Que se afunde com a bosta

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/09/2016)

Autor

                                 Daniel Oliveira

É sempre difícil decidir se se escreve e fala sobre livros como o que escreveu José António Saraiva. Porque correspondendo a uma baixeza que deve ser combatida por todos os meios legítimos, atacá-lo é promovê-lo. E promovê-lo é ajudar a vendê-lo e a cumprir o seu único e verdadeiro objetivo. O ataque ao autor torna-se uma espécie de prémio ao autor. Dizer que uma bosta é uma bosta ajuda a vender a bosta. Porque ser bosta é o seu maior valor comercial. Aliás, o lado imoral da obra tem sido promovido pela própria editora e por um ou outro idiota que defende esta nojeira.

Por outro lado, falar do livro é falar de coisas que estão escritas no livro. E falar de coisas que estão escritas no livro é devassar duas vezes a vida das pessoas. Usando como álibi as palavras de outras. Tenho visto isso mesmo, com desgosto, em alguma imprensa. Tentarei, espero que com êxito, não cair nas duas armadilhas neste texto. Mas não acho que seja possível manter o silêncio. Porque o ex-primeiro-ministro nos tirou essa possibilidade, dando àquilo dignidade de acontecimento político (disso tratarei no texto de amanhã). E porque sendo Saraiva jornalista e ex-diretor de dois jornais, este livro é mais um passo no aporcalhamento de uma atividade essencial à democracia. Ficar calado seria uma forma de cumplicidade.

Há no livro uma passagem que me afeta pessoalmente (apesar de nada ter a ver com ela), por se referir a um amigo. Saraiva decidiu partilhar com os leitores um diálogo que terá mantido com Miguel Portas, quando este estava a construir o semanário “Já”. Esse tempo é-me especialmente caro, já que estive, desde o embrião de um excelente jornal que durou pouco, envolvido em todo o processo. Mas o nascimento desse jornal não é, não poderia ser, o tema a que se dedica a quadrilheira com quem algumas pessoas cometeram a imprudência (ou talvez não) de ter conversas pessoais. Saraiva refere um diálogo em que o Miguel teria sublinhado supostas dificuldades que o seu irmão Paulo viria a ter, por causa da sua vida pessoal, em afirmar-se no CDS. Para além da indecência de divulgar um diálogo com esta sensibilidade quando o Miguel não está cá para o desmentir ou confirmar e quando não há qualquer outra testemunha (não é o único caso), José António Saraiva usa alguém que morreu para, por essa via, fazer considerações sobre a vida pessoal de outro. Com a agravante de os dois serem irmãos. Saraiva escondeu-se atrás de um morto para revelar a vida privada do seu irmão. E isso faz dele um traste.

Se descontarmos o grosso do livro, que é o retrato de um homem deslumbrado por conhecer pessoas que ele julga importantes (sentindo-se também ele importante), sobram revelações de tal forma nojentas que quase conseguem atenuar o que Saraiva faz a Miguel e Paulo Portas. Revelações sexuais íntimas de pessoas vivas e falecidas escritas por um homem que parece viver obcecado pela cama alheia. Há coisas cruéis que, se nos são confiadas e se formos cavalheiros, guardamos para nós mesmos. Mas Saraiva não é, isso fica evidente, um cavalheiro. As coisas são de tal forma graves que espero que várias pessoas tenham a coragem e o ânimo de o encher de processos, levando-o à penúria. Mas suspeito que não o farão para evitarem mais tempo de exposição da sua vida íntima. Esta é uma das cobardias deste género de exercício de grotesco voyeurismo: conta com a vontade das pessoas preservarem o que lhes resta da reserva da sua vida privada. Por isso é tão cobarde.

Queira ou não queira (já ouvi dizer que não é), José António Saraiva é jornalista. As conversas que revela (ou que inventa) aconteceram na sua vida profissional. Assim, ao escrever este livro, estava sujeito a esse estatuto. E nele viola de forma grosseira quase todos os pontos do Código Deontológico. Diz o Código Deontológico do Jornalista que “os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso” (ponto 1). Não acontece em vários supostos factos que Saraiva divulga. Que o jornalista deve “combater o sensacionalismo” (ponto 2). Saraiva não faz outra coisa senão promovê-lo – mas isso já estamos habituados em muita imprensa. Que “o jornalista deve proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja” (ponto 4). Grande parte do livro resulta da divulgação de conversas pessoais que os intervenientes não sabiam que iriam ser divulgadas. Que o jornalista “deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor” (ponto 7). É a isso que Saraiva se dedica em vários momentos. Que “o jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende” (ponto 9). O “interesse público” com que Saraiva justifica a divulgação de pormenores da vida sexual e privada de figuras públicas não tem atendimento possível e não me recordo de nenhum caso em que esteja em causa qualquer tipo de contradição gritante entre a vida privada e posições públicas expressas. Que “o jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas” (também ponto 9). Não foi evidentemente o caso, já que as declarações foram recolhidas à revelia dos próprios.

Apesar do “Correio da Manhã” e do jornalismo sensacionalista que ganha espaço, mesmo nos jornais sérios, não me recordo de um jornalista ter violado, de forma tão gritante, tantos pontos do Código Deontológico. Os jornalistas têm carteira profissional. Partindo do princípio que não se trata apenas de um pedaço de plástico, a sua posse tem de corresponder à observância mínima das regras e normas existentes. Não vejo como pode José António Saraiva manter a sua carteira profissional depois de ter usado dezenas de conversas com figuras públicas para divulgar a sua vida mais íntima sem qualquer justificação atendível pelo Código Deontológico da sua profissão. Talvez por estar reformado não encontro o seu nome na lista pública da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Se era jornalista quando teve estas conversas, as regras mantêm-se intactas. Se não era, como raio pode ter as responsabilidades que teve? Quando um jornalista faz o que Saraiva fez cria problemas a todos os jornalistas, no seu trabalho e até nas suas relações sociais. Quem terá qualquer tipo de conversa com um jornalista se suspeita que até os pormenores mais íntimos da sua vida podem ser transformados em letra de forma?

Os jornalistas não são quadrilheiras. Os jornalistas não podem, de forma gratuita, devassar a vida privada de outras pessoas, causando-lhes um sofrimento desnecessário, num exercício de voyeurismo cruel. José António Saraiva sabe disto. Ele próprio explicou à imprensa que nem aos próximos mostrou o livro antes de publicar (nem à sua mulher), que o teriam impedido de publicar a coisa. Imagino que no fim inglório da sua vida profissional, Saraiva sentiu um irreprimível desejo de voltar à tona. Decidiu fazê-lo espalhando bosta à sua volta. Espero que se afunde com ela.


(Nota: Escreverei amanhã sobre a participação de Pedro Passos Coelho no lançamento deste livro.)

5 pensamentos sobre “Que se afunde com a bosta

  1. saraiva não é um jornalista, é um canalha da pior espécie, se fosse jornalista saberia decerto que há confidências que temos que levar connosco para a cova , um jornalista tem que ter HONRA

  2. Caro

    Para quem acha que atacar é promover não está nada mal a sua promoção. Poderia sempre ter escolhido outro tema mas não, foi este, que diz, não pretender promover.

    Cump.

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