O drama do fim de férias

.(José Pacheco Pereira, in Sábado, 02/09/2016)

Autor

                     Pacheco Pereira

Poucos dias podem ser mais infelizes do que os últimos dias de Agosto. Ainda são Agosto, ou seja, para a maioria das pessoas, são férias, e já são os últimos, ou seja, anunciam o trabalho. Como o ciclo de vida das pessoas é cada vez mais feito pelos media, ou melhor, por uma combinação entre o que dá na televisão, o que aparece e se discute nas “redes sociais” (que acaba também por ir parar à televisão), e em muito menor grau, o que aparece nos jornais, principalmente no Correio da Manhã (e que acaba também por ir parar à televisão), há uma simbiose profunda entre a “produção de estados de alma” e o consumo desses mesmos “estados de alma”.

A agenda da silly season
A agenda que molda estes últimos dias de Verão ajuda à depressão. Ela é uma forma de síndroma de abstinência, é a difícil saída dos media de uma coisa de que particularmente gostam, a silly season. Como o futebol pára, não há muita política e a que há é demasiado ritual para ter interesse, está toda a gente a banhos, as redacções entregues ao pessoal menor – em bom rigor se fosse ao “maior” era a mesma coisa –, resta a agenda de Agosto que é a mais estereotipada de todas as agendas dos media: incêndios, saída das cidades para férias, retorno do fim das férias, operações da GNR, prevenções da PSP quanto aos roubos nas casas vazias, vinda dos emigrantes, ida dos emigrantes, e muita praia sob todos os pretextos.

A construção da silly season
A partir daqui constrói-se a silly season, que pode ser mais ou menos animada. A silly season é feita por uma combinação de “casos”, crimes, acidentes, catástrofes, para o exercício de uma coisa que a televisão faz muito bem, a masturbação da dor. Este ano tivemos os incêndios, o terramoto em Itália, o espancamento de um jovem por dois irmãos iraquianos, as imagens do rapazinho sírio, e mais uns crimes avulsos, mais ou menos espectaculares, com destaque para o assassinato de umas jovens brasileiras, com o detalhe “gore” de terem sido deitadas numa fossa. O pano de fundo, o cenário, são as “férias dos famosos”, a mais inútil manifestação da silly season, que funciona como a imagem inicial do ecrã dos telemóveis.

São tudo notícias?
São tudo notícias? Seriam tudo notícias se tivessem sido dadas como notícias e não como entretenimento. Num caso, a história e as imagens que correram o mundo do rapaz sírio, que tudo indica ser mais uma das múltiplas manipulações oriundas da Síria, sobre as quais não há qualquer verificação independente, mas que, quando aparecem, ninguém quer saber e é só esperar até à próxima.

São tudo notícias? Seriam. Ao serem dadas como entretenimento, com os longos directos inúteis, com a exploração de declarações mais ou menos exibicionistas do género “eu não vi , mas foi o que me disseram”, com o tratamento das imagens, a mais “poderosa” manipulação que há, os media são nestes meses a maior contribuição para o embrutecimento colectivo. Os media e o Sol a pique. E como já há bastante, bem se podia evitar esta dose. Infelizmente, como quase sempre acontece, ela é oferecida também porque é desejada, numa simbiose de produto e consumo, que inclui uma dose considerável de dopagem, de habituação e de “agarramento”.

Embrutecer
Quando se passa em Agosto por uma festa popular, podemos encontrar mil e uma coisas boas, mas há também uma dose considerável de boçalidade, de rudeza, de má educação, de péssimos costumes de egoísmo, pura procura de auto-satisfação imediata, de violência à flor da pele, de embriaguez, que começa nos adolescentes e continua nos adultos que já os fizeram à sua imagem e semelhança. Assim, como se dizia antes, não se anda para a frente.

E se há uma coisa para que não tenho paciência é para a desculpa de que “lá está o intelectual que não participa nos prazeres simples do povo”. Tretas! Conheço um número considerável de intelectuais que acha tudo isto muito bem, que justifica tudo o que se passa e teoriza o bastante para legitimar tudo o que acontece. Não sou dessa escola, e sempre achei que o pior que se pode fazer ao “povo” é puxá-lo para baixo em vez de o tratar com a igualdade de o desejar mais “acima”, que é aliás o que qualquer pessoa decente, seja qual for a sua educação, modo de vida e profissão, deseja para si e para os seus.

O que se passa neste infeliz País é que há demasiadas coisas a puxar para “baixo” ou a travar o caminho para cima. E como se passa sempre nestes casos não faltam pessoas, muitas por interesse ou elitismo – isso sim verdadeiro elitismo –, a ajudar a manter o estado de coisas.

Aqui, como em muitas outras matérias, há também uma “luta de classes” latente, que encontra um “ópio” (e uso deliberadamente uma das expressões mais viciadas que há) neste embrutecimento colectivo. Com uma classe média a afundar-se na proletarização, dificilmente seria de outra maneira. Mas não há problema, vem aí o futebol…

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