O País que foi do vinho e agora é da cerveja

(José Pacheco Pereira, in Sábado, 21/05/2016)

Autor

             Pacheco Pereira

Os eventos de que falo a seguir são do reino da cerveja. Gambrinus voltou em todo o seu esplendor. Dos adeptos do Benfica aos estudantes do “ensino inferior” que passaram a Queima em estado de torpor alcoólico, tudo consome muitos milhares de litros de cerveja.

No caso dos estudantes, como não sabem beber, e alguns deles que podem vir a saber não têm muito dinheiro, acrescentam à cerveja uns shots de coisas absurdas como absinto e groselha, para dar o tom de doce para quem ainda não saiu do sabor do gelado da praia. Dão aos shots nomes impronunciáveis, um dos quais mais amável se chama Esperma, mas o objectivo é embebedarem-se depressa. Admito que face ao que os espera pela vida fora, mais vale aproveitar a paulada dos shots. Mas a cerveja venceu em toda a linha o vinho, o vinho que no passado salazarista tinha fama de pôr a comida na mesa a um milhão de portugueses.

A lei em Portugal

A coisa tem também alguma graça vista do ponto de vista da obediência à lei. Que se saiba há leis que proíbem praticamente tudo o que acontece nas noites de triunfo futebolístico e de fervor “académico” de jovens que gostam de andar vestidos à padre. Leis sobre o consumo de álcool por menores, leis sobre a venda de álcool, leis sobre o espaço público, leis sobre o insulto público, leis sobre desacatos urbanos, leis onde se pode ou não pode estar nas ruas e praças, leis sobre manifestações, leis sobre a ordenação do trânsito, leis sobre o bom exercício do poder paternal, leis sobre menores e sobre maiores, enfim, as leis de um País que tem leis sobre tudo e mais alguma coisa e não tem o hábito de as cumprir.

O dia em que os jornalistas que dão notícias estão na clandestinidade

Há meia hora que espero por uma notícia em todos os telejornais de todos os canais. Devo ser o único porque pelos vistos as audiências querem é ver o Benfica do dia anterior, os festejos do Benfica em todas as capitais de distrito, as “bocas” a um homem chamado Jesus, que se não se cuida vai parar ao Gólgota. O Benfica ganhar o campeonato é notícia? É. Mais ontem do que hoje, mas pelos vistos será de amanhã e por aí adiante até à náusea. Os festejos que agruparam, diz-se, 150.000 pessoas em Lisboa é notícia? É. Foi em directo, em diferido, e pelos vistos, ainda vai ser mais excitante e vendável como “notícia” do que o jogo ou o campeonato. Quando é que vai acabar? Quando houver outra. Um crime, uma rixa a tiro, uma cena de violência doméstica entre famosos e menos famosos, é só escolher.

O ensino inferior

Há uma altura do ano em que uma pessoa saudável deve evitar passar por uma escola que supostamente é de “ensino superior” mas que nessa altura fica claramente de “ensino inferior”. É a época das “semanas académicas” da Queima das Fitas e quejandas iniciativas de imbecilidade colectiva. Infelizmente a coisa tende a alastrar para fora das imediações das faculdades onde meia dúzia de meninos e meninas com ar de mandões capitaneiam uma trupe, volto à palavra, de imbecis que se deixam ver em poses de submissão e rastejo. E pelos vistos gostam. Não me venham com as virtudes da “geração mais qualificada”, porque o que apetece é fazer uma espécie qualquer de manifesto Anti-Dantas que torne o ridículo daquilo tudo ainda mais ridículo.

Podem estas pessoas ficar sérias no dia seguinte?

Admito que sim. A natureza humana parece não se tomar muito a sério e acelerar a metamorfose entre um homem que berra contra o Jesus (será blasfémia?) com um chapéu cheio de cornos e a cara pintada de vermelho e no dia seguinte vai ser gestor de conta do Deutsche Bank. Ou, mais bizarro ainda, uma jovem a vomitar pelos cantos de Coimbra, em poses desgraçadas para não dizer outra coisa, transformar-se numa tia de Cascais, católica, apostólica, romaníssima (embora com objecções ao Papa Chico, como a direita lhe chama) , que se oferece como voluntária no Banco Alimentar porque gosta muito do que diz a Isabel Jonet. Tudo é possível, no meu belo país, menos sair da cepa torta. Não é só por isto tudo, nem é essencialmente por causa disto tudo, mas também ajuda.

2 pensamentos sobre “O País que foi do vinho e agora é da cerveja

  1. Enquanto estava lendo o seu texto dr José Pacheco Pereira, passou na minha rádio esta canção que por certo conhece, “Avec le Temps” de Léo Ferré, e só me veio uma reacção, de súbito, tinha a cara em lágrimas…Tão triste é aquilo que conta, porque tão verdade, já vivi muitos anos em Coimbra e tantas vezes me veio esta ideia de juventude desastrada perante as idiotices a que se prestam…D.F.Dinis

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