Bons costumes

(Daniel Oliveira, in Expresso, 27/08/2016)

Autor

                       Daniel Oliveira

Com aplauso do governo de Paris, várias cidades balneares francesas proibiram a utilização de burkinis na praia, medida entretanto suspensa, em algumas localidades, pela mais alta instância da justiça administrativa francesa. Apesar do nome, os burquínis tampam o corpo e o cabelo, deixando o rosto visível. Vi-os quando estive em praias turcas. Lá, ninguém incomodou a mulher que, ao meu lado, usava biquíni. Gostava que em França acontecesse o mesmo, no sentido inverso. “O acesso à praia será banido a todos os que não tiverem roupa de banho adequada que respeite os bons costumes e o secularismo”, lê-se no comunicado do presidente da Câmara de Cannes.

Dantes o Estado achava que as mulheres sérias se deviam tapar, hoje acha que se devem destapar. Sempre em nome dos “bons costumes”. A ministra da igualdade francesa diz que tapar o corpo é uma forma de controlo sobre a mulher. E o Estado decretar que ela tem de o destapar é o quê?

A questão não é se gosto do que representa o burquíni, porque não gosto. É onde acaba o direito de o Estado determinar uma coisa tão pessoal como a roupa que cada individuo usa, seja qual for a sua religião. A defesa da liberdade das mulheres não determina que estas prefiram o biquíni ao burquíni. Determina que elas se vistam e se dispam como e quando querem, sem receberem ordens de maridos ou de polícias. As dos segundos não são mais libertadoras do que as dos primeiros.

Quando polícias obrigam uma mulher a despir-se na praia e os veraneantes que assistem aplaudem e lhe gritam “vai para casa” a França tem de olhar com medo para o caminho perigoso que está a trilhar. Quando as vendas de burquínis aumentam depois desta proibição deve compreender a inutilidade da medida. Viver em sociedade é difícil. Não podemos transformar cada gesto do outro numa insuportável ofensa para os nossos valores. Mesmo quando os valores dos outros nos incomodam. Sim, para grande parte dos muçulmanos, como para muitos católicos e para a maioria dos hindus ou dos judeus ortodoxos, as mulheres mantêm uma posição subalterna na sociedade e até acontece muitas delas defenderem a sua própria subordinação. Ao contrário dos que querem rasgar os burquínis em nome de um feminismo onde nunca militaram, sei que a autodeterminação das mulheres se faz garantindo-lhes instrumentos para exercerem a sua liberdade: trabalho, independência económica, planeamento familiar, direito a decidir sobre a sua gravidez e proteção judicial contra o abuso e a discriminação. O Estado obrigar uma mulher a vestir-se ou a despir-se em nome dos “bons costumes” é o oposto da autodeterminação. Até porque pode haver mulheres que querem mesmo usar o burquíni.

Não podemos ignorar a situação em França: isto coincide com uma crescente tentação totalitária, que se manifesta num estado de emergência eterno, na limitação ao direito de manifestação e na aprovação de leis fundamentais, como a laboral, por decreto. E coincide, como tem sido deixado claro por todos, com o sentimento de medo e revolta depois do Bataclan e de Nice. Na realidade, não se quer destapar os corpos das muçulmanas, quer-se tornar invisível a insuportável presença dos muçulmanos. Podemos continuar entretidos a discutir indumentária feminina. Mas todos sabemos que o debate é outro. E que à sua sombra se vai legitimando a intolerância e o autoritarismo. Sempre em nome da segurança e dos bons costumes, claro.

9 pensamentos sobre “Bons costumes

  1. Não posso deixar de estar de acordo consigo caro Daniel, mas o que se passa em França depois de tantos atentados perpetrados por “Franceses” com nomes que têm todos origem oriental ou magrebina, temos de compreender o cansaço e a exasperação da maioria do povo francês perante a visibilidade crescente cada vez mais numerosa que leva a pensar que o islamismo, no que tem de mais abjecto, está ganhando terreno passo a passo, devagarinho, mas teimosamente. Claro que não gosto desta agudização do problema e do clíma que se está instalando no meu pais, e não gosto de ver o meu pais “gozado” um pouco por todo o lado, por deixar transparecer uma falta de calma e um nervosismo que se reflecte nas tomadas de posição antinómicas até dentro dos próprios partidos. E temos todos a sensação que as autoridades que cada vez menos controlam nada na sua governação (Hollande tem muito a ver com isso e Sarkosy também), o que provoca uma vontade de reacção da parte de um povoo que não se sente mais em casa face ao descaramento duma comunidade que se impõe com segurança porque os defensores da liberdade, da fraternidade e da igualdade serão sempre lá para os proteger. Eles que, se chegassem ao comando do pais (a quem pensa que há um projecto nesse sentido) muito breve deixaria de haver essa mesma liberdade e essa fraternidade. As mulheres francesas estão muito empenhadas também em defender uma real igualdade que as Muçulmanas não querem, parecem não querer, ou não podem revindicar por causa de pressões familiares ou sociais.
    A guerra do Irak remotamente ainda está na origem de tudo isso.

  2. Parabéns a D.O. que DESTA VEZ, em meu entender, acerta a 100% na mouche.
    não sejamos hipócritas: a mentalidade dos homens AUTORITÁRIOS é parte do cerne desta questão. A outra parte está na indução de uma cultura de SUBMISSÃO nas culturas em que a mulher não iguala o estatuto do homem. Estes dois comportamentos, existem em todas as sociedades. Querer, por via administrativa, secularizar as sociedades é um caminho suicidário como a HISTÓRIA tem repetidamente demonstrado. Lideres fracos (Hollande\Sarkozy) saídos de uma sociedade que “se perdeu” em termos da defesa daquilo que foi a LUZ da Revolução Francesa, “Liberté, Égalité, Fraternité”, sempre que falam, só tem agravado esta questão. A “Maria Caneta” ri, porque os outros dois lhe irão entregar o poder de mão beijada. A França NUNCA DESCOLONIZOU a sua sociedade, pouco fez por integrar “os restos” do IMPÉRIO magrebino tendo, desde a década de 60, preferido SUBSIDIAR uma auto-exclusão daqueles que, sentido não ter condições para permanecer na sua terra tiveram que imigrar. Basta visitar os “bairros de árabes” que enxameiam as cidades francesas para sentir que a “faixa de gaza” se replicou para além da Palestina. É um pantano de quase 60 anos de lodo mal cheiroso que por vezes borbulha, exalando todo um mal estar que reflete no que para alguns é o fim do caminho e que, por isso mesmo, se decidem matar, matando. Ter uma afirmação publica da sua cultura\religião NÃO PODE de modo algum ser considerado um atentado aos bons costumes. Só quem tem MEDO e CONSCIÊNCIA PESADA, por não ter, em devido tempo, providenciado a integração daqueles que aceitou receber, limita a liberdade ao OUTRO porque “esse outro” nunca foi considerado NÓS.
    Se eu vivesse em FRANÇA, hoje, iria à praia com um fato de banho do século 19, em sinal de solidariedade não com esta ou aquela pessoa em particular, mas sim em homenagem à LIBERDADE, à IGUALDADE, e à FRATERNIDADE.

    • O sr Victor Costa há de convir que a religião muçulmana está a criar no mundo muitos problemas, ajudada pelos petrodollars dos Emirados e afins, e pelas políticas ocidentais desde há 50 anos. Todas as migrações que conheceu a França se passaram relativamente bem, houve vagas de Polacos, Italianos, Espanhóis, Portugueses, Vietnamitas, Russos até (em 1917!!), e todos viveram numa integração relativa e regra geral em bom entendimento, e muitas vezes com uma assimilação devidos a casamentos, instalações definitivos adopção na pátria francesa …
      O caso do Magreb é diferente, porque a imigração não forçosamente desejada ou necessária, foi clandestina e massiva, e admito que não muito bem gerida pelas autoridades que muitas vezes faziam do problema um cavalo de batalha político. E se você reconhece que a situação é explosiva (se calhar nem faz ideia do grau que isso atingiu) então não se admira que a população francesa queira ouvir e ver tomadas de atitude firmas, e radicais.
      Portugal que fui um pais colonial, não tem no seu território nada que se lhe compara, acho portanto muito fácil de falar contra a França.

    • Victor Costa, o Sr escreveu : “A França NUNCA DESCOLONIZOU a sua sociedade, pouco fez por integrar “os restos” do IMPÉRIO magrebino tendo, desde a década de 60, preferido SUBSIDIAR uma auto-exclusão daqueles que, sentido não ter condições para permanecer na sua terra tiveram que imigrar.”
      Pouco fiz para integrar ?… Só se pode integrar gente que querem se integradas… muitas oportunidades foram dadas e criadas para que isso acontecesse, mas enquanto as mulheres portugueses trabalharam duro para ajudar as suas famílias ao lado do marido ele também no trabalho em França, as senhoras muçulmanas , proíbidas de trabalhar e empurradas a fazer muitos filhos, esperavam o fim do mês para as “allocations familiales” !

  3. A lei que leva um polícia a multar uma mulher por não se despir o suficiente na praia, que leva polícias a obrigar a mulher a despir o que tem vestido porque aquilo não parece lá muito secular, essa é mesmo muito estúpida.

    Mas uma lei que proiba o atentado aos direitos humanos (da mulher) que é a lavagem cerebral que ela leva desde pequena que deve obedecer ao marido, que só tem os direitos que o marido deixar, que só pode mostrar o que o marido permitir, etc, essa lei seria apoiada por mim a 100%.

    Seja contra a estupidez do Islão, contra a estupidez dos mais conservadores católicos, ou contra a estupidez dos valo0res dos ciganos ou contra um machista qualquer.

    Não se pode dizer que estas mulheres “querem” usar o burquini e achar que se está a ser intelectualmente honesto. Elas não querem usar o burquini, nem a burka, ou o hijab ou o niquab. Simplesmente foi isso que lhes ensinaram, assim como ensinaram às mulheres no ocidente que se o marido morre tem de vestir de preto, que o véu deve ser usado quando casam, ou que quando a mini-saia apareceu isso era só para as put*s… e as meninas decentes, quando muito, em nome dos bons costumes, só deviam mostrar os tornozelos.

    O burquini não é liberdade de expressão, é um símbolo da repressão de uma religião sobre as mulheres. Proibir a repressão é um passo em frente. SEMPRE! Seja contra muçulmanos, seja contra o que for. Não há cá islamofobia nenhuma no meu texto. Há, isso sim, “murro-fobia” das mulheres que vestem o burkini por “escolha” própria, pois escolhem fazê-lo assim vestidas para os maridos as deixarem ir à praia sem levaram uma sova quando chegarem a casa.

    Se a mulher quiser ir à praia toda tapada, que vá, mas que não o faça em nome de um tal de “bom senso” divino de um deus palerma qualquer, que assim decidiu em nome de todas as mulheres dessa religião. É que há roupas e roupas, da mesma maneira que há suásticas e suásticas. Umas simbolizam a paz, outras simbolizam as câmaras de gás. Sou obviamente a favor das primeiras e a favor da proibição das segundas. Sejam coerentes na vossa estupidez e chamem-lhe “nazismo-fobia” se quiserem, ao mesmo tempo que se auto-intitulam de pessoas liberais exemplares que tudo toleram em nome de uma suposta “liberdade” de expressão…

    • Só para terminar o assunto, saiba que veús, burkas e burkinis, são utilizados por certas mulheres muçulmanas, como “estandarte” da sua identidade. Isto é, para bem marcar a sua diferença num certo desafio ao pensar geral da população e não para obedecer nem ao marido nem ao peso social da sua comunidade. Mas não são todas !

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