Quero ser um ditador

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/05/2016)

Autor

                     Daniel Oliveira

Uma motorista da Florida, ligada à plataforma Uber, não permitia, no estrito cumprimento da lei, que os clientes entrassem no seu carro com uma bebida alcoólica. Como conduzia à noite, isso custou-lhe suficientes más avaliações de suficientes clientes para lhe baixar o rating até ter sido desativada, o que quer dizer que perdeu o seu emprego. Teve de pagar 100 dólares para ter aulas de treino de como se relacionar com os clientes, aprovadas pela Uber. Hoje trabalha de dia, o que dá menos dinheiro.

Um motorista muçulmano de Tampa queixa-se que o seu rating está nuns perigosos 4,78. Sendo ele simpático e tendo um bom carro, e comparando-se a outros colegas que conduzem como maníacos e são seguramente menos atenciosos mas têm um rating mais alto, não teve dificuldade em encontrar uma relação entre o facto de ter deixado crescer a barba (que denuncia com maior facilidade a sua religião) e a descida do seu rating. Convicção que foi confirmada por um estudo recente entre ratings e preços praticados dependendo da raça dos anfitriões das casas do Airbnb, por exemplo.

Como acontece com alguma frequência neste tipo de debates, muita gente não percebeu que o que está em causa na discussão em torno do Uber não são apenas os táxis e aquela multinacional. O que está em debate são algumas alterações importantes na organização das nossas economias e nas relações laborais. Encolher os ombros, porque o futuro é mesmo assim, é uma atitude apolítica e absurda, mas disso tratarei noutro texto, talvez amanhã. Em torno da Uber decidi concentrar-me na questão da regulação. Porque é, na realidade, o problema central que as empresas e pessoas que a ela aderem levantam neste momento. Mas há um outro debate, que tem a ver com as relações laborais. Uma parte prende-se com a mesmíssima regulação e já está tratado. Outro não se levanta apenas com a Uber. Existe igualmente em aplicações como o myTaxi e outras que funcionam em Portugal, que sendo em tudo semelhantes à Uber, trabalham apenas com taxistas credenciados e carros licenciados. E existem em cada vez mais serviços, como Airbnb. Têm, no entanto, repercussões diferentes quando se aplicam ao conjunto de um serviço ou quando servem para avaliar trabalhadores individualmente.

O sistema de rating dá ao cliente um papel absoluto. Ele torna-se, na realidade, um patrão com poderes quase ilimitados. As suas vontades, por mais absurdas e ilegítimas que sejam, valem tanto como uma avaliação razoável do desempenho de uma função. Imagine-se o sistema de rating aplicado a um médico, a um professor, a um jornalista ou a um engenheiro. Ele tenderia, como tende com os motoristas, a sobrevalorizar a simpatia, a apresentação, o conforto e a subvalorizar a segurança e outros fatores que, sendo objetivamente mais importantes, são menos percetíveis para o cliente. Como se viu pelas histórias que relatei no início deste texto, que recolhi num excelente artigo da publicação norte-americana “The Verge”, que aconselho a todos a leitura, o sistema de rating permite que cada trabalhador viva debaixo de um despotismo sem limites de um patrão caprichoso, omnipresente e omnipotente. Leva ao extremo a lógica do mercado aplicada a seres humanos. Os trabalhadores já não procuram apenas dinheiro. Procuram pontos que têm como principal função conservarem o seu emprego.

Sobrevalorizando as qualidades sociais dos trabalhadores e subvalorizando as suas qualidades técnicas, o sistema de rating promove uma relação servil entre empregado e cliente. Como cliente, eu ficarei seguramente a ganhar. Saio de casa, entro no café e só tenho gente sorridente e bonita, nunca maldisposta ou acabrunhada, sempre pronta para responder a todos os meus desejos. Entro no táxi e sou atendido por gente igualmente bonita, preferencialmente jovem e bem vestida, que me proporcionará uma experiência de conforto e boa disposição. E os meus dias serão todos assim. Os motoristas, os empregados de café, os vendedores de jornais, os bancários, os médicos e todas as pessoas que comigo contactam não se limitam a ter de cumprir bem a sua função: transportar-me, servir-me o pequeno almoço, vender-me o jornal, aceitar o meu depósito, tratar da minha doença. Elas dão-me, quotidianamente, o direito a nunca sentir a frustração da contrariedade. Se me contrariarem pagarão no seu rating e, com uma facilidade avassaladora, podem perder o seu trabalho.

Um dos maiores elogios que vou ouvindo a qualquer alternativa aos taxistas é não terem de ouvir conversas inconvenientes. Aliás, é estarem, a não ser que lhes seja de alguma forma solicitado que falem, calados. Porque pagamos. É ouvirem a rádio que pedimos e não a do seu gosto. Porque pagamos. É apagarem todos os traços da sua existência para lá da função de nos servir. Porque pagamos. Criamos em todos os trabalhadores o espírito subserviente do mordomo que encontra na satisfação do seu patrão o sentido da sua própria existência. É verdade que nunca mais teremos de aturar taxistas e empregados de café rudes. Mas, como trabalhadores, teremos de aceitar sem qualquer possibilidade de fuga a infinita rudeza de qualquer cliente. Porque ele tem o poder não apenas de deixar de ser cliente mas de nos avaliar publicamente. Passaremos a estar totalmente dependentes de milhares de terríveis e caprichosos patrões. Como podem compreender pelo artigo que aqui vos deixei linkado, o rating de clientes não resolve o problema.

Poderemos viver numa redoma assética onde tudo cumpre a função de nos proteger de qualquer contrariedade. Incluindo a contrariedade de ouvir opiniões que nos desagradam (os motoristas do Uber são aconselhados a evitar assuntos controversos), ver pessoas com um aspeto que nos incomoda, sentir coisas que nos contrariam, num exercício quotidiano e quase infantil de autocentramento e comodismo. E poderemos conseguir isto sem grande esforço. Citando o artigo da “The Verge”, criaremos um monstruoso grupo de clientes que espera ter “o serviço do Ritz Carlton ao preço da McDonald’s”. Democratizamos finalmente o direito a ser um déspota.

Há, claro está, um problema. Saídos do café, do táxi, do banco, da livraria, temos de ir nós próprios trabalhar. E aí seremos nós servis com os outros que, cansados da sua posição subalterna, sentirão eles mesmos o prazer de ser uns pequenos ditadores. Não discuto que, do ponto de vista do mercado, esta forma de nos relacionarmos com os serviços que nos são oferecidos é de uma enorme eficácia. A questão, que hoje é quase sempre ignorada em todos os debates sobre a economia on-demand, é se queremos viver numa sociedade em que todos somos, à vez, ditadores e servos, senhores absolutos do nosso quotidiano, quando não estamos a trabalhar, e trabalhadores amputados de personalidade quando servimos os outros. Dirão que sou conservador, mas acredito numa negociação mais suave da contrariedade, onde as pessoas que me aparecem à frente não são todas bonitas, jovens e agradáveis e em que eu, para sobreviver, não tenho de me sujeitar à vontade despótica do cliente.

O problema dos ratings não é a possibilidade de estranhos partilharem entre si uma avaliação que, aos olhos do otimismo tecnológico dominante, tenderá a encaminhar-se para a justiça. É que essa avaliação, por ser espontânea, não se rege por princípios técnicos, éticos, legais ou de razoabilidade. Enquanto isso servir para coisas pouco relevantes não me tira o sono. O problema é quando o nosso trabalho e a nossa sobrevivência dependem disso.

A confiança na justiça e equilíbrio da espontaneidade das massas não é apenas um disparate otimista a que nenhum adulto medianamente culto se deveria permitir. Põe em causa muito mais adquiridos civilizacionais do que imaginamos. Se quisermos resumir de forma brutal e extremada, é isto: continuamos a preferir o julgamento feito por juízes ao linchamento feito pela turba? Com as devidas distâncias, é isto que está em causa. Não no Uber ou nos ratings, mas na confiança cega nas novas dinâmicas coletivas e não mediadas, de mercado ou outras, possibilitadas pela Internet.

7 pensamentos sobre “Quero ser um ditador

  1. Não, Nuno, o Daniel Oliveira tem é uma capacidade de raciocínio e argumentação que você tenta despachar recorrendo ao insulto, o que não abona nada a seu respeito. A existência de reguladores mais ou menos imparciais, como o Estado, é que permite que quem trabalha não tenha que se comportar permanentemente como um servo perante um patrão caprichoso. O cliente não tem sempre razão. Beber bebidas alcoólicas (ou consumir alimentos) dentro de um transporte público é pouco higiénico, por exemplo, e pode levar a sanções para o condutor. A mais das vezes, o aumento da segurança das pessoas e dos bens implica uma diminuição da comodidade e não me venha com a conversa da Liberdade, porque ela exige deveres e responsabilidade. ‘If men were angels, we would not need Government…’

  2. “O sistema de rating dá ao cliente um papel absoluto. Ele torna-se, na realidade, um patrão com poderes quase ilimitados.”
    O do vai aprendendo, nos exemplos práticos da vida, como um governo em comum do povo que Marx teorizou e chamou comunismo, é uma impossibilidade prática. Na frase acima basta substituir rating por “decidir” e cliente por “comunidade” para obtermos um governo com tomadas de decisão por uma gigantesca comunidade de indivíduos o que se torna uma impossibilidade.
    Foi desse modo que, mal tomado o poder em nome do povo, todas as revoluções de imediato foram obrigadas a instalar uma ditadura. E foi, igualmente, pensando profunda e sabiamente sobre qual a melhor posição para se exercer o poder e o indivíduo viver a vida que, Aristóteles, informou que tal posição era o meio-termo visto ser o lugar equidistante de dois extremos.
    E saiba do que Marx disse que para haver uma relação livre entre empregador e empregado “é necessário que o proprietário da força de trabalho (o empregado) não a venda nunca por mais que um tempo determinado, pois se a vende em bloco, de uma vez para sempre, está a vender-se a si mesmo, e de livre que era transforma-se em escravo”
    O que faz os homens viverem em sociedade e a forma como o fazem é um enigma semelhante à questão filosófica de se é a existência que precede a consciência (Marx, Sartre, materialistas) ou o contrário (Platão, idealistas).

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  4. É a isso que a “internet” nos leva também, entre outros males! Também concordo plenamente com esta exposição de Daniel Oliveiro !

  5. Excelente análise sobre algo, perigoso, que despercebidamente (porque sob formas tecnológica e gestionariamente inovadoras”) se está a passar no mundo do Trabalho: um profundo retocesso social e civilizacional.
    Neste caso, prafraseando Georges Friedmann (Le Travail en Miettes – 1953), talvez seja apropriado concluir-se que já não é só o trabalho “em migalhas” e os trabalhadores “em migalhas”. O que ainda os “esmigalha” mais são (somos…) … os “patrões” (de facto, ainda que não de direito) … “em migalhas”.

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