O preço de acabar com os boys

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 22/04/2016)

Autor

                          Daniel Oliveira

A predominância de critérios partidários (e não apenas políticos) que domina a seleção do pessoal de topo na hierarquia da administração pública é um problema real. Antes de tudo, é um problema para o Estado. Porque não se escolhendo os melhores o Estado torna-se incompetente. E porque não se premiando a competência espalha-se o desalento pelos funcionários públicos, tornando muito difícil motivá-los para a mudança. E é um problema para os partidos políticos. Vistos como porta de acesso a carreiras na administração pública, transformam-se em centros de recrutamento de oportunistas, onde carreiristas ignoram todas as suas convicções políticas (se as tiverem) e fazem os líderes partidários depender dos favores passados ou das promessas para o futuro. A “partidocracia” mina a confiança dos cidadãos no Estado e nos partidos. O que quer dizer que mina a confiança dos cidadãos na democracia.

É por isso compreensível que o debate sobre as nomeações no topo da hierarquia da administração pública seja cíclico. Mas a repetição não parece refiná-lo. Resume-se quase sempre a uma troca de acusações, sem qualquer conteúdo político e quase sempre com propostas que ou são irrealistas ou tornariam o funcionamento do Estado ainda mais lento e pesado. O equilíbrio entre a transparência e a burocracia é de tal forma difícil que, em muitos casos, a burocracia torna-se uma forma bastante eficaz de tornar os procedimentos mais opacos.

Já sei que surgirão, como surgem sempre, os militantes do liberalismo científico que me explicarão que este problema só existe porque o Estado existe ou existe de mais. Não tivesse eu pernas e seguramente evitaria o pé de atleta. Mas como tenho dificuldade em discutir questões científicas com um criacionista ou os entorses da democracia com um fascista, não me é fácil debater com ultraliberais medidas para aumentar a eficácia do Estado. Por isso, este debate só se pode fazer entre quem acha que o Estado deve ter um papel minimamente relevante na sociedade e na economia.

Também não vale a pena fazer discursos que se baseiem apenas em afirmações morais. A política lida com seres humanos, sempre imperfeitos. Lida com a ganância, com o oportunismo, com a incompetência, com a falta de escrúpulos. Quem se fica pelo moralismo acaba por ignorar a natureza humana e não contribui para nenhuma solução viável.

Podemos, é claro, procurar soluções mais ou menos eficazes que reduzam a discricionariedade das nomeações. O objetivo expresso da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP) era esse. Mas parece-me que é excesso de responsabilidade para poucas pessoas com nenhuma legitimidade que permita sustentar tanto poder. Na realidade, o debate fundamental é este: queremos uma administração pública mais ou menos autónoma politicamente. E qualquer das escolhas esbarra com o populismo reinante quando se discute este tema.

Se queremos uma administração pública com menos autonomia temos de aceitar a realidade atual. Não vale a pena perseguir quem nomeia muita gente. Não o fazer significaria ter confiança política em pessoas que foram colocadas nos cargos pelo governo anterior tendo como critério a fidelidade partidária. Numa administração pública cheia de camadas de cumplicidades partidárias nem sequer é fácil confiar no quadro de pessoal mais permanente. Para quebrar com este ciclo é necessário tempo e critérios claros. Até lá, é natural que um ministro não queira depender de quem o quer ver falhar.

Se queremos uma administração pública com mais autonomia temos, antes de tudo, de pensar em preparação específica para os seus quadros, ao estilo do que existe em França. Depois, temos de saber como resolver o poder excessivo que os próprios funcionários públicos ganhariam junto do poder político. Um bom retrato caricaturado dos riscos que corremos é a velha e excelente série de humor britânica “Sim, senhor ministro”.

Por fim, temos de aceitar o que cada vez mais é contestado: regras de estabilidade na função pública superiores às do privado. Não podemos querer sol na eira e chuva no nabal: por um lado, funcionários públicos tão dependentes da vontade dos seus empregadores (representados pelos políticos) como no privado, por outro, que não seja possível o mesmo grau de arbitrariedade na seleção de pessoal que permitimos no privado.

Não podemos querer uma administração pública a salvo da cobiça dos partidos e funcionários públicos à mercê de despedimentos fáceis. Como se viu no passado, a dificuldade em despedir um funcionário público não garante a sua autonomia. Mas a inversa é verdadeira: a vulnerabilidade de um trabalhador do Estado torna impossível uma função pública despartidarizada.

Na política, é fácil fazer afirmações morais. Difícil é encontrar soluções decentes.

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