A Primavera Marcelista

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 02/04/2016)

AUTOR

                                                 Miguel Sousa Tavares

1 – A designada “Primavera Marcelista” é o período histórico que abrange os primeiros tempos da governação de Marcelo Caetano, após a providencial queda da cadeira de Salazar e o 25 de Abril. Nesses seus primeiros tempos de poder, o padrinho e primeiro mentor político do actual Presidente levou alguns a acreditar que a anacrónica ditadura em vigor iria ser progressivamente suavizada até se integrar, de motu proprio, no grande espaço democrático europeu. Mas, logo após os primeiros sinais e ao primeiro sobressalto da nomenclatura salazarista agrupada em volta do inefável almirante Thomaz (o então PR de opereta), Marcelo Caetano arrepiou caminho e voltou às boas velhas práticas do Estado Novo. Mas, querendo continuar a dar uma no cravo e outra na ditadura, ele próprio viria a fazer humor com a situação, dizendo que corria o boato de que iria ficar sem carta de condução por ter feito sinal à esquerda e virado à direita. Quarenta e cinco anos depois, o afilhado parece seguir pelo mesmo caminho: começou por piscar o olho à esquerda e ao Governo de António Costa, mas na hora da verdade, veremos para que lado vira. Sim, porque, por mais que ele se esforce por o evitar, haverá uma hora da verdade e um momento de escolhas.

Esta Primavera trouxe-nos, como de costume, as andorinhas, as flores do campo, as primeiras nêsperas… e Marcelo Rebelo de Sousa. Ele é o factor novo desta Primavera. Já antes de tomar posse, inaugurara um novo estilo e um novo estatuto — o de “Presidente-eleito” — dispondo de palácio próprio, de gabinete e equipa, recebendo em audiência e despachando como se já estivesse em funções, reduzindo à insignificância a função do seu antecessor. E depois foram três semanas alucinantes em que Marcelo teve umas cerimónias de posse dignas das monarquias actuais do norte da Europa, cantou rap nos bairros sociais do Porto, beijou a mão ao Papa e jantou com os reis de Espanha na Zarzuela, recebeu o Corpo Diplomático a quem explicou o que vai ser a política externa portuguesa, abriu o palácio ao povo com ele à vista, adoptou um cão presidencial chamado Asa, apresentou-se às Forças Armadas como comandante supremo, foi ver a Selecção Nacional a Leiria e desceu aos balneários para confraternizar com os jogadores, embalou um recém-nascido no Hospital de Vila Franca de Xira, despachou um OE e falou à nação puxando dos seus galões de constitucionalista para explicar que estava tudo bem com o OE, e vai reunir o seu primeiro Conselho de Estado com um convidado-surpresa que é o presidente do BCE. Enfim, uma roda-viva, uma farra, um permanente desassossego a que ele chama distensão e descrispação. Enquanto nós dormimos, Marcelo não pára quieto, velando pelo nosso sono e distensão. E, quando acordarmos, ele será já o senhor do jogo.

Bem-vindos à ‘Primavera Marcelista’, um tempo novo e bem mais divertido.

O objectivo final do jogo é dar a Marcelo uma legitimidade pessoal e directa com o povo. A sua campanha eleitoral já obedecera a esse objectivo estratégico, os seus primeiros dias de Presidência confirmam-no. Tão depressa quanto possível, Marcelo quer conquistar o epíteto que a sua Casa Civil já ensaiou: o de “Presidente do povo”. A partir daí, quando vier a borrasca, o Presidente Marcelo, faça o que fizer, encontrará sempre respaldo no povo que já o terá entronizado como um dos seus. Em três semanas apenas, Cavaco já deve ter morrido várias vezes de inveja ao ver Marcelo abrir caminho com esta facilidade pelos terrenos que ele sempre quis percorrer mas nunca teve engenho para fazer.

Brilhante estratego político, Marcelo sabe que até chegar ao ponto de poder reivindicar uma ligação directa e autónoma com os portugueses tem de condescender no que for necessário, sem desaproveitar nada do que seja possível. Por ora, condescende com Costa e a actual maioria, que ainda gozam do benefício da dúvida e da vontade geral de paz institucional; mas crava farpas finíssimas e deixa para trás os que preferiram ficar lá atrás, noutra dimensão virtual: Passos e o PSD. Se, lá mais para diante, as coisas derem a volta, a esquerda nunca poderá dizer que ele foi outro Cavaco e a direita terá sido metida ao bolso por ele. E, contra uns e outros, contra as lógicas partidárias e as diferenças ideológicas, ele terá, com o aliado precioso, essa coisa vaga e flutuante que é o povo. Bem-vindos à Primavera Marcelista, um tempo novo e bem mais divertido.


2 – Amadeu Guerra, o director do DCIAP e chefe hierárquico do procurador Rosário Teixeira, produziu um despacho fixando o prazo final para ser deduzida acusação contra José Sócrates: seis meses e meio, a contar de agora. Porém, o prazo não é final nem definitivo: pode ser prolongado se sobrevierem “razões excepcionais, devidamente fundamentadas”. Três anos e meio decorridos desde o início oficioso das investigações, isto é o melhor que o MP tem para apresentar: mais seis meses ou um ano de investigações, sem acusação no processo. Mas nem é o tempo da investigação que mais choca (no processo Freeport, Sócrates esteve seis anos a ser investigado sem qualquer acusação no final e sem sequer chegar a ser ouvido): o que choca é que, à luz deste despacho, tudo o que a lei estabelece como limites de prazo para o MP não conta para nada — são eles próprios que fixam os seus prazos. No processo penal português, passámos assim a ter dois tipos de prazos: os prazos para a defesa, que são imperativos, e os prazos para a acusação, que são “meramente indicativos”. No limite, um processo pode nunca mais ter fim, pode durar eternamente, mergulhando ou saindo da gaveta ao sabor dos ímpetos do MP.

Aos poucos, vamo-nos habituando a que a anormalidade e o abuso se tornem regra. Sem o mais leve vestígio de incómodo, antes pelo contrário, o “Correio da Manhã” lá prossegue a divulgação sistemática das escutas feitas a José Sócrates, ultrapassando despreocupadamente o que poderia ainda ser visto como matéria criminal para entrar já no domínio da vida privada — a parte mais sinistra de qualquer escuta. Fazem-no ao abrigo do estatuto indigno de “assistentes do processo”, que é uma fórmula encontrada para que a justiça promova os julgamentos populares enquanto arrasta as investigações eternamente. Mas há quem ache que isto é jornalismo que se recomenda. Aqui ou no Brasil, fazem-no porque entendem que os meios são justificados pelos fins que anseiam — no caso, a liquidação política e moral de Sócrates ou Lula da Silva. Alguns que assim pensam, conviveriam sem problemas com os métodos instrutórios da PIDE e pouco lhes importa a contribuição decisiva que um jornalismo do tipo “Correio da Manhã” dá para a corrosão do sistema democrático. Outros, apenas não se deram ao trabalho de pensar a sério antes de escrever. Quando João Miguel Tavares, por exemplo, escreve que os que são contra a divulgação pública de escutas feitas num processo sob segredo de Justiça estão a defender “uma visão profundamente passiva da cidadania, que apenas atribui a cada um de nós e à comunicação social o triste dever de aguardar pacientemente que o poder judicial faça o seu caminho, sem vigilância nem escrutínio”, no fundo o que ele faz é a reclamar contra a Justiça, tal como ela é e deve ser, e preconizar a alternativa paralela da justiça popular. E quando defende que situações destas “exigem um exercício de contraditório que os meios judiciais, pela sua própria natureza, não estão em condições de oferecer, mas a comunicação social está”, não apenas defende o abjecto jornalismo do “Correio da Manhã”, mas também lhe reconhece uma abjecta função judicial, tão válida quanto a desempenhada por magistrados. Creio sinceramente que um dia, quando possivelmente já for tarde demais, serão os próprios magistrados a dar-se conta das consequências trágicas a que conduzirá a promiscuidade entre justiça e jornalismo justiçeiro, que eles levianamente consentiram ou promoveram. Uma vez instalados, os tribunais populares não se contentarão em partilhar com a justiça comum esse novo poder: vão querer tudo o que à Justiça cabe.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

6 pensamentos sobre “A Primavera Marcelista

  1. Acho muito piada aos Liberais de Pacotilha ao estilo do João Miguel de Vasconcelos (perdão, Tavares!). O Liberalismo acaba, tal como no Chile de Pinochet, na Economia. Porque para a defesa do Estado de Direito, aí estamos conversados…

  2. FAZER FUTUROLOGIA QUEM NAO TEM FUTURO È TEMPO PERDIDO…NAO TEM IDADE NEM SABEDORIA PARA JULGAR O QUE AINDA NAO FOI FEITO….E PIOR È QUE COMO O JÀ FALECIDO ACACIO BARREIROS A QUEM O JÀ FALECIDO TAMBEM ADELINO AMARO DA COSTA LHE DIZIA QUE ACACIO HAVIA NASCIDO SABIDO E CONVENCIDO…POIS SOUSA TAVARES PARECE TER OS PENSAMENTOS ANTIGOS E NAO QUER VER A REALIDADE.O PAI JÀ FALECIDO TAMBEM FOI MINISTRO..MINISTRO DA AGUA..DAÌ QUE O FILHO META AGUA CONSTANTEMENTE…ALGUMA VEZ LHES PASSOU PELA CABEÇA VER A ASSEMBLEIA DA REPUBLICA E O GOVERNO DA NAÇAO SER GOVERNADO POR UMA GERINGONÇA DE TODO O TAMANHO.?..ISSO SIM MIGUEL SOUSA TAVARES ESSA ERA A FUTUROLOGIA QUE DEVERIA TER ALERTADO A DIREITA DA QUAL SEMPRE FEZ`PARTE ..PORQUE DE OUTRA NAO SABE,,,

  3. Ou eu muito me engano ou a Primavera Marcelista, vai ser igual à Primavera Árabe, que acabou numa tragédia a ferro e fogo, provocando milhões de mortos e refugiados. Na Justiça vai acontecer algo de muito semelhante, mas já fizeram o mesmo a Afonso Costa e até o Marquês de Pombal foi desterrado. Menos sorte teve Humberto Delgado que acabou sendo assassinado, mas cujos carrascos ainda foram louvados em vez de castigados, pelo mais alto signatário da Nação.
    “Antonio Costa tem de reformar a Justiça de alto a baixo e evitar que sejam possiveis pinochadas judiciais. A Democracia e a vida dum cidadão não pode estar na mão de um qualquer louco. Marinho Pinto”http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2015/10/a-maior-cabala-e-mentira-depois-de-74.html

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