A sombra sinistra do passado

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/01/2016)

Autor

                            Daniel Oliveira

A Dinamarca acabou de aprovar esta semana uma lei que exibe à Europa o espelho da sua trágica memória. A partir de agora, todos os refugiados que cheguem ao país verão os seus bens particulares confiscados (acima de 1340 euros). Ficam de fora “objetos de alto valor sentimental” (alianças de casamento e retratos de família), que a selvajaria tenta sempre mostrar sentimentos. Os refugiados estarão impedidos de reconstruir as suas vidas com a ajuda dos seus próprios meios, mesmo que entre esses meios esteja, por exemplo, um computador pessoal. O que for apreendido será destinado a pagar as despesas que a Dinamarca tem com estas pessoas, diz o cinismo legislativo que, supõe-se, passou a ter o confisco de bens como forma de pagamento de serviços ao Estado. Esta aberração, para a qual tenho dificuldade em encontrar adjetivos que correspondam à náusea que sinto, foi aprovada por 81 deputados e contou apenas com 27 votos contra e uma abstenção.

O primeiro sinal mais visível da revolta veio, curiosamente, de um não europeu: em protesto, Ai Weiwei encerrou uma exposição em Copenhaga e retirou uma obra sua do museu de Aros. No entanto, não haverá nenhuma medida da União Europeia contra a Dinamarca. Parece que está tudo bem com o seu défice e as normas da concorrência são cumpridas. Na realidade, a única sanção de que se fala por estes dias é à Grécia, que pode ser suspensa do espaço Schengen por não estar a conseguir cumprir, com os parcos recursos que sobreviveram à crise, o papel de polícia de fronteira do norte da Europa. E é nestes momentos que me pergunto: o que raio quer dizer ser “europeísta” hoje em dia. A que valores se refere essa ideia? Estamos a unir-nos em torno de quê, exatamente? Ainda faz algum sentido?

A ver se nos entendemos, porque, quando todos os valores essenciais se perdem, pode haver alguma confusão em algumas cabeças. Os refugiados não são emigrantes. Recebê-los não é uma prerrogativa dos Estados. É um dever. Fogem da guerra e da morte e quem lhes recusa a entrada recusa-lhes a vida. Ao contrário da Turquia ou do Líbano (onde os refugiados já representarão um quarto da população), a Europa não está a ser inundada por refugiados. Na realidade, tirando a Alemanha, a Europa quase nada fez para os receber. E até desanca nos Estados do sul que têm de lidar com a situação.

Como parece que já só nos conseguimos envergonhar com coisas do passado, imaginem os Estados Unidos, durante a II Guerra e o Holocausto, a confiscarem os bens dos judeus à sua entrada. Imaginem e sintam a imensa vergonha. Confiscar bens a um refugiado é um ato de cobardia, de roubo e de selvajaria. E, já agora, uma estupidez: quem tenha alguma coisa de seu para recomeçar a sua vida não quererá ir para a Dinamarca.

A única coisa que consigo escrever perante isto é que não me conformo com o facto de estar na União que me liga a um Estado que aprova esta abjeção. Logo a Dinamarca, que ajudou os judeus a fugir do Holocausto. Envergonham os seus antepassados, envergonharão os seus descendentes. E que sinto, só não sente quem nada sente, o regresso dos tempos mais sombrios desta Europa. O mesmo clima de racismo e intolerância religiosa, a mesma frieza criminosa. O mal é banal e o ódio contagioso. É só deixá-lo à solta.

8 pensamentos sobre “A sombra sinistra do passado

  1. Daniel Oliveira: em tempos da Europa mais sombrios que estes, e em que vários países já estendiam o pescoço ao cutelo,dito inevitável, a parte sã da nossa Europa não se conformou com o destino que lhe traçavam. De tal modo,que os agressores/ditadores acabaram por se suicidar, nos bunkers das suas fortalezas… Os actuais aprendizes de feiticeiro, que se preparem: já sabem o que os espera!

  2. ‘E, já agora, uma estupidez: quem tenha alguma coisa de seu para recomeçar a sua vida não quererá ir para a Dinamarca.’ Não, não é estúpido, é cinicamente inteligente, os dinamarqueses não querem lá refugiados, nenhum de preferência. Eles sabem bem a importância que as joias têm para as mulheres do Levante e estão a dizer às pessoas, ‘não podemos impedir-vos de virem, é nossa obrigação receber os refugiados, consta da carta da ONU, mas criaremos todas as dificuldades e mais alguma à vossa permanência aqui’… Mas, pior do que isso, o que é que um Partido dito Social-Democrata fez? Votou a favor desta vergonha… Expulsem-no da IS, já!

  3. Não posso estar mais de acordo com Daniel Oliveira quando se insurge contra a aberrante atitude da Dinamarca e correspondente não-reacção europeia face aos refugiados da guerra na Síria que (des)acolhe no seu país. No meu caso, o desconforto que o facto me provoca e a sensação de dejà-vue (ver a lista de proíbições aos judeus na última guerra mundial) resulta tanto da empatia com as pessoas cruelmente afectadas como da impotência das palavras dos simples cidadãos(ãs) para impedir este curso dos acontecimentos. Até ao momento a resposta das instâncias europeias é no mínimo desajustada. Mais, a noção de democracia não pode inclui e não inclui em si mesma, sem total má fé, a anulação dos seus príncipios de igualdade, liberdade e solidariedade. O que fazer? Como fazer? dentro dos limites do nosso poder democrático para impôr o caminho de uma Europa que não nos “envergonhe”?

  4. É facil comentar e com palavras carregadas de sentimentalismo e humanismo,quando nos encontramos à DISTANCIA tanto geográfica como dos múltiplos problemas , com que se deparam os Países que são literalmente INVADIDOS e descontroladamente,por povos de costumes,hábitos e religião que a história ensina não serem de assimilação fácil.Além disso a capacidade da Europa não é elástica, não se percebendo a razão porque os Países vizinhos,irmãos de religião e ricos,não fazem qualquer esforço para ajudar neste DRAMA

    • Não se trata apenas de sentimentalismo e humanismo. Trata-se de cumprir com a carta da ONU, de que Portugal, entre outros, é signatário, e que estabelece o direito de asilo. E um Tratado Internacional, depois de ratificado pelo nosso Parlamento, é Lei Nacional. E convém aliás lembrar que durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal foi frente de acolhimento de muitos refugiados, numa altura em que éramos infinitamente mais pobres que agora e governados por um Regime Fascista, mas que não demonstrava ponta de Anti-Semitismo, honra lhe seja feita (Salazar perseguiu Sousa Mendes, mas honrou todos os vistos que este passou, desobedecendo a ordens superiores). Não deixa aliás de ser irónico lembrar igualmente que mais de 100.000 polacos foram recebidos então pelo Império Persa, imagine-se o que seria se os persas não tivessem feito o que era certo. As pessoas confundem civilização com desenvolvimento material, mas parece-me que quanto mais ricos somos, mais egoístas nos tornamos e logo menos civilizados. Finalmente, quanto à questão de não existir esforço por parte dos Estados do Golfo para acolher refugiados, quando essa é também a sua obrigação, é uma questão relevante e a diplomacia ocidental deveria insistir nela, mas a recusa desses países não diminui um iota as nossas obrigações, pelo contrário, pelo que o uso de tal argumento para justificar a negação de entrada aos refugiados na Europa é pura falácia. Mas suspeito que os refugiados também escolhem a Europa porque esta alia ao desenvolvimento material uma coisa bem mais importante, liberdade política e religiosa. Não se esqueça que muitas destas pessoas são cristãs, xiitas, yazidis, etc, todos considerados infiéis ou heréticos pelo wahabismo saudita…

  5. Tendo em conta o PIB per capita, de cada país e ordenado que usufrui, quantos refugiados acha que deveria aceitar em sua casa?
    Nao serão tb os mais poderosos que deverão mais contribuir na ajuda aos desfavorecidos migrantes fruto de políticas que apenas interessam aos países imperialistas ?

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