A caixa dos segredos

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 18/06/2016)

AUTOR

                                    Miguel Sousa Tavares

1 Foi eloquente o debate parlamentar acerca da falência oficiosa da Caixa Geral de Depósitos (oficiosa e não oficial, porque, por definição, tudo o que é do Estado não vai à falência enquanto houver contribuintes para pagar). No Parlamento, António Costa disse que os termos do financiamento estatal à Caixa estão a ser discutidos com Bruxelas e não os pode agora revelar; que o montante de tal financiamento não está apurado e não pode ser objecto de “especulações”; e que os motivos pelos quais a Caixa vai precisar de nova injecção de dinheiros públicos são do domínio da “arqueologia”, enquanto a ele só lhe interessa o futuro. Ou seja, e como bem notou Luís Montenegro, depois do facto consumado e de tudo decidido, pode ser que o PM faça o favor de explicar aos deputados e aos contribuintes qual é a factura e como será paga. Mais do que isso — apurar, por exemplo, quem, como, quando, porquê, a mando de quem, e perante o olhar impávido de quem, fez o banco público mergulhar num buraco sem fundo à vista, isso não é da conta dos pagadores.

A comissão de inquérito proposta pelo PSD (em termos nada inocentes, reconheça-se) é vista pelo PS como “uma devassa pública” e pelo PCP como uma tentativa de enfraquecer a Caixa e abrir caminho à sua privatização: palavra de honra, foi isto que eles disseram! Para o PS, é mais importante proteger gestões como as do sr. Armando Vara e companheiros de aventura do que apurar responsabilidades eventuais e garantir que tal não volta a acontecer. Para o PCP, é mais importante manter a ficção de que a Caixa é boa porque é pública, apoia as pequeninas e médias empresas e rege-se por outras regras que os privados não respeitam do que enfrentar a verdade de que todos desconfiam: que o banco público tem sido, ao longo dos anos, um refúgio de reformados de luxo da política, de incompetentes e de oportunistas, um lugar de negócios de favor e financiamento, não de pequenas e médias empresas, mas sim de grandes empresas e grandes negócios — como prova a lista dos seus principais devedores e das “imparidades” (leia-se calotes) a que agora temos de acorrer. De facto, explicar por que razão a Caixa espetou, por exemplo, 380 milhões de euros (!) num aldeamento turístico algarvio só pode interessar a arqueólogos. E nós somos apenas pagadores de impostos. Siga o baile, porque vergonha não o tolhe.


2 Ao longo dos últimos cinco anos, de cada vez que ouvia as notícias sobre os prejuízos de gestão da Caixa, sobre as sucessivas injecções de tesouraria que o Estado lhe dava, sobre os 1600 milhões que lhe emprestou ao abrigo do programa da troika, eu perguntava-me: “Mas o que se passa ali? Não se passa nada? Porque será que ninguém acha isto estranho?” Tal qual como no BES e no Banif, parece que só depois de a casa ter pegado fogo é que os responsáveis governamentais se preocuparam. Vi que a drª Maria Luís Albuquerque foi convidada do dr. Durão Barroso (sempre tão previsível nos seus convites…) para participar na sessão anual do selecto e resguardado Grupo de Bilderberg. Não sei, obviamente, o que ela terá lá ido dizer, mas a única comunicação interessante que consigo imaginar da sua parte seria uma com o título “Como em três anos de ministra das Finanças vi falirem três bancos, com toda a tranquilidade e boa consciência da minha parte”.


3 O ‘Brexit’ é aterrador pelo buraco negro que vai abrir na Europa. Mas mais aterrador ainda será a eleição de Trump nos Estados Unidos. Juntem-lhe os refugiados, o terrorismo, a desaceleração económica global, a convergência estratégica e ideológica da extrema-direita e da extrema-esquerda num nacionalismo populista, e o panorama é assustador. Mas há mais: há a NATO, que se está a tornar uma ameaça crescente à paz mundial e europeia, sob a liderança do sr. Jens Stoltenberg, um pirómano que repete mentiras e falsidades e corre a Europa apelando ao rearmamento, com um discurso de guerra-fria, todo ele apontado à Rússia como o inimigo a enfrentar. O pretexto é a anexação da Crimeia (que antes havia sido anexada à Ucrânia numa noite de bebedeira do secretário-geral do PCUS, o ucraniano Khrushchov). Talvez eu tenha andado distraído, mas não me consta que o regresso da Crimeia à Rússia tenha desencadeado algum tipo de resistência interna ou mesmo de simples oposição: há algum movimento de resistência na Crimeia a defender a sua devolução à Ucrânia?

Mas Stoltenberg afirma que a Crimeia é só o primeiro passo para o que ele garante ser o desejo expansionista da Rússia. E assim, antes que este se venha a consumar, a NATO expande-se militarmente para as fronteiras da Rússia — para a Polónia e países bálticos, onde vai instalar quatro brigadas, de dezassete previstas, e cujo tipo de armamento será decidido na próxima cimeira de 8 de Julho, em Varsóvia. Isto faz-vos lembrar alguma coisa, a crise dos mísseis em Cuba, por exemplo?

Paralelamente, a NATO estuda também a instalação de um sistema antiescudos de mísseis, num largo círculo em volta da Rússia. Isto, dizem os russos com inteira razão, é reverter o “equilíbrio do terror”: se o escudo antimísseis, inventado pelos americanos e copiado pelos russos, garante que um ataque surpresa com mísseis pode ser bloqueado por quem sofre o ataque, a instalação de um sistema que, por sua vez, bloqueia o escudo deixa esse país completamente vulnerável. Porque quererá a NATO, então, tornar os russos vulneráveis? O sistema, explica Stoltenberg, não é contra os russos, é contra a instabilidade no Médio Oriente (a mesma região para a qual a França e os Estados Unidos não param de aumentar as suas exportações de armamento). Quanto às necessidades de rearmamento entre os aliados da NATO, tão insistentemente reclamadas por Stoltenberg, os números desmentem-no: em 2015, os Estados Unidos gastaram 596 mil milhões de dólares com a defesa, a Inglaterra gastou 55.500 milhões e a França 50.900 milhões. Comparativamente, o “inimigo”, a Rússia, gastou 66.400 milhões — menos do que os 87.200 milhões gastos pela Arábia Saudita, armada por EUA e França (“Le Monde”, 14 de Junho, 2016). Aparentemente, alguém espera uma guerra, mas não me parece que seja o “inimigo”.

Esta quarta-feira, os estrategos da NATO — como de costume, sem consulta aos seus membros, como Portugal — definiram um novo conceito de “acto de guerra” por parte do inimigo. Qualquer “ciberataque” ou intrusão nas comunicações classificadas de um membro da NATO (excluindo, obviamente, as escutas montadas pelos americanos aos telefones de François Hollande ou Angela Merkel) devem ser vistos como um acto de guerra, susceptível de, nos termos da Carta da NATO, desencadear uma reacção militar de autodefesa por parte de toda a Aliança.

Aparentemente, há mesmo alguém com desejo de guerra, e estas brincadeiras estão a tornar-se coisas sérias. E os jogos de guerra, como os exercícios de forças combinadas no Báltico (o equivalente ao que seria um exercício aeronaval russo ao largo da costa de França), deixam pouca diferença entre o treino e a provocação. No lugar de Marcelo Rebelo de Sousa, eu pensava duas vezes antes de ir visitar as tropas portuguesas na Lituânia. Com a NATO à solta por aquelas bandas, os tempos não estão para viagens de cortesia.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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