O PSOE e a crise da social-democracia europeia

(Manuel Loff, in Público, 01/10/2016)

loff

               Manuel Loff

 

É o mais antigo partido espanhol e um dos mais antigos da Europa: nasceu em 1879, tornou-se em 1931 o partido mais votado e com mais militantes de Espanha, dirigiu, no governo, a resistência republicana contra o fascismo na Guerra Civil de 1936-39 e foi desfeito pelo exílio e a repressão franquista. Quando em 1979, nos primeiros anos da Transição Democrática, comemorou “100 anos de honradez”, à esquerda costumava lembrar-se-lhes que neles se incluíam 40 de férias – mas a verdade é que o PSOE saiu da ditadura franquista como o referencial político principal para a maioria do mundo do trabalho. Quando Felipe González chegou ao poder em 1982, o PSOE já praticamente nada tinha da memória da resistência antifranquista e era a encarnação de uma sociedade aliviada pelo fracasso do golpe militar de 23 de fevereiro de 1981, cujas elites políticas haviam negociado um processo de transição pós-autoritária sob a ameaça permanente do pronunciamento. González montou, ao longo dos 16 anos seguintes, um modelo de poder que ficou conhecido por felipismo (1982-96), baseado numa gestão económica liberal que em muito (a crueldade social da reconversão industrial, o desemprego de massa: 16% em 1982, 24% em 1994, de novo 20%-26% desde 2010) se parecia ao thatcherismo de que foi contemporâneo. A cultura dopelotazo (de patobravismo), da riqueza fácil feita a coberto de governos centrais e regionais quase todos nas mãos do PSOE, veio acompanhada do crescimento da alta corrupção, da violência policial que, a pretexto da violência homicida da ETA, dificultava perceber diferenças entre a polícia franquista e a da pós-Transição. O PSOE passou meteoricamente da honradezdo seu slogan de 1979 para a impunidade dos partidos habituados à perenidade do poder.

Foi este modelo que o PP de Aznar veio copiar e agravar nos anos 90. Não surpreende ninguém que os maiores escândalos de corrupção envolvam os governos de longa duração do PSOE na Andaluzia (consecutivamente desde 1982) ou do PP em Madrid (desde 1991) e em Valência (1995-2015). E menos admira que sejam justamente os socialistas andaluzes que tenham agora aberto uma guerra dentro do PSOE para impedir que o seu frágil líder, Pedro Sánchez, ouse sequer pensar numa saída à esquerda do impasse político em que a Espanha caiu há nove meses.

Por duas vezes (dezembro e junho passados) os espanhóis retiraram largamente a maioria absoluta ao PP e impediram uma maioria de direita deste com o novo partido liberal-nacionalista, os Ciudadanos. No campo dos que não querem tocar na estrutura de poder herdada da Transição (PP, PSOE e Ciudadanos), todas as soluções são inúteis salvo uma: a do bloco central PP-PSOE. Ou, então, que o PSOE deixe o PP governar sem sequer exigir partilha de poder. Sánchez tem invocado os cinco milhões de desempregados e a corrupção endémica no PP para impedir qualquer uma das duas possibilidades, mas os pragmáticos do seu partido não pensam o mesmo. Para estes, a sobrevivência do PSOE não passa por retirar as lições devidas da sua rapidíssima perda de representatividade: em sete anos, perdeu metade dos seus apoios (de 43%-44% dos votos em 2004 e 2008 para os atuais 22%). Eles, e com razão, acham-se muito mais próximos do PP que da esquerda que conseguiu sintonizar com uma grande parte da deceção e raiva sentida pelos que foram esmagados pela crise. Para eles, um PSOE partido em dois é melhor do que um PSOE que vire à esquerda. E esse é o caminho definitivo para a pasokização daquele que foi o maior partido da Espanha do séc. XX – o único, aliás, que tivera representação suficiente em todas as regiões e nações do conjunto do país, o que lhe permitia (e hoje já não) dizer que assegurava alguma vertebração de um projeto tão complicado e desgastado como o do Estado das Autonomias.

O horror com que um grande número de socialistas espanhóis encara hoje ter que negociar com a frente Unidos Podemos, e a sua completa intransigência na recusa de uma qualquer forma de consulta sobre o futuro dos catalães, diz muito do estado da social-democracia europeia. Por todo o lado, a devastação austeritária que, a pretexto da crise financeira, propicia esta persistente ofensiva contra o Estado Social e consolida uma cultura racista e neoautoritária, está a deixá-la em farrapos. Reduzida aos seus mínimos históricos desde 1945, ela é obrigada a tomar partido: ou colabora na devastação ou opõe-se-lhe. Com exceção de Portugal, e no contexto excecional em que o PS se encontrou há um ano, a regra tem sido a primeira. Os principais governos que dirigem na Europa a imposição do Consenso de Washington incluem social-democratas no seu seio. Com as consequências que se conhecem. O SPD, que desde 2013 partilha pela segunda vez o governo com Merkel, viu reduzida a metade a sua representatividade, valendo hoje tanto quanto o PSOE em Espanha. Os trabalhistas holandeses (PVdA), o partido do mais simbólico dos ministros das Finanças do Eurogrupo, o nosso conhecido sr. Dijsselbloem, podem vir a ter 6%-7% dos votos numa próxima eleição; em 2012 tiveram 25%. O mapa político da Escandinávia, esse, há muito que deixou de ser uma cartografia do que se dizia ser o melhor da social-democracia, com a consolidação de partidos abertamente racistas integrados (salvo na Suécia) em coligações de governo de direita. Em França, Hollande aparece com estimativas de 10% dos votos nas eleições do próximo ano, menos que o principal candidato à sua esquerda e sistematicamente menos de metade do apoio que se atribui aos candidatos da extrema-direita e da direita clássica (Juppé ou Sarkozy). No mais que remoto caso de poder passar a uma 2.ª volta, Hollande perderia contra todos, incluída Marine Le Pen!

A crise do PSOE é um dos casos mais gritantes do momento decisivo por que passa a social-democracia europeia no novo ciclo histórico que a grande crise do capitalismo globalizado abriu. Nos tempos que vivemos, para que serve politicamente a social-democracia? Depois de 60 anos a defender a salvação do capitalismo através da redistribuição da riqueza, há quase 40 que, considerada a sua gestão económica, acha irremediável a reconcentração oligárquica da riqueza e do poder à escala planetária.

Desde há 90 anos que defende o multilateralismo, mas quando governa em Paris ou em Londres participa empenhadamente nas aventuras bélicas do Ocidente no Médio Oriente, no Afeganistão ou em África, na boa velha regra de bombardear primeiro e multilateralizar depois. Filosoficamente liberais e garantistas, socialistas espanhóis, britânicos e alemães geriram políticas antiterroristas feitas de vigilância massiva, guerra suja e violação de direitos humanos dignas de uma qualquer ditadura, enquanto os franceses recuperaram no Estado de Emergência que decretaram há quase um ano uma tradição repressiva que lhes ficara da guerra da Argélia.

Era já tempo de mudar.

10 pensamentos sobre “O PSOE e a crise da social-democracia europeia

  1. A Esquerda da Esquerda sempre quis servir de consciência moral do Centro-Esquerda, fazendo jus à sua designação de Esquerda Radical, no sentido etimológico desta última palavra. O problema desta visão é que ela é confrontada com as experiências governativas passadas dessa Esquerda, que não nos transmitem confiança alguma. O ‘homem novo’ mantinha afinal velhos hábitos, venalidade, violência, e em doses não imaginadas. Será que Loff julga que não temos memória? Ou será que é tão ingénuo ao ponto de acreditar num novo ‘homem novo’? Reconheço que a Social-Democracia vai porventura ter o que merece depois de se ter rendido ao neoliberalismo, mas o que a substituirá poderá ser ainda pior. Se tudo correr pelo melhor, os novos partidos e movimentos render-se-ão rapidamente ao realismo das relações de força internacionais e acabarão a ‘trair a classe operária’, como o Syriza. Um novo pessoal político substituirá a antiga ordem, mas daqui a uns anos voltaremos ao mesmo e será talvez possível recuperar a social-democracia quando a tempestade passar. O mesmo poderá acontecer com algumas forças populistas de Direita que se aproximarão da Democracia Cristã. Mas, se dum lado e do outro, estas novas forças políticas decidirem prosseguir na ‘luta pela hegemonia’, então apertem os cintos. Pouco antes de morrer, Tony Judt resumiu aquele que deveria ser o principal repto dos progressistas: evitar mundos piores. Oxalá saibamos escutá-lo (mas duvido)…

    • Evitar mundos piores… aí,valente! Agarra neste cão,que to ofereço eu! Podíamos ter evitado mundos piores também em 1939-1945 ? Bastava ter comtemporizado com o Adolfo…

      • Cara estátua, Não sei se a percebi, mas a minha visão não é nem minimalista nem derrotada. Limita-se a fazer a comparação entre a experiência histórica da Democracia Liberal, que foi implementada por homens e mulheres que eram tudo menos santos, e a experiência histórica de tudo o resto. Acham realmente que estamos assim tão mal? Esperem e verão. Francamente, não tenho qualquer paciência para puristas morais ao estilo de Manuel Loff que falam do alto da sua ética da convicção, esquecendo a ética da responsabilidade e esquecendo que deveriam pintar a cara de preto pelo apoio que deram a regimes totalitários bem piores que o frágil consenso de que dispomos e que podemos melhorar pouco a pouco e dia a dia…

        • Caro amigo, o óptimo é inimigo do bom. Foi por os Partidos Socialistas contemporizarem com a Direita que se chegou ao ponto em que estamos com todos os extremismos a virem ao de cima. Como o PSOE vai continuar a contemporanizar, não dou muitos anos de vida ao PSOE. Veja-se o caso do PASOK. Mas enfim: a Terra continua a girar no seu eixo de translacção…:)

    • Eis a diferença entre analise da realidades passada/vivida a partir dos seus resultados concretos com dados objectivos (percentagens de representatividade eleitoral, desvios de eleitorados, índices de corrupção, quem governou e quem esteve na oposição, desaparecimento dos partidos ditos socialistas, crescimento da direita nacionalista e, à esquerda já se usa uma expressão cara ao actual PR luso – a “esquerda da esquerda”) e a fraseologia barata da pequena burguesia em crise (porque devorada pelas pomposamente designadas por “políticas do ajustamento” mas que, nas consequências/resultados evidenciam o mais puro capitalismo dos vampiros do saudoso Zeca “eles comem tudo é não deixam nada”) que, em vez de reflectir sobre as reais/verdadeiras origens/razões da crise já sem fim à vista do agonizante capitalismo globalizado e financeirizado, se limita a fazer futurologia, colocar interrogações e citar quem, antes de morrer, sugeria aos progressistas que aceitassem mundos piores.
      Enquanto isto se escreve, quantas crianças morrem de fome e ou subnutrição por segundo?
      Quantos refugiados de guerra?
      Qual a actividade mais rentável/lucrativa da maior economia do planeta?…e com que consequências?…2 guerras mundiais e, mais recentemente, só na Síria e Iraque mais de 300 mil mortos, 1 milhão de feridos graves e 17 milhões de desalojados!!!!!!!…e nem Durão, nem Bush, nem Aznar, nem Blair ainda, sequer, foram indiciados pelos crimes praticados, quanto mais acusados, julgados e condenados!!!!
      Curiosamente, ou não tanto assim, não se faz qualquer referência à existência de Partidos Comunistas! …Espanha, França e Itália…onde estão ps “PCs”?…e quem não se lembra do peso/representatividade que tais partidos tiveram antes de se converterem, pelo canto de sereias do capitalismo, em partidos do luso “arco da governabilidade”?!?!…
      Mal vai o Homem (enquanto único ser vivo com inteligência no planeta Terra) quanfi, a partir do passado, não prepara no presente, o que deve ser o futuro.
      Mas, por mais inovação lexical que usem as forças reaccionárias, a LUTA DE CLASSES foi quem trouxe a humanidade da Barbarie, onde a mãe Natureza, implacavelmente, dizimava os mais frágeis, para a Civilização, em que o capitalismo já leva mais de 400 anos de exploração vampiresca, e como não é eterno, dará, pela mesma LUTA DE CLASSES, lugar à fase que, historicamente, se lhe vai seguir. E, dado o estado de agonia em que se encontra desde 2007, sem solução à vista, sem médicos nem medicina que lhe valha, este monstro em que se transformou o CAPITALISMO actual, cada vez mais se assemelha a um outro “monstro” (porque enorme) que, de tão “inafundável” que era, logo na primeira viagem que iniciou, foi ao fundo: o TITANIC.
      É que, ao que é suposto, um ICEBERG parece estar a desprender-se/soltar-se no país dos yankees com a provável eleição de Trump!
      Veremos!….

Deixar uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.