, mas ela merece o Trump. Nós é que não.

Coisas boas e raras
O sucesso da candidatura de Guterres a secretário-geral da ONU pode ter tido muita gente a trabalhar por ela: diplomacia, órgãos de soberania, partidos políticos. Mas foi acima de tudo uma vitória pessoal de António Guterres, que, contra tudo e contra todos, mostrando a capacidade indiscutível para o cargo, impondo-se nas audições, conseguiu transformar as oportunidades contra ele em vantagens. Pouca vezes nas últimas décadas vi um português, um candidato a um lugar internacional, conquistar a pulso uma função que estava destinada a outros, por exclusivo mérito próprio. A geopolítica não estava com ele, mas ele torneou-a com habilidade. Os critérios do politicamente correcto desejavam uma mulher e ele era homem. Um grupo de países e de partidos, o caso da Alemanha e do PPE, eram-lhe hostis. Mas quer o PSD, quer o CDS, não hesitaram nesta matéria em apoiar Guterres, como o fizeram todos os partidos, a Assembleia e o Presidente.

Há duas pessoas que muito critiquei enquanto exerciam funções políticas activas. Uma, foi o general Eanes no processo que levou ao PRD, e continuo a pensar desse processo o mesmo que pensei na altura, que foi uma das últimas tentativas de travar a normalização da democracia representativa, que só verdadeiramente terminou com a vitória de Mário Soares nas “primárias da esquerda” de 1985-86. Mas hoje reconheço ao general Eanes uma dignidade pessoal no modo como procedeu e procede depois de abandonar a Presidência, tornando-se um dos raros exemplos públicos da honorabilidade pessoal e severidade ascética no exercício de altos cargos políticos. Outro foi Guterres, que sempre considerei um mau primeiro-ministro, tendo perdido a última oportunidade de fazer reformas estruturais num período de relativa abundância. Mas Guterres encontrou na sua actuação internacional um caso de excepcional adequação entre as suas qualidades e o exercício das funções que tinha face aos refugiados. “Revelou-se” nessas funções, como antes nunca se tinha “revelado” na política portuguesa. Merece por isso mesmo

4 pensamentos sobre “Os debates Trump-Hillary Clinton

  1. Ciências. Justiça. Arquitectura. Engenharia. Economia & Finanças. Artes.
    Poetas. Verdade. Liberdade. Sabedoria. Filosofia.
    Democracia Directa Liberal Digital.
    Aos Mais Sublimes.
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  2. “…e como eu não gosto do moralismo da fechadura da porta, também me desagrada esse festival de hipocrisia.”

    Pois, carissíssímu pp com barbas de profeta mas que não é profeta, nem Calcas nem augure nem sequer gosta de saber a espreitar pelo buraco da fechadura da porta.
    Não, pela fechadura da porta não. Se fora numa câmara escura da AdR a espreitar pelos CDs com gravações montadas para fins a propósito sobre conversas pessoais de café entre familiares e amigos de Sócrates, isso sim, isso sim!
    Ah!, Eh!, Ih!, Oh!, Uh! Isso sim, isso sim seria um enorme gozo íntimo e limpinho para levar ao engano com ódio o Zé Povinho. E tanto mais com o aliciante de escutar conversas não só privadas como, ainda por cima, obtidas clandestinamente e proibidas.
    Um autentico e sentido gozo de Conde do Porto à Marquês de Sade e gozo de inveja política por ter à mão um enorme pedregulho para lapidar quem se atrevia a mostrar-se um Adamastor face à mesquinha pequenez política da escola cavaquista.
    Espreitar por espreitar não, então, que seja sem “hipocrisia” mas tão só para tirar 3 coelhos 3 da cartola; cavaco, durão e o coelho propriamente dito.

    “…e ela como um sumo produto da hipocrisia política, que não se explica sobre os emails, que não reconhece os erros clamorosos da política externa americana na Líbia e na Síria,”

    Novamente a evocação da “hipocrisia” política a propósito dos dos “erros clamorosos na Líbia e na Síria”. A hipocrisia de Hillary na Líbia e na Síria somente, só mente, visto que no caso do Iraque, origem dessa mesma política de “erros clamorosos” o pp, autor de muitas crónicas políticas, nunca se refere nem, provavelmente, se lembra de uma hipocrisia elevada a potência grossa com a visão apocaliptica de um Iraque semeado de armas de destruição maçiça e, hipocrisia das hipicrisias, pp viu, claramente visto, essas armas no Iraque pelos olhos de bush, asnar, blair e do seu amigo durão.
    Quanto a hipocrisia pp tens os cofres cheios.

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