Como perder a memória num ano

(Miiguel Guedes, in Jornal de Notícias, 05/10/2016)

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Uma lição de democracia parlamentar desabou sobre o país há um ano. A “geringonça” está viva e recomenda-se, podendo brindar a um ano de vida (se considerarmos que há vida no útero), desde que não despeje para os copos o champanhe com que Nuno Melo comemorava a saída em falso da troika.


Cedo de mais. Fez prova de vida contra os arautos da desgraça, calou a tese pateta da ilegitimidade, fez história nunca vivida em 40 anos de democracia e está longe de comemorar apenas o facto de estar viva como se fosse entidade de vidro ou plástico. Não sendo cortina de fumo, também estará longe de ser cortina de ferro. Mas, pelo que as sondagens demonstram, bem podem esquecer a estória do pequeno-almoço e das criancinhas. Um ano depois, o CDS mudou de líder, o PSD ainda se encontra a entoar a marcha fúnebre e a “geringonça” não mudou de peças.

Ninguém esperaria que o primeiro ano de legislatura fosse um mar de rosas e cravos. Nada é eterno (nem irrevogável, sabemos) e a solução governativa será duramente posta à prova. Mas enquanto Cavaco Silva terá de nascer duas vezes para pagar o IMI retido durante 15 anos da sua “Gaivota Azul”, a coligação consegue – num ano – aumentar as pensões, reavaliar o salário mínimo, devolver salários na Função Pública, reduzir ou eliminar a sobretaxa no IRS, atenuar a taxa de desemprego e alargar a tarifa social de energia. Quando Passos Coelho refere que este Governo pretende uma “sociedade mais pobre e mais injusta” na perspectiva de que “quem poupa é mau”, lembramo-nos do ex-primeiro-ministro que quis aplicar 3,5% de sobretaxa de IRS ao salário mínimo. Aquele do mesmo PSD que, anos antes, pretendia taxar património imobiliário e levantar o sigilo bancário. E agora, tudo esconjura. Uma lição. Para Passos Coelho, poupar o que não se tem é aforro e a memória é uma desgraça.

Com fronteiras quase indistintas, a falta de memória é parte do que desgraça a Europa, dividida pela agiotagem, conflitos de interesse e pela superioridade moral financeira. Sem reestruturação da dívida, digamos adeus a uma verdadeira solução global de crescimento económico. Com a hipotética concretização das sanções pela suspensão dos fundos estruturais, descongelemos a reconstrução da União Europeia para a queimar de vez. Como se a retirássemos do gelo para a atirar ao fogo. A tal memória. A “geringonça” tem um ano e, pouco depois, Passos Coelho e Paulo Rangel deambulavam por Bruxelas a clamar pelo chumbo do Orçamento português na Comissão Europeia. Era algo injusto. Já éramos todos mais pobres mas Passos Coelho, voz maviosa em tempo de genuflexório, nunca se queixou.


(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

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