Um juiz baralhado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 12/09/2016)

Autor

                            Daniel Oliveira

Fosse Carlos Alexandre apenas Carlos Alexandre e a entrevista que deu à SIC não teria qualquer interesse. Estaríamos apenas perante um autoelogio de 40 minutos feito por um homem que diz que não pode concorrer a lugares superiores porque não tem tempo para ir a seminários ou escrever livros e que se define com um termo cuja autoria atribui a terceiros: “o saloio de Mação”.

Toda a entrevista é o retrato de um homem culturalmente complexado e que revela, pelo menos por o que diz, graves problemas de socialização. Um retrato que faz questão de pintar com tintas fortes: almoça sozinho, gaba-se de não ter amigos, é um escravo do trabalho sem férias nem alegrias.

O autorretrato é vulgar mas popular no imaginário da miséria nacional. Trabalha ao fim de semana para compor o magro orçamento (dir-se-ia que ganha o salário mínimo e não o ordenado bem composto de um juiz) que Sócrates cortou, como fez questão de recordar, num gesto tonto em que quase se incrimina. Almoça em casa, com a sua mulher apenas, “refeiçoando” de forma “espartana” (nem o almocinho escapa ao estilo salazarento). Não tem amigos, só o trabalho. Não tem vícios, só a justiça. Não tem uma função, tem uma missão. Até queria ser padre.

Sabe-se escutado, afirma que o é, mas diz que não o vai dizer, para depois o garantir, porque não tem como o provar. E tudo isto vem da boca de um dos juízes mais poderosos do País. Afirma, sem perceber a gravidade do que diz, que podia ser perigoso. Mas não é, porque não usa o seu poder para o mal.

Esta entrevista não devia ter sido dada. Muito menos a uma semana de ser deduzida a acusação contra o ex-primeiro-ministro num processo conduzido por este mesmo juiz. Talvez seja sinal de que falta força ao processo que se tenha dedicado a este número mediático. Ou talvez seja apenas vaidade. Mas esta entrevista foi importante para percebermos a quem damos tanto poder (muito mais do que devíamos dar a qualquer homem, bom ou mau). E deixou-me muitíssimo preocupado.

Carlos Alexandre não nos deixou apenas a sua visão do que deve ser a justiça, defendendo a delação remunerada e tendo como modelo o processo “Lava Jato”. Achou por bem, por duas vezes, a propósito de nada e sem que tal lhe fosse perguntado, dizer que não tem contas em nome de amigos. A referência à acusação não formalizada a Sócrates é óbvia e intencional. E vem da boca do juiz responsável pelo caso. Repito: o juiz, não o procurador, o que já seria grave. Um juiz que acha por bem fazer indiretas e insinuações sobre o teor de uma acusação que ainda nem sequer existe sobre um caso pelo qual é responsável deixa clara a sua falta de equidistância e torna-se um problema para a justiça.

Pode o juiz Carlos Alexandre ser o mais espartano dos homens, imbuído de um enorme sentido de missão que quase se mistura com o sacerdócio. Pode ser tão sério que nem amigos tem, tão trabalhador que nem férias faz. Pode até ser o mais popular dos juízes e todos os que o que o critiquem suspeitos de amizade por corruptos. Pode ser tudo o que diz de si mesmo e ainda mais o que dele dizem na rua. A sua autoestima e popularidade são irrelevantes. Porque tem de estar muito baralhado sobre o seu papel para achar boa ideia fazer piadolas na televisão sobre um arguido de um processo que está nas suas mãos. A falta de neutralidade que voluntariamente expressou torna-o inadequado para a função que o Estado lhe confiou.

12 pensamentos sobre “Um juiz baralhado

  1. Pois é, Daniel. Dizes e bem quem é o “saloio de Maçãs” mas o que tu não dizes mas a gente sabe é que, também tu, deste o teu saber político de saltitão partidário em contributo para meter Sócrates na gaiola e fazer que a “justiça”, utilizada para fazer injustiça suja, tenha já destruído o político mais capaz da história da Democracia portuguesa e querem à viva força aniquilar total e brutalmente a possibilidade de poder existir e viver dignamente.
    Neste país medíocre admirador de salazares, cavacos e alexandres de palmo e meio nunca tolerará alguém com estatura Homem acima de homem vulgar.
    São pessoas que se têm como inigualáveis em saber e tacticas políticas como o Daniel, Pacheco, Clarinha, MST, VPV, do eixo e governos sombra e tantos “professores universitários” que pululam pelas tv que menos suportam alguém mais capaz em tudo e, que portanto, não lhes vai à mão perguntar o que deve fazer.
    Sócrates? Mas quem é Socrates? Que ensaios já ele escreveu?, perguntam, E depois descobrem que o Homem apenas tem o curso do ISEL e teve a lata de querer ser licenciado.
    E, quase imediatamente lhes sobe à cabeça a ideia de inveja e vingança fundamentalista; linchamento.

    • Tem todos a vossa razão. Mas eu só queria que o Sr. Sócrates prova-se de onde lhe vem os cabritos que vende, quando nem cabras tem. Não preciso das leis feitas pelos grandes letrados. Já os meus avós diziam! Cá se fazem cá se pagam.

      • Tal qual como a Inquisição, a qual fervorosamente deve defender e ter saudades, condena o que ainda não foi acusado e nada aprovado. Que saudades da Pide deve ter.

  2. Sim, sim, Daniel Oliveira… o Juiz mostrou-se baralhadíssimo, ao ponto de revelar pormenores dos dossiers abrasadores causando estupefacta alegria à rapaziada causídica

  3. Agora a sério: Não gostei foi o juiz declarar publicamente que era um playboy empedernido e que só gostava de mulherio (não gosto de concorrência nessa área) e que a mulher nem cozinhar sabia…um homem deve gabar sempre a sua MULHER…do tipo “o que se passa no Mogadouro fica no Mogadouro” e aí o juiz falhou redondamente… e na idade dele que já pode ser avô, andar na putaria é muito mau, só porque é juiz…enfim, um saloio gabarolas – eu se fosse a mulher à noite dava-lhe com o rolo Duarte, desculpem, com o rolo da massa

  4. E tens razão Daniel Oliveira, para que raio o supermagistrado foi ele gabar-se que à Quinta-feira punha-se logo a andar para jogar golfe na Quinta da Marinha e feriados logo a correr para Baden Baden… e que nos Invernos ia a Aspen, oVerão todo nas Maurícias e o trabalhinho que procrastine… todos sabemos que os juízes fazem isso, logo, para que raio o homem foi se gabar.. só para dizer que tem amigos poderosos que lhe oferecem aquém e além mar… e outros festins? Assim só causa a desconfiança nos TRIBUNAIS.

  5. E depois, Daniel Oliveira, se toda a gente sabe que o homem gosta lá do Oráculo da terrinha e até tem inclinação para celebrar homilias, portanto, estavas à espera do quê? Que o homem mentisse? Que dissesse que era apoiante de Belzebu e Carbonário Ateu ou Cabralista… e laico como o pai fundador da nobre nação portuguesa de nome Mário Soares? Até eu fique tão espantado com tanta fé no homem… Camilo Castelo Branco dizia que Portugal precisava de muita fé… e petróleo. Portanto, só falta o petróleo.

  6. É verdade Daniel Oliveira: estávamos habituados a ver os juízes darem porrada na arraia- miúda e de repente aparece um justiceiro que tanto bate em branco como em negro é de espantar, claro.
    E já é o segundo juiz a fazer comoção de lágrimas no público português… recordas-te do outro, que instruiu processo aos indecentes pedófilos? Audaz homem porque havia lá peixe graúdo.
    Se calhar o nosso mal é pensarmos que trabalhar é sinónimo de lavrador, balconista, carpinteiro, enfermeiro, professor e outros comparados. Agora um juíz a trabalhar, um político a trabalhar, um governante a trabalhar… não, isso não, não estamos habituados e causa estranheza até aos jornalistas do Expresso.

    • Manuel Demontanelas. Fazer critica à critica, tudo bem. A critica e, a critica à critica revelam ambas, muita falta de ètica. E assim vai Portugal, todos a mostrar-se que, são melhores do que os outros.

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  8. Grande Daniel, Grande artigo.Na minha aldeia perto de Vila Real, morava um Sr. Juiz que nem à Igreja ia, muito menos ao café.. Esse Sr. Juiz desconhecido da grande maioria dos Portugueses, com exceção dos moradores da aldeia e da minha cidade Vila Real, acabou como juiz do Supremo Tribunal de Justiça. Pode ter cometido os seus erros, é humano mas tinha a maior virtude que um Sr. Juiz tem de ter: passar despercebido, princípio que vou respeitar nesta publicação omitindo o seu nome e o nome da aldeia onde sempre residiu.

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