Sócrates e a entrevista

(Joseph Praetorius, in Facebook, 16/12/2015)

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Joseph Praetorius

Excepcionalmente e por motivos de que não falarei agora, ontem vi a televisão de parvagal em razão da segunda metade da grande entrevista a José Sócrates. Também vi a primeira metade. E os comentários anexos a uma e outra.

Espanto-me por não haver radicais que se pronunciem quanto às coisas mais evidentes ali. Comecemos pelas questões políticas, porque nestas coisas a Política deve vir em primeiro lugar.

Agradou-me que José Sócrates tenha apontado aos alvos sobre os quais é imprescindível disparar: Santana Lopes, o gerente dos asilos da Misericórdia de Lisboa e Cavaco Silva, óbvio doente de foro neurológico senão psiquiátrico.

A preparação do “processo” nos gabinetes de Lopes e Cavaco corresponde a aspectos importantes do que está em causa. Em primeiro lugar, corresponde à estrutura das personalidades em presença, às suas origens identitárias, à sua mediocridade (mais imunda que profunda), ao desequilíbrio paranóide em que vivem há décadas, à sua ânsia de serem outros, de serem como os outros, de serem os outros (todos em quadrante homossexual, portanto, se Girard não se engana) correspondendo também ao ódio doentio que dedicam a qualquer êxito alheio e necessariamente comparam aos múltiplos fiascos de que são feitas as suas repugnantes existências. Tudo ajustadíssimo.

Dispensem-me por favor de falar de detalhes, todos mais ou menos públicos, que vão desde a mulher partilhada à ânsias pornográficas da vigilância em zonas de prostituição masculina e às agoniantes escapadelas de Eurico de Melo que lhe determinaram o afastamento súbito. Tudo isto no fundo de um catolicismo sem mácula.

Na promoção do fenómeno Cavaco o oportunismo clericalista da ICAR preferiu elevar um subalterno quebradiço (Cavaco) à consistência de um homem como Adriano Moreira que com eles queria estar de alma e coração. (E eles não quiseram). Tudo isto corre, portanto, sobre a panasquice indecente das sacristias da ICAR, com os pânicos infindos do que têm a esconder. (E convém não esquecer este aspecto, sob pena de jamais conseguirmos conclusões operantes).

Corresponde o fenómeno agora identificado, também, a um outro detalhe: os recursos de deformação política da CIA que os pariu e os gere a quase todos, e, como se sabe, controla perfeitamente todos os desequilíbrios de alma em presença, conhece todos os pecados ocultos que a qualquer momento pode usar, larga a qualquer momento quaisquer suspeitas sobre qualquer um e instrumentaliza o aparelho judiciário para coisas destas (em todos os sítios onde conseguiu apodrecer as coisas para tanto), o que, evidentemente, supõe um elevado grau de decomposição – i.e. de corrupção – do próprio aparelho judiciário para que possa obedecer bem a tais intentos, como obedece, aliás (q.e.d.). A CIA é a única estrutura eficaz em presença. É preciso fazer aqui qualquer coisa. Quanto mais não seja, ao abrigo da velha conclusão em cujos termos o melhor modo de limitar um poder é instituir outro que o limite. (O que deixo a bom entendedor).

Relativamente a tudo o mais, aos vinte anos conclui que isto só lá vai com outra escola, outra imprensa e outra igreja. Para fazer outra gente, claro. E dei aulas. Escrevi em jornais. Encontrei a Igreja de que estava separado, a minha gente, como costumo dizer. Mas não há qualquer êxito à vista e eu já não terei muito mais tempo. Nem o analfabetismo desapareceu e eu imaginava que iria desaparecer com o tempo, que era coisa de gerações mais velhas. Agora há analfabetos bem mais novos que eu, por privação de frequência escolar… Não vale a pena desistir que sempre seria mais um trabalho e a morte pára todos em algum lugar, sem que precisemos de grande esforço para isso.

Regressando então àquela entrevista e àqueles comentários. Sócrates desfez naturalmente um MP instrumental de outras coisas e deixou os críticos a dizerem que os Tribunais Superiores (com raríssimas excepções, é verdade, duas, para ser completamente exacto) confirmou as vacuidades.

Não é completamente exacto. É preciso ler o lixo que ousaram ali escrever e a que vincularam os nomes com que subscreveram aquele lixo. Os acórdãos – com excepção do da “caprinologia”, que já estava integralmente grafado na cara do seu ilustre relator, porque a gente olha para a fotografia e está realmente tudo lá – os acórdãos não se pronunciam sobre questões de fundo, mas sobre questões processuais, desenvolvendo até uma técnica notável de não conhecer o que se arguira. São verdadeiros monumentos da estupidez bem servida pela erística, aqui chamando estupidez ao que S.to Isidoro de Sevilha assim chamava: o embotamento da sensibilidade daquele a quem a injustiça não comove. Um homem nessa tremenda circunstância é um estúpido. O propriamente dito. E se a maioria dos relatores chamados a intervir assim interveio, isso diz tudo do estado das gentes do aparelho de justiça. “Arrependei-vos que o fim está próximo”. O arrependimento já talvez não adiante nada quanto à vida da estrutura organizacional. Mas porventura fará alguma diferença quanto aos destinos em presença das pessoas individualmente consideradas. É o momento de se arrependerem.

Interessantes entre os comentários foram os dos advogados maduros. Magalhães e Silva, mais o homem do Distrital de Lisboa da Ordem e um penalista cujo nome não fixei. Nenhum deles se comprometeu com isto, ou seja com o aparelho. Nenhum deles deixou de marcar a sua distância quanto à prática seguida, nenhum deles deixou de sublinhar o que há de completamente indefensável nesta sequência de anomalias.

Depois vieram dois “entertainers” para se confrontarem com Pedro Delille. Execrandos, qualquer deles. Um veio dizer que não tinha um amigo como Santos Silva e nesse sentimento de ausência queria fundar a justeza de um processo criminal a outro -“Não há amigos assim”, dizia mesmo a execranda criatura que a infelicidade pariu e com todos os estigmas. O outro falava do “livro” que tinha feito com “o processo” e onde constariam “as provas” de quarenta movimentos de dinheiro (!)… Portanto, aquela criatura, se bem vejo, constitui-se assistente no processo (restando ver quem lhe pagou as guias e o advogado) para de lá sacar elementos documentais (importando ver quem lhos deu) no momento em que vigorava o segredo interno oposto à própria defesa (!) e com isso publica “um livro” com o qual faz negócio, sem que ninguém lhe diga nada até agora e nem sequer ali. Pedro Delille não podia dizer-lhe nada quanto a isso, que é em todo o caso uma das anomalias piores e mais graves. Se o homem não percebeu que à luz do Direito lhe cabe o destino processual de Gonçalo Amaral, não há nada a explicar-lhe. Nesse silêncio Delille tem razão. Resta a utilidade de dever explicar isso à audiência, è verdade. Mas não pode ser um advogado defensor a fazê-lo.

Já a seguir à segunda metade da entrevista apareceram paineleiros interessantes. Uma megera veio dizer que Sócrates está acusado. E Sócrates não está acusado. Não há acusação. Fazia estremecer como um insulto, a rusticidade da criatura, o seu pretensiosismo, o primarismo do léxico, adicionado a uma maquilhagem de meretriz dos anos quarenta (foram mazinhas as meninas da caracterização, mas a megera merecia). Alguém devia lembrar à direcção de informação da estação que “rasca” significa apenas “gritante”.

E vinha a Raquel Varela, com um aspecto inenarrável, também. Fez uma defesa apaixonada do Ministério Público. E disse porquê. Porque trata das crianças. E isso é assim realmente, ao ponto da procuradora que arquivou a primeira denúncia contra Carlos Cruz e Rito estar agora a dirigir os asilos de desvalidos. Trata das crianças, o MP. É verdade. (Que pavor). Atesta-o a multidão de abusos dos asilos de crianças desvalidas e ainda o facto de os asilos fazerem presidiários, uma vez que a vida que começa no asilo tem acabado frequentemente na prisão. É o MP que trata disto e nisto merece a consideração de Raquel Varela. Registo apenas. Trata ainda dos trabalhadores em acção de trabalho. Também é lindo o tratamento correspondente. E tratará de mais não sei o quê… Não podendo ser responsabilizado pelo processo Sócrates porque não foi o MP que fez aquilo, mas os tribunais, i.e. os juízes. Varela não tem que saber o que diz antes de falar, pelos vistos. O “dominus” do processo, em inquérito é o MP, justamente. Se os tribunais optam por lhe dar corda, enforcando-se ou não em conjunto com o MP (e aqui parece-me bem que sim) então isso não é um sinal de pureza daquele corpo de funcionários, travestidos de magistrados, mas um sinal de indigência intelectual do inteiro aparelho.

Para tudo coroar vem Paulo Morais. Sócrates arruinou o Estado com a nacionalização do BPN e mais as parcerias público-privadas. Bom… Temos a coisa razoavelmente restringida, convenhamos. A nacionalização do BPN não me agrada nada. Penso que Sócrates perdeu ali uma oportunidade de oiro para decapitar o nacional-chavasquismo. Creio que não lhe faltava apoio – embora talvez lhe possa ter faltado assessoria – e não lhe faltou sequer a advertência de Mário Soares, em público, que subscreveu o diagnóstico dos velhos economistas do PCF e falou em nacionalização dos prejuízos. A generosidade para com a corja de Cavaco saiu-lhe cara, como se vê. Quanto às parcerias público-privadas, creio que Sócrates desvalorizou algumas coisas desvalorizáveis e não atribuiu importância a outras coisas que a tinham.

Mas o que se disse relativamente às iniciativas que tomou, não é exacto. O TGV, por exemplo, foi uma iniciativa arrojada e arriscada. Curiosamente, teria dado certo. A UE suportava parte importante dos custos e o Euro caiu entretanto 30% significando isto que a obra se teria concretizado por uma parcela quase desprezível do seu valor. Dificilmente teria sido concebível melhor negócio. Em alternativa, perderam-se os financiamentos, perderam-se os investimentos iniciais (se bem percebi) e pagaram-se indemnizações vultuosíssimas.

Já o clausulado leonino das PPP – que não foram certamente inauguradas por Sócrates – foi activado pelo miserabilismo posterior. Aquilo é ruinoso porque opera. E opera porque um país inteiro reduzido à miséria, não mexe. Por exemplo, se as pessoas se deslocam muito menos e evitam as estradas pagas, por mais portagens que se estabeleçam até para atravessar as ruas, é preciso fazer face aos prejuízos e frustração de expectativas do investidor privado. E o clausulado é leonino, sim. Daria jeito que fosse outro. Mas mais jeito daria que as pessoas pudessem viver normalmente e que o país mantivesse alguma actividade e algum bem-estar, alguma perspectiva de desenvolvimento, algum investimento público. Os desgraçados varridos pelo acordo parlamentar da esquerda, gastaram quatro anos a cortar direitos, a instaurar o terror, a garantir que nada se faria, a nada fazerem, a empurrarem a classe média para miséria, a depauperarem o serviço nacional de saúde, o serviço de justiça, o serviço nacional de ensino, a segurança social – cujo fundo de garantia financeira foi empregue para comprar dívida pública – e enquanto consumavam estes crimes sem nome contra o interesse público, iam dizendo que Sócrates arruinara o pais. Para tanto usaram o que Sócrates consentiu (também é verdade) e era legalmente proibido: uma concentração indecorosa de órgãos de comunicação social, que aliás matou tudo o que fosse imprensa. Nunca a imprensa viveu tão pouco do que tem para dizer e que tem sido substancialmente nada. A imprensa é um poleiro para as vacuidades de papagaios como Marcelo e Mendes, sucedâneos e aprendizes respectivos.

Quando se afina o olhar temos a inteira máfia do cavaquismo a gritar que Sócrates é mafioso; e nem sequer faltou o sr cardeal – que se espera aprenda com urgência a estar calado – a falar do que se conseguiu neste período… Não tenho dúvidas que a indústria de produção de subsídios na estrutura que o sr. cardeal dirige viveu um periodo de grandes resultados.

Passando a factos, temos o pseudo processo onde o único crime visível é ele próprio, o processo, e, no plano geral, as parcerias público-privadas (como se tivesse sido ele a inventá-las) e o BPN. Ora, ora…

Em Sócrates poderá haver um único problema (em termos gerais) que é o da independência pessoal e económica de um dirigente político. Ser empregado por uma empresa privada após dois mandatos como Chefe do Governo não me parece coisa isenta de reparos. Mas é um problema do sistema. A tentação de ter o governo composto por altos funcionários (usando aqui o termo com a sua máxima amplitude) porque têm onde regressar depois do exercício de funções, não é limitação aceitável. E ter como ministro um empregado de interesses privados, também não. Este é um problema. Mas não é apenas um problema de Sócrates.

8 pensamentos sobre “Sócrates e a entrevista

  1. Muitos parabéns por este seu artigo de opinião ao qual tiro o meu chapéu. Pena é que os visados não se disponham a ler pois certamente se sentiriam incomodados com a sua triste figura.

  2. Parabéns pelo excelente texto e pela coragem de o ter publicado. Já vai sendo tempo de esquecermos o “politicamente correcto” e começarmos a dizer as verdades.

  3. Goste-se ou não de Sócrates, uma coisa é certa, está muitos furos acima de todos os outros políticos, da nossa praça, que têm como objectivo o poder de governar. Como foi possível que, uma boa parte dos portugueses, o tivesse preterido a favor de Passos Coelho? Uma pergunta que provoca muita incomodidade, eu sei…
    Por: Francisco Fortunato.
    http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2013/03/as-reformas-de-socrates-em-6-anos.html

  4. Opinião de Santana Lopes Sobre Sócrates
    P. Sócrates foi um reformista?
    R. Foi um primeiro-ministro com visão em várias áreas. Ele era vários deuses ao mesmo tempo, depois caiu em desgraça e passou a ser o culpado de tudo. Isso é caricato. Ele foi um primeiro-ministro com várias qualidades, um chefe de Governo com autoridade e capaz de impor a disciplina no seio do seu Governo. Entrevista a Santana Lopes. Até tu Santana.
    Por: Bárbara Reis e Margarida Gomes/ P/16/ 03/ 2014

  5. “1. Foi feita a reforma do sistema público da Segurança Social, defendendo o sistema de previdência público e assegurando a sua sustentabilidade;
    2. A rede nacional de equipamentos sociais teve um aumento sem precedentes na história da democracia, com a aprovação de mais 841 novos equipamentos sociais, num total de 49.400 lugares;
    3. Foi aprovada a Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez;
    4. Foi aprovado o Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo;
    5. Foram eliminadas as subvenções especiais para titulares de cargos políticos;
    6. Houve progressos claros e identificados na Escola Pública. Portugal foi o 2.º país em que os alunos mais progrediram em ciências e o 4.º que mais progrediram em leitura e matemática;
    7. Foram certificados 500.000 Portugueses, foi o maior passo dado na qualificação dos portugueses;
    8. Hoje, todas as escolas públicas têm acesso à internet em banda larga e 75% das escolas têm redes de área local instaladas, e foram distribuídos 1 Milhão e 700 mil computadores;
    9. Foram apoiadas mais de 70 mil empresas nos últimos anos através do Programa PME Investe, a que correspondem operações no valor de mais de 7.000 M€;
    10. A taxa média de crescimento anual das exportações subiu de 3,2% no período 2000/05 para 4,5% no período 2005/10 (neste período, fomos o 3.º país com maior crescimento das exportações na EU-15);
    11. Portugal é agora líder nas energias renováveis e um dos maiores produtores mundiais de energia eólica;
    12. Mais de metade da electricidade produzida em Portugal provém de fontes renováveis (contra 36% em 2005), permitindo evitar 800 milhões de Euros de importações de combustíveis fósseis;
    13. A rede de Unidades de Saúde Familiar, que conta com 283 novas unidades em funcionamento e com mais 450 mil novos utentes com médico de família, chegando a 3,5 milhões o número de utentes potenciais;
    14. Foi criado o Complemento Solidário para Idosos, para que nenhuma pessoa com mais de 65 anos disponha de um rendimento inferior ao limiar da pobreza, abrangendo mais de 270 mil beneficiários;
    15. O número de diplomados cresceu 20% e o número de doutorados 50%;
    16. Portugal tem a maior taxa de crescimento da Europa no investimento em I&D. Registou, entre 2004 e 2009, um dos progressos mais notáveis nesta área, com o investimento em I&D, em percentagem do PIB, a passar de 0,6 para 1,7.
    17. Foram criadas as Lojas do Cidadão de 2.ª geração. Em 2005, a rede de Lojas do Cidadão era constituída por 8 lojas, localizadas em grandes centros urbanos. Presentemente, estão em funcionamento 29 lojas, um pouco por todo o país.
    18. Portugal é líder do ranking europeu dos serviços públicos online (era 14.ª). Hoje 100% dos serviços estão ligados à Internet quando em 2004 apenas estavam ligados 40%.”
    19.Supressão de 991 cargos dirigentes «superiores, intermédios e equiparados» em 2011 na administração pública.
    20.A aprovação dos casamentos gay e do aborto, assim como o fracasso da OPA da PT, deixou a igreja e os poderosos azedos. Sócrates não vergou, perante os poderosos e eles não lhe perdoam. Cortou privilégios dos poderosos, como as reformas antecipadas dos políticos e correu com as velhas elites alapadas e o bolor instalado e é esse o grande problema.
    21. As Novas Oportunidades, o Computador Magalhães e o Simplex, são hoje alvo de prémios a nível Internacional como a União Europeia e OCDE e referidos como bons exemplos a seguir.
    http://viriatoapedrada.blogspot.pt/2015/07/divida-socrates-passosportas.html

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